'O Coliseu e o Pelourinho têm o mesmo valor', defende diretora da Unesco

Diretora da Unesco concedeu entrevista ao CORREIO; leia na íntegra

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 10 de março de 2019 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Marina Silva/CORREIO

A diretora e representante da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) no Brasil, Marlova Noleto, esteve em Salvador por quatro dias. Nesse período, observou que a capital baiana vive um momento de grande crescimento. 

Para fazer com que a Unesco contribua com essa evolução, Marlova visitou o prefeito ACM Neto, o governador Rui Costa, secretários de estado e o publicitário Nizan Guanaes para discutir projetos nas áreas de educação, cultura e preservação do patrimônio histórico, especialmente do Centro Antigo. Na entrevista que concedeu ao CORREIO, no hotel Fera Palace, ela disse que gostaria de ver município, estado e sociedade civil trabalhando juntos, fez elogios à cultura local e enalteceu a importância do Pelourinho.

Confira na íntegra: 

Salvador tem dois títulos da Unesco (Patrimônio Mundial da Humanidade e Cidade da Música). Quais suas impressões da cidade? Estou encantada. A cidade está vivendo um momento maravilhoso. Há uma revitalização, a gente sente o ânimo das pessoas. O taxista, as pessoas com quem conversei, todos. A gente percebe que é um momento muito especial e privilegiado para a Bahia e para Salvador. A gente vê que, apesar da crise mundial, a cidade vive um 'boom'. É um movimento inclusivo. Salvador melhorou nos indicadores sociais e educacionais. A senhora esteve com o governador, o prefeito, organizações não governamentais e até o publicitário Nizan Guanaes. O que tratou nessas reuniões? Estou convencida que o prefeito e o governador trabalhando juntos é a melhor coisa para todos. Devemos pensar sempre quem é o destinatário final da ação governamental. A criança, o adolescente, o jovem, a família, o idoso. Devemos reforçar a importância de que haja esse trabalho integrado para que as políticas públicas sejam eficazes e alcancem quem mais precisa delas. A gente percebe que a prefeitura tem um foco na área da educação, que é um dos temas principais do nosso mandato. Vejo com muita alegria ACM Neto mencionar a questão do empreendedorismo. Temos um projeto executado pela prefeitura, por meio Fundação Mário Leal Ferreira e da Secretaria de Desenvolvimento Urbano (Sedur), voltado para a revitalização do Centro Histórico. Estive também com o governador (Rui Costa) e com os secretários de cultura (Arany Santana) e de Turismo (Fausto Franco). São agendas que interessam muito à Unesco. Queremos contribuir com a Bahia. Visitei o Projeto Axé, que é exemplo em todo o mundo. Eu adoro o Cesare La Rocca, que é referência mundial em projetos sociais. Vocês têm o Pracatum do Carlinhos Brown, o Bagunçaço do Joselito Viana. A Bahia e Salvador são um celeiro de boas práticas. Tem a Didá, o Olodum, tem muita coisa boa.   Foto: Marina Silva/CORREIO Qual a importância de Salvador preservar seu DNA musical?  Quando a Unesco confere um título de patrimônio mundial, diz que aquele lugar tem um valor excepcional, que pertence à humanidade. Isso dá ideia de cuidado, preservação. A música se insere no campo mais amplo da cultura, representando a tradição e também toda a criatividade que a Bahia tem. Quando a gente pensa na contribuição que Salvador e a Bahia deram para o Brasil, é até injusto com o resto (risos). Um lugar que tem Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia, Dorival Caymmi, Daniela Mercury, Ivete Sangalo, Cláudia Leitte, o próprio axé, os blocos afros. A Bahia tem música de sobra.

O Carnaval seria uma das bases desse DNA?  Tive o privilégio de passar alguns carnavais aqui. Vi coisas no Carnaval que encheram minha alma, meu coração e minha mente de ideias e criatividade. Com a inscrição na Rede de Cidades Criativas da Unesco, em 2020, na cidade de Santos, Salvador vai poder participar da troca de boas práticas e a maioria tem como fonte o Carnaval. Conversamos com o prefeito para discutir quais boas práticas Salvador vai levar para esse encontro e de que maneira a cidade estará presente para mostrar tudo que ela faz. 

Os valores históricos e culturais de um lugar são ranqueados pela Unesco. Qual o valor de uma cidade como Salvador comparado a cidades da Europa?  Os países apresentam as candidaturas e o Comitê do Patrimônio Mundial se reúne e avalia. Com os dossiês dessas candidaturas, o comitê decide que locais serão inscritos na lista.O Coliseu, em Roma, o Parthenon, na Grécia, e o Centro Histórico de Salvador, o Pelourinho, têm o mesmo valor. Salvador foi a primeira capital do Brasil. Aqui tem a história do Brasil, a Bahia tem a Costa do Descobrimento. Esses sítios contam um pedaço da nossa história. O Pelourinho viveu um auge na década de 90, decaiu e nunca mais foi o mesmo. O que falta para voltar a ser o que era? Eu vejo o Pelourinho retornando ao bom momento que teve no seu apogeu. Existe hoje uma preocupação do prefeito em revitalizar o Centro Histórico. A Unesco se sente muito feliz em fazer parte disso. O projeto que temos com a Fundação Mario Leal Ferreira (FMLF) trabalha justamente com instrumentos e estratégias para o desenvolvimento sustentável do local. A ideia é capacitar a FMLF, os agentes públicos e privados e os atores sociais para aplicar os instrumentos urbanísticos que estão previstos no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano, que visa conceber estratégias e projetos que possam ser indutores da requalificação desse patrimônio cultural. Com as boas práticas que conhecemos no mundo, como é o caso de Quito (Equador) e Cartagena das Índias (Colômbia) nós podemos ajudar muito para que a cidade faça o seu próprio projeto de desenvolvimento do Centro Antigo. 

A iniciativa privada começa novamente a olhar essa área. O Fera Palace é uma prova disso? Sim. Esse hotel é uma joia do Art Decor. É lindíssimo, um patrimônio. Me hospedei no lugar certo. O hotel Fasano é a mesma coisa. A revitalização desses prédios atrai muita gente. O restauro da Igreja de São Francisco, da Basílica. Tem a casa de Jorge Amado, o Museu do Carnaval.Não falta o que fazer e ver em Salvador. Aqui não deve nada para lugar nenhum do mundo. O Farol da Barra, eu olhei do avião e fiquei emocionada. Já falamos de educação, cultura, turismo. Com tantas atribuições, qual o real papel da Unesco?  Temos cinco áreas de mandato. É uma agência especializada do sistema Nações Unidas. Somos diferentes de um programa ou de um fundo. Quem faz a governança das agências especializadas são os próprios países. O Brasil tem uma representação diplomática na Unesco, tem uma embaixadora, a Edileuza Fontenele Reis, que também é vice-presidente do Conselho Executivo. Somos uma organização de 195 países, temos mais países que a própria ONU. Somos a agência responsável pelos temas da educação, ciências humanas e sociais, toda a área de desenvolvimento social, combate à pobreza, direitos humanos, esporte, e área de ciências naturais e cultura. Nossa área compreende uma série de outros temas, como economia criativa, combate ao tráfico dos bens culturais, turismo, desenvolvimento cultural, comunicação, liberdade de expressão e novas tecnologias na educação. É um mandato muito amplo, que nos permite trabalhar de forma intersetorial, transversal e integrada. Funcionamos como um laboratório de ideias. 

A senhora é a primeira mulher neste cargo. A força e a sensibilidade feminina ajudam?  Sim. Tenho muito orgulho disso. Sempre digo que as mulheres têm um jeito diferente de fazer as coisas. As questões de gênero são importantes e precisamos ser empoderadas. A Unesco é dirigida no mundo por uma mulher também. Tenho orgulho de fazer parte de um time que tenha tantas mulheres em posição de comando. Me sinto privilegiada em poder contribuir de muitas maneiras para fazer avançar uma agenda de direitos. 

Uma revista chegou a afirmar que a senhora é uma unanimidade entre minorias, vulneráveis, autoridades e famosos. Como se sente? Acho que isso é uma generosidade. O meu compromisso real na vida vem de origem. Sou assistente social, comecei trabalhando com as pessoas mais vulneráveis, na antiga Febem, no Rio Grande do Sul. Isso é o que eu gosto de fazer. A gente que nasce em berço privilegiado, tem o compromisso de fazer avançar o bem e de fazer distribuir riquezas.O lema da gente é trabalhar para todos e não deixar ninguém para trás. Vou com a mesma alegria no Palácio de Mônaco e nas periferias. O mundo vive uma crise humanitária. Quais os maiores desafios? O mundo hoje vive a maior crise humanitária desde a Segunda Guerra, né? Tem desafios muito graves, sérios. Tem o problema das migrações, a guerra na Síria, as populações expulsas em busca de oportunidades, um ciclo migratório difícil por falta de acolhimento, as mortes no Mediterrâneo. A crise desafia a todos. O mundo precisa dar respostas. Nessa crise, exemplos como o Brasil, que é um país acolhedor, são importantes. Veja o acolhimento aos venezuelanos em Roraima, por exemplo.

O Brasil vive uma crise política que se intensificou nas eleições presidenciais. Como é que a Unesco lida com o novo Governo Federal? Já tivemos reuniões com os ministérios e a ampla maioria andou muito bem. Temos várias agendas em comum, trabalhamos para alinhar as prioridades e eu acredito que esse é o nosso papel: continuar contribuindo para o desenvolvimento de políticas públicas dentro do mandato da educação, ciências e cultura em uma agenda de direito que ninguém seja deixado para trás.  

Qual a imagem do Brasil internacionalmente? Pelo que percebo, é uma boa imagem. O Brasil ainda é um país que no imaginário coletivo é um povo acolhedor, com uma natureza exuberante e uma cultura rica e diversa. Quando digo que sou representante da Unesco no Brasil as pessoas abrem um largo sorriso. O Brasil ainda é um país amado por todos.

Quais os seus lugares no mundo?  Minhas maiores referências estão em Porto Alegre. O Rio de Janeiro, cidade onde nasceu o meu marido e que me deu minha filha. Paris, onde está a sede da Unesco. Tenho uma história de amor por Paris. Estocolmo, porque morei na Suécia e lá é o berço do bem estar social no mundo. É a forma de vida em sociedade que acredito. Jerusalém, porque é o berço de todas as religiões monoteístas e é um pouco a história comum da humanidade. E Salvador! Porque a Bahia põe o meu coração de um jeito...