O despropósito do futebol sem expectativa

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  • Gabriel Galo

Publicado em 20 de julho de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Entre as maravilhas do futebol, uma das melhores é a expectativa. O pré-jogo é ritual sagrado, gravado no cânone individual da mandinga. Seguimos, pois, à risca a autodeterminação, porque o rumo do balé no gramado verde depende do pé que levantamos da cama, da cor de vestes, do beijo no amuleto.

Mas sei que nada será como antes depois de amanhã.

O ônibus de cada clube não será preenchido de concentração angustiada, um tanto nervosa, com aquela descarga de adrenalina que motiva. Não cruzará a via de chegada no meio da galera em apoio, entoando cânticos de apoio e cobrança. Este corredor é a linha de transmissão de energia que leva a origem do sentimento da torcida aos pés e mentes de jogadores. O veículo percorrerá, no entanto, apenas o vale das sombras, onde o frio do inverno haverá de ser vencido porque é obrigação.

A celebração em conjunto ficará para um depois que não se sabe quando, guardada na mesma gaveta da corneta contida.

Não vai ter festa na Ladeira, água no estacionamento, isopor do ambulante preferido, churrasquinho na avenida. Dentro do templo, não vai ter sorvete de cajá com coco e umbu, nem amendoim cozido, nem pipoca murcha ou cerveja quente.

No campo, se desdobrará a imprensa para que o trilo do apito do árbitro não reverbere o oco da ocasião, vazia, sugada, drenada. A energia, canalizada pelo fervor individual de cada torcedor, que em grupo se choca como fissão nuclear e explode em catarse coletiva de força monumental, estará represada. Restará o silêncio sonoro do árbitro, das instruções na beira do campo, da propaganda dos anunciantes, da voz do narrador e dos comentaristas, todos atuando exclusivamente, não complementarmente, como profissionais.

Os argumentos que se espalham advogando pelo retorno variam entre o tecnicismo, as falsas simetrias e a chantagem emocional.

No primeiro, tem-se a sobreposição de contratos e compromissos, tais tão desmerecidos e desrespeitados no mesmo âmbito em que agora ressurgem como cláusulas pétreas da formação do esporte, sobre essas coisas menores e menos importantes de vida e sentimento.

No segundo, une-se a distância incomparável entre casos. Lá fora, onde o isolamento teve implantação efetiva, o retorno é sinalização de que a vida volta ao normal, de que há esperança depois da tragédia. Aqui, por outro lado, o retorno é o encobrimento do problema, o fazer de conta de que não tem nada para ver, um fingimento que apela ao desespero compreensível de quem se arrasta há mais de 120 dias num vai-não-vai sem fim.

O terceiro é o único que tem um verdadeiro, e cruel, valor. Clubes de futebol também dependem de estabilidade financeira para sobreviver. A quarentena escancarou essa fragilidade. Voltar, portanto, é a manutenção possível de quem respira por aparelhos.

A crueldade desta verdade advém tanto da validação indireta dos dois primeiros argumentos quanto da rendição à irracionalidade que provocou ativamente essa demanda. Diante do isolamento eterno do jeito que está, resta o último recurso da sobrevivência per se.

Teremos, pois, a volta isolada do futebol, sem gente, sem alma, sem boas notícias e cercada de mentiras. A expectativa, olhe por onde for, está submergida sob um oceano de insensatez e instinto de sobrevivência. Um atentado contra a maravilha sublime que é o futebol.

Gabriel Galo é escritor.