O dom da palavra: gravadas mais de 1,2 mil vezes, canções de Moraes Moreira deram ritmo ao Carnaval

Artista gravou mais de 40 discos, praticamente um por ano desde 1969; sua última produção foi um cordel sobre a quarentena

Publicado em 16 de fevereiro de 2021 às 05:55

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Mario Marques/Divulgação

No mesmo dia em que boa parte dos brasileiros entrou em quarentena, Moraes Moreira mergulhou madrugada adentro numa missão que o conduziu por quase toda a vida: tocar e escrever, sem parar. Naquele 17 de março de 2020, no apartamento da Rua das Acácias, na Gávea, Rio de Janeiro, nasceu Quarentena, um cordel como os que compôs em seus últimos dois álbuns – A Revolta dos Ritmos (2012) e Ser Tão! (2018). Apresentou a obra ao público no dia seguinte em sua conta oficial do Instagram e não postou mais. Quarentena é o último cordel de Moraes, que nos deixou menos de um mês depois, em 13 de abril de 2020.

Em 62 versos, divididos em oito septilhas e uma sextilha, Moraes Moreira – que ocupava a cadeira de número 38 da Academia Brasileira de Literatura de Cordel – fala um pouquinho sobre diversos assuntos em pauta atualmente: o medo do coronavírus e da pandemia, a esperança pela vacina, o pavor da violência e das milícias, os questionamentos sobre a morte de Marielle Franco, a cisma com o machismo, a misoginia, o preconceito e a hipocrisia.

Aos 72 anos, no final das contas, o baiano não tinha perdido o ritmo: estava ali, vivo, o mesmo artista que abasteceu o Carnaval de canções ao longo de décadas, e cujas composições não só fazem parte da memória afetiva de milhões de foliões pelo país, como, ainda que sutilmente, tocam em assuntos pouco festivos, como dor e um passado de escravidão.

“Eu sempre cito o Chão da Praça: ‘A nossa dor balança o chão da praça’. Está todo mundo pulando, mas tem uma dor, tem uma violência. Se você for em Chame Gente, também tem aquele verso ‘Escorre o sangue e o vinho, pelo mangue, Pelourinho’. Quer dizer, tem toda uma rememoração de uma história ali, de escravidão, que aparece de uma forma pontual, quase que fugidia. Moraes era um poeta atento”, aponta o historiador Rafael Rosa, mestre em História Cultural e autor do trabalho Na trajetória do trio, sobre a canção carnavalesca baiana.

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Além de atento, Moraes sempre foi fecundo. Em toda a sua discografia, gravou pelo menos 325 canções próprias ou feitas em parceria com nomes como Luiz Galvão, Pepeu Gomes, Fausto Nilo, Armandinho, Antônio Risério, Jorge Mautner, Waly Salomão, Tom Zé, Paulo Leminski, José Carlos Capinam e até Dominguinhos. Elas estão distribuídas em cerca de 40 álbuns entre 1969 e 2018 – praticamente um disco novo a cada ano.

No Carnaval, sobretudo, deixou sua marca. Só nas décadas de 1970 e 1980, Moraes compôs ou gravou mais de 50 canções cuja temática era o Carnaval, mostra um levantamento feito por Rafael Rosa. E muitas delas atravessaram gerações e continuam despertando memórias em quem aproveita a festa ano após ano. Chame Gente, parceria de 1985 com Armandinho Macedo, gravada em 1987 no álbum Mestiço É Isso, foi a sétima música mais tocada no Carnaval do ano passado em todo o país.

Fôlego As canções de Moraes deram novo formato e fôlego ao Carnaval de Salvador, explica Rafael Rosa.“Quando ele começa a todos os anos fazer canções, ele começa a nutrir o Carnaval de novas imagens, novos signos, novos ritmos. Dos anos 1950 até essa nova geração assumir a festa para si, o trio continua fazendo o Carnaval, mas ele não vai ganhar a potência que ganha com a nova geração de 1970”, sinaliza Rosa.O historiador Milton Moura, que estuda o Carnaval, fala de Moraes Moreira como um verdadeiro virtuose, não apenas pelas composições que transcenderam a festa, mas pelo conjunto. “Ele era um exímio tocador de guitarra baiana, era um primor de cantor, de melodista, mas também como intérprete, como músico. É o que se chama de virtuose”, comenta.

A produção foi, acima de tudo, diversificada. Armandinho, amigo e parceiro dos tempos do Trio Elétrico Armandinho, Dodô e Osmar, fala dessa mistura. “Moraes foi uma pessoa que, além de se integrar com a forma ‘trioeletrizada’ que ele tocava, trouxe o ijexá. Por isso que Caetano [Veloso] falou uma vez que Moraes é o pai do axé. Se você pegar os discos de Dodô e Osmar, é frevo, aí a partir do terceiro a gente bota o frevoxé, o ijexá. A gente começa a diversificar e começa a nascer aí o axé. O axé não tem uma batida definida, é todo um contexto musical que gira em torno do trio”,.

Mesmo tendo uma de suas composições, Chame Gente, apontada em diversos locais do país, inclusive em Salvador, como um dos grandes símbolos da axé music, Moraes não gostava desse rótulo. “Ele dizia: ‘Olha, nós somos antes do axé...’, lembra Armandinho. O parceiro se dava ao luxo de discordar:“Eu falava: ‘Mas Moraes, hoje em dia tudo é axé, é uma coisa que engloba. Nós fomos a primeira referência de todos esses artistas do axé’”, conta Armandinho.Ele aponta que, durante muitos anos, novos artistas beberam da fonte deles e o estilo inspirou outros grandes nomes, como Daniela Mercury, Sarajane, Luiz Caldas, Jota Morbeck.

Influência Um levantamento feito pelo Instituto Memória Musical Brasileira (IMMub) aponta que composições de Moraes foram gravadas 1.290 vezes, por ele mesmo e por muitos outros artistas. Chame Gente foi é listada 27 vezes, tanto na voz dele como do próprio Armandinho, Luiz Caldas, Cláudia Leitte, Daniela Mercury, Caetano Veloso, Margareth Menezes, Ivete Sangalo e Carlinhos Brown.

Chão da Praça, grande hit do final dos anos 1970, foi de Moraes a Margareth, Ivete Sangalo e Elba Ramalho. Bloco do Prazer passou por Nara Leão, Fernanda Takai, Elza Soares e Gal Costa. Festa do Interior, gravada por ele em 1987, é um dos grandes sucessos na voz de Gal. E ela fala, num vídeo em homenagem a Moraes, sobre a escolha da música para o álbum O Carnaval de Gal, dois anos antes, em 1985.“Festa do Interior, pra mim, é uma das canções simples e mais lindas. Eu me lembro quando ele mandou cinco canções pra mim quando eu tava fazendo o disco na época e eu escolhi a mais simples de todas, porque eu achei linda”, lembra Gal Costa.Sem saudosismo Se 2021 tivesse Carnaval, Moraes certamente faria falta. Mas, com certeza, estaria presente de outras formas – na voz de quem ele inspirou, por exemplo.

“É claro que vai fazer falta um poeta da grandeza de Moraes, mas ao mesmo tempo que ele vai, fica toda uma nova geração. Eu acho que a grande fecundidade do trabalho de toda essa geração [de Moraes] é justamente o tanto que eles sempre se mostraram abertos ao novo, às novas misturas, aos novos ritmos, e como eles são poetas sensíveis e capazes de misturar. Ele nos deixou num ano terrível, mas eu acredito mesmo que, felizmente, o legado que ele deixou deu uma nova injeção de ânimo, de riqueza ao Carnaval”, afirma Rafael Rosa.

O Correio Folia é uma realização do jornal Correio com o apoio da Bohemia Puro Malte e da Drogaria São Paulo.  A transmissão é da ITS Brasil e E_Studio.