O Ofício de Baiana de Acarajé fora de seu lugar nas ruas: patrimônio em risco

Antropóloga Maria Paula Adinolfi enxerga um dano ao patrimônio cultural a situação das baianas nesse momento de pandemia

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 1 de agosto de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Nara Gentil/CORREIO

A antropóloga Maria Paula Adinolfi, que em 2015 participou da criação da Plataforma Oyá Digital - um trabalho que mapeou 5 mil baianas de acarajé pelo mundo - enxerga um dano ao patrimônio cultural diretamente relacionado à situação das baianas de acarajé nesse momento de pandemia. Ela afirma que, para além da questão da sobrevivência das baianas, perde-se muito culturalmente.

Segundo estimativa da Associação Nacional de Baianas de Acarajé (Abam), das mais de 2 mil baianas que vendem seus acarajés em Salvador, no momento cerca de 80% estão paradas ou fora de seus pontos, se virando como podem. As que trabalham nas praias são as mais prejudicadas. Nas duas Orlas, entre o Porto da Barra e Aleluia e entre a Ribeira e São Thomé de Paripe, são 750 tabuleiros. Essas perderam quase que 100% dos clientes e não sabem quando vão poder retornar.

"O consumo pelo delivery ou de outras formas existe, mas o ofício é um ofício de rua, de esquina. Tudo o que não se pode fazer nesse momento é  exatamente o que dá sentido, vida e espírito à baiana de acarajé. As baianas juntam gente em um ponto, na rua, e isso desperta os mais diversos tipos de relações entre as pessoas. São relações de vicinidade e pertencimento. Se perde muito de relações humanas quando se tira um tabuleiro da rua", acredita Maria Paula.

A antropóloga do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) vê também um prejuízo religioso. "Do ponto de vista da religião, o mercar na rua é parte da obrigação. É sagrado! São prejuízos desses dois lados", diz Maria Paula, que escreveu um artigo sobre o assunto para o CORREIO.Confira artigo na íntegra a seguir:

Lá se vão mais de quatro meses de isolamento social, e as baianas de acarajé estão, sem dúvida, entre os segmentos mais atingidos em seu trabalho e renda na cidade de Salvador. Para driblar a situação, elas têm reinventado seu ofício, vendendo através de aplicativos de entrega de comida, ou pelo sistema de “drive-thru”.

Mas, ainda que o ganha-pão das baianas pudesse ser garantido através das novas formas de venda (o que não se dá para todas), algo fundamental se perde, algo que integra aquilo que faz deste ofício uma referência cultural, um patrimônio nacional: a sociabilidade ao redor do tabuleiro. O cheiro do azeite impregnando o ar, a alegria de fim de tarde, o papo com a baiana, sentar-se num banquinho vendo o movimento, assuntando a vida alheia, olhando para o mar e sentindo a brisa, ou no coração do bairro ouvindo as novidades, ou ainda numa avenida movimentada à espera do busu: eis o locus do acarajé, que não é simples mercadoria, mas memória ancestral em forma de alimento. A rua é seu lugar por excelência, já que o mercar é tão parte do ofício de baiana quanto o fazer o acarajé.

A ausência de um tabuleiro significa a perda de um ponto de referência geográfico, de uma conexão entre passado e presente, de um sentido e um sentimento que a cidade tem através das cores e sabores, cheiros e resenhas que se produzem ao seu redor, criando uma paisagem sinestésica icônica da baianidade. Por sua vez, um acarajé vindo da mão de um motoboy e comido em isolamento tem sabor triste: por mais que a receita seja a de sempre, ele se torna uma outra coisa, um bolinho destituído dos laços sociais, da quentura do tacho e dos afetos que fazem um acarajé.

Vemos as formas de trabalho popularizadas durante a pandemia se consolidarem, com prognóstico de permanecerem após seu término. A tendência a estabelecer relações através de meios virtuais ganhou enorme impulso, e assustadoramente parece se firmar como forma prevalente de interação entre as pessoas. Qual será o futuro do ofício de baiana de acarajé nesse novo contexto muito mais midiatizado do comércio, do trabalho e das relações interpessoais? E para além desse ofício, o que será das outras práticas da cultura popular, enraizadas em tudo aquilo que neste momento é interdito: estar junto, amoquecado, trocando suor e saliva nas ruas e largos? A capoeira, o samba de roda, as festas de largo só existem pra chamar gente. Fiquemos atentos aos riscos para a cultura brasileira, caso o distanciamento social se torne o “novo normal”.

*Mestre em Antropologia Social, antropóloga do Iphan na Bahia.