O perigo das sementes misteriosas enviadas da China para o Brasil

Invasão de espécies animais ou vegetais podem causar prejuízos irreparáveis tanto ambientais, quanto sociais ou mesmo econômicos

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  • Donaldson Gomes

Publicado em 4 de outubro de 2020 às 11:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Divulgação

Um pacote com sementinhas chega pelos Correios. De graça. Que mal há? No imaginário, florescem ideias que vão desde teorias da conspiração, com suposições até de bioterrorismo,  até o aceite despreocupado do mimo de um remetente desconhecido e a decisão de plantar os produtos. A mais novas hipóteses é de uma ação desastrosa de marketing, ou uma fraude para sites registrarem compras falsas. 

Mas há um fato bem objetivo que é desconhecido por muitos: no Brasil é proibida a postagem via Correios de bichos, plantas ou outras coisas de origem orgânica de modo geral, com raras exceções.  E o rigor em relação ao assunto se explica pelos riscos biológicos, econômicos e até sociais que a inclusão de uma espécie invasora pode representar para um ambiente novo. 

Exagero? Difícil pensar assim após lembrar o impacto que a vassoura de bruxa causou à lavoura cacaueira. Quase meio milhão de hectares foram perdidos. Muitas áreas de cabrucas – tipo de manejo em que a cultura é plantada em harmonia com a Mata Atlântica – deram lugares a pastos. 

E apesar deste ser o mais significativo lembrete do estrago que um organismo invasor pode causar, não é o único. A lista, bem longa, traz exemplos como o do caramujo africano, javalis, búfalos,  peixes-leão, corais sol, ou singelas algarobas, trazidas para o Nordeste brasileiro como opção para “arborizar o sertão”. 

O Ministério do Meio Ambiente tem catalogadas 573 espécies animais ou vegetais estrangeiras presentes no Brasil. A grande maioria foi trazida pelas mãos do homem e a estimativa é que esses visitantes indesejados tenha sido responsáveis por 39% das espécies nativas extintas nos últimos séculos. 

Risco agropecuário  Em tempos de pandemia, com o setor de serviços e a indústria impactados, é o campo quem tem evitado um prejuízo maior na economia baiana. Parte do sucesso da atividade deve-se ao fato de a Bahia ser um estado livre de diversas pragas, ressalta Maurício Bacelar, diretor geral da Agência Estadual de Defesa Agropecuária da Bahia (Adab).  “Nossa preocupação é em proteger esse patrimônio, mas a população é peça fundamental na defesa agropecuária porque não somos onipresentes”, diz. A Adab já notificou os Correios e pediu um reforço na fiscalização da distribuição das encomendas em todo o estado da Bahia. Bacelar lembra que a distribuição de sementes via serviço postal é proibida, até quando acontece entre os estados brasileiros. 

Uma simples muda de laranja dos estados de São Paulo ou Minas, por exemplo, pode representar riscos para a citricultura baiana, que hoje é livre do cancro cítrico. 

Sem contar que o que é natural de uma região pode causar problemas em outra. Mesmo identificada há décadas na Floresta Amazônica, a vassoura de bruxa não provocou na região Norte os prejuízos que causou na Bahia, lembra a fiscal estadual agropecuária Suely Brito, que coordena projeto fitossanitário dos Citrus na Adab.  “Nós tínhamos 500 mil hectares de cacau. Não foi só uma questão econômica, foi cultural. Milhares de baianos viviam em função daquela cultura”, analisa. “Estamos há 25 anos lutando para restabelecer o equilíbrio econômico da região. Espécies invasoras são perigosas por isso”, destaca Suely. Ela acredita que a preocupação despertada com a circulação das sementes pode ajudar a conscientizar as pessoas quanto aos cuidados necessários ao se ovimentar qualquer tipo de material orgânico. “Não sabemos motivação para o envio das sementes. No final das contas, pode ter sido apenas uma estratégia de marketing ruim, mas fica o alerta”, diz. 

A preocupação é porque a “invasão” costuma passar despercebida, pelo menos até ser tarde demais. Em 1983, uma experiência comercial mal sucedida trouxe para o Brasil um imigrante que está presente em 23 das 26 unidades federativas, incluindo a Bahia, segundo a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O Achatina fulica, mais conhecido como caramujo africano, atravessou o Atlântico pra se tornar uma opção mais acessível ao escargot. Não funcionou, mas o bichinho de procriação rápida e sem predadores naturais por aqui espalha-se tanto na zona rural quando urbana. Já houve registros de casos de meningite relacionados ao molusco.  Alguns anos anos, a algaroba foi trazida para ser um fonte de madeira barata no sertão nordestino, mas a planta se adaptou tão bem à região que passou a ocupar o lugar de outras, nativas. 

No século XIX, búfalos do Sudeste Asiático foram levados para Rondônia, para serem criados como gado. Hoje, os animais furiosos destroem tudo por onde passam. Sem a presença de tigres, predadores naturais da espécie, multiplicam-se causando diversos danos à biodiversidade. 

Nem sempre a chegada das espécies novas é intencional. O mexilhão dourado, de origem asiática, visto pela primeira vez na costa brasileira em 1988, chegou grudado nos cascos de navios. A espécie se espalhou pelo país, chegou aos rios e chega a causar prejuízos ao funcionamento de usinas hidrelétricas porque entope o sistema de refrigeração das turbinas. 

Motivo dos envios segue como uma incógnita Em alguns casos, as embalagens com as sementes misteriosas chegam junto com compras em lojas virtuais. Mas elas chegam também sozinhas. Em algumas, o texto é em mandarim. Fato é que, mesmo com toda a repercussão causada pelas remessas em diversas partes do mundo, ainda não se sabe quem enviou, porque o fez, ou mesmo que está mandando. 

Com pouca informação, as teorias se multiplicam. Uma mulher em São Paulo disse ao portal G1 que seu gato morreu após comer as folhas de uma planta germinada a partir das sementes. Só então ela encaminhou o vaso para o Ministério da Saúde. Até o momento, a pasta registrou 36 remessas de sementes ou plantas. Além da China, Malásia e Hong Kong também aparecem como remetentes, segundo o governo. 

Maurício Bacelar, diretor geral da Agência Estadual de Defesa Agropecuária da Bahia (Adab), explica que o material que já foi recolhido na Bahia foi encaminhado para análise no laboratório do Ministério da Agricultura em Goiás e até agora não se sabe absolutamente nada sobre elas. “Desde a semana passada, quando tomamos conhecimento da chegada das sementes ao país, emitimos um alerta à população, de que este material estava vindo supostamente da China junto com outras compras virtuais”, conta. 

O primeiro registro do recebimento das sementes aconteceu em Candiba, no Sudoeste do estado. Pelo menos outras dez pessoas, moradoras de Salvador, já encaminharam embalagens com o material suspeito à Adab, porém a suspeita é que o número de baianos que receberam a correspondência suspeita seja bem maior. São vários tipos de sementes. Tem algumas maiores e outras menores. 

Uma mulher plantou as sementes em Periperi e a Adab recolheu o caqueiro. “Nosso pedido é que as pessoas não abram as embalagens e não descartem no lixo porque não se sabe do que se trata. O procedimento correto é entrar em contato com a Adab para solicitar o recolhimento do produto”, pede Bacelar. “Não é inteligente plantar algo sem saber o que vai germinar dali”. Independente da origem e da explicação para o envio, o diretor geral da Adab lembra que há uma série de riscos ao se manusear um material biológico desconhecido. “Pode estar contaminado com fungos e bactérias. Germinando, a planta pode ser tóxica para humanos e animais. O pólen pode fazer mal às abelhas”, exemplifica. 

Cinco invasores conhecidos Vassoura de bruxa O primeiro foco de investação com a vassoura de bruxa na Bahia foi descoberto em 1989. Em menos de três anos, a praga destruiu as lavouras e fez surgir uma série de explicações, inclusive a de que o Brasil poderia ter sido vítima de uma sabotagem agrícola. No Sul da Bahia, onde o fungo dizimou meio milhão de hectares plantados com cacau, a espécie é invasora. Mas de acordo com pesquisas da Embrapa, ela se tornou conhecida no Suriname em 1895 e chegou à região amazônica em 1898, onde não se tem registro de que a espécie tenha causado prejuízos compatíveis com os registrados na Bahia. Para enfrentar a vassoura de bruxa, é preciso eliminar os frutos que, porventura, estejam infectados, fazer podas depois da aplicação de fungicidas e buscar variedades resistentes à doença, através de órgãos como a Embrapa e a Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac). Por causa da praga a produção brasileira caiu em mais de 50% e o país, na época o segundo maior produtor de cacau em todo o mundo, chegou ter que importar a fruta. A Bahia teve um prejuízo de US$ 10 bilhões, segundo um estudo realizado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em 2002. Ainda hoje se realizam pesquisas em busca de variedades de cacau que sejam capazes de resistir ao fungo que chegou na calada da noite e se apossou da cultura do cacau. 

Peixe Leão Uma das maiores ameaças à biodiversidade marinha do Caribe chegou a alguns anos à costa brasileira. Os peixes-leão ameaçam principalmente os ecossistemas de recifes quando estão fora de seu habitat natural. Sem seus predadodres naturais, eles ficam livres para consumir de forma voraz várias espécies de peixes de recifes, acabando com a biodiversidade marinha. O peixe-leão é uma espécie invasora do Indo-Pacífico que se espalhou inicialmente pelo mar do Caribe. Ele come tudo que encontra pela frente e se multiplica numa velocidade espantosa. Em pouco tempo, torna-se o peixe dominante do ecossistema. Em muitos recifes de coral do Caribe hoje, a única coisa que você encontra é o peixe-leão. Os outros peixes nativos do ecossistema tiveram suas populações drasticamente reduzidas ou desapareceram por completo, devorados por ele. O peixe-leão é famoso pela beleza e pelos espinhos: são 18, espalhados pela região dorsal, com um veneno capaz de causar dores, náusea, e até convulsões em seres humanos. Peixes maiores, que poderiam se alimentar dele, como tubarões e garoupas, não o veem como parte do cardápio. É uma peça fora da cadeia alimentar. O primeiro peixe-leão do Brasil foi avistado em maio de 2014, em Arraial do Cabo. Pesquisadores da vida marinha acreditam que uma infestação da espécie nos mares brasileiros é uma questão de tempo. 

Caramujo africano O caramujo está na lista das 100 piores espécies invasoras do mundo, elaborada pela União Internacional para Conservação da Natureza a partir daquelas espécies que não apenas conseguem “viajar” a novos lugares, mas também “prosperar e dominar novos espaços”.  O caramujo chegou aqui na década de 1980 como uma aposta comercial, como um tipo mais barato de escargot, já que a espécie era consumida na África. No entanto, como, no Brasil, não houve tanta demanda, o esperado comércio fracassou. Criadores lançaram, então, os animais na natureza de forma irresponsável e, devido à sua alta capacidade de reprodução, o bicho se espalhou pelo país. Na Bahia, está, principalmente, nas cidades da costa litorânea. Além de causar prejuízos à biodiversidade, por destruírem plantas nativas e comerem até outras espécies de caramujo, o molusco está associado a doenças em humanos – inclusive, há casos de meningite. Ele também hospeda larvas de Angiostrongylus costaricensis, que causa a angiostrongilíase abdominal. A prevenção no contato com o animal e o controle das populações do caramujo são fundamentais. O molusco está presente atualmente em 23 das 26 unidades da federação. um exemplar do molusco pode colocar uma média de 200 ovos por postura e se reproduzir mais de uma vez ao ano.

Coral-Sol A beleza da cor fluorescente do coral-sol disfarça um dos piores predadores estrangeiros na Bahia atualmente. O animal, oriundo do Pacífico, que é um cnidário (mesmo grupo de anêmonas e caravelas), veio do Oceano Pacífico e ameaça praticamente todas as outras espécies de corais. O bicho é considerado uma grave ameaça à biodiversidade local. O coral-sol já está em todo o litoral baiano. A introdução da espécie se dá a partir de plataformas de petróleo porque ele se adere às estruturas  e por onde elas navegam, ele vai sendo disseminado e acaba ocupando as áreas de fixação das espécies nativas. A costa brasileira, ao contrário do Pacífico, que chega a ter mais de 500 espécies de corais, tem apenas 18 corais naturais. Hoje, na avaliação do Ibama, o coral-sol deve estar presente em todo o litoral da Bahia, mas é possível identificar alguns focos de maior incidência, como a Baía de Todos os Santos, devido à interferência da navegação. Os primeiros registros da presença da espécie no país datam de 1980, no Rio de Janeiro, na região da Bacia de Campos, onde há grande atividade petrolífera. Estudos científicos comprovaram que o coral-sol é um invasor eficiente, com rápido crescimento, reprodução precoce, por se estabelecer ou invadir novos ambientes no litoral brasileiro, atestando a sua habilidade invasora.

Javalis O javali é uma espécie exótica invasora que causa prejuízos tanto para a biodiversidade quanto para a agropecuária. Esse porco selvagem está na lista das 100 piores espécies invasoras do mundo, elaborada pela União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês).  Na Bahia, os primeiros relatos de ataques de javalis a plantações são de 2010. Acredita-se que os animais tenham sido trazidas por famílias do Sul do país que se mudaram, principalmente, para as cidades do Oeste, onde a presença dos bichos é mais frequente. Os javalis se reproduzem rápido e não tem predadores no Brasil. O javali é uma espécie de porco selvagem nativo da Europa, Ásia e norte da África. Os javalis destroem plantações – especialmente, soja e milho, que são algumas das principais culturas do Oeste, devido ao agronegócio. É difícil estimar um prejuízo causado pelos animais porque não há obrigatoriedade de notificação dos casos. Dentre os problemas ambientais causados pela espécie invasora, estão os assoreamentos de pequenos rios, erosão e extinção de algumas espécies de flora. O javali desloca populações nativas de porcos-do-mato/catetos, por ser mais agressivo, compete por alimento, e causa danos à regeneração de florestas. Á medida que o tempo passa, o aumento rápido da quantidade de animais torna o problema cada vez mais grave.