‘O racismo é sutil, magoa muito', diz estilista baiano Isaac Silva

Com passagens pelo São Paulo Fashion Week e Afro Fashion Day, ele fala sobre moda, bem-estar e planos para 2021

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  • Laura Fernades

Publicado em 11 de janeiro de 2021 às 06:15

- Atualizado há um ano

. Crédito: Divulgação

Quando viu que o mercado da moda era tão racista, o estilista baiano Isaac Silva, 31 anos, pensou em desistir. Mas antes que o roubassem o sonho, ele disse: "Não. Vou fazer a diferença, mesmo que doa". Estreante dos últimos desfiles do São Paulo Fashion Week (SPFW) e do Afro Fashion Day (AFD), Issac conta que no início da carreira buscou as referências negras já existentes e quando viu que não estava sozinho se agarrou à frase "acredite no seu axé".

É esse lema que hoje está estampado em sua loja no Centro de São Paulo e dá nome à coleção mais recente inspirada em Iemanjá, apresentada no desfile mais cobiçado do Brasil, o SPFW. São roupas que servem tanto para homem quanto para mulher e que cabem em todos os tipos de corpos: altos e baixos, magros ou gordos. Moda, para ele, tem que ser sinônimo de bem-estar e de reforço na autoestima. (Foto: Divulgação) Queridinho de famosas como Taís Araújo, Djamila Ribeiro, Liniker e Elza Soares, o baiano nascido em Barreiras conta como se interessou pela moda e como driblou o mercado que não o aceitou de início. Em entrevista ao CORREIO, Isaac defende que representatividade importa e que a moda funciona como ferramenta para enfrentar o preconceito. “O racismo é tão sutil, magoa muito. É uma sutileza cruel”, denuncia. Confira:

De que forma a moda está ligada ao bem-estar? A moda inspira muito. Só de tomar um banho e passar um produto de cosmético, que já é moda, mexe com a autoestima. Nesse momento de pandemia, as pessoas procuraram roupas confortáveis e alegres. A inspiração do autocuidado reflete na moda. Você vê que todas as marcas investiram no bem-estar, no conforto. Minhas coleções sempre foram muito híbridas, para todos os tipos de corpos, gêneros, podem vestir tanto homem quanto mulher. A marca já vinha nesse viés - com as estampas, com a frase "acredite no seu axé", com mensagens positivas nas redes - a pandemia só fez reforçar. Quero que as pessoas não se sintam obrigadas, mas queiram comprar. Caso não queiram, que se sintam pelo menos inspiradas. Eu, que trabalho com moda, preciso pensar que existe positividade.

O bem-estar também passa pela representatividade? Hoje, com todos os levantes de questões de gênero, raça, questões do feminino, masculino... Uma marca que não fala sobre o momento atual, não cabe mais existir. As pessoas buscam marcas que se posicionem de alguma maneira. Onde está nossa representatividade na moda? Cadê nossos corpos normais? Desde a primeira coleção, eu sempre trouxe uma representatividade maior da mulher negra brasileira, que é a base dessa pirâmide. Quando coloco as pessoas negras no protagonismo, nao existe perda. É uma marca que contribui contra o racismo. Quer ser antirracista? Compre de pessoas pretas.

Em entrevista recente, você disse que o mercado da moda não te absorveu de início. Como driblou essa falta de espaço? Não desisti. Procurei referências e encontrei Luiz de Freitas, estilista do Rio de Janeiro da década de 80, que pouco se falou dele. Encontrei Ann Lowe, que fez o vestido da Jacqueline Kennedy; os blocos afros, Goya Lopes... Quando busquei a representatividade e vi que nao estava só, veio a mensagem "acredite no seu axé", na sua essência.

Você, como poucos, seguiu em frente. Mas muita gente desiste. Quais são os danos?A baixa autoestima. Quando o trabalho não é reconhecido, a pessoa se acha um nada. Muito difícil você ter um sonho e encontrar essas barrerias. Dói muito viver em um mundo preconceituoso. Muita gente desiste e acaba vivendo uma onda depressiva. Mas diria a essas pessoas para acreditarem no seu potencial, porque em primeiro lugar a gente tem que acreditar na gente. Assim fica mais fácil ouvir tanto o "não" quanto o "sim". Diria para se dar essa chance.

Nesse processo de conquistar espaço na moda, alguma situação de racismo ficou marcada em sua memória? Nunca teve algo explícito, porque o preconceito é uma neblina. São coisas sutis que doem muito. Sutileza quando vai fazer uma entrevista de emprego e nao vai conseguir aquela vaga por ser nordestino, ou por conta da cor. Dentro da moda, nos meus três primeiros desfiles, sempre coloquei um percentual grande de modelos negros, negras e gordos. Mas as agências não tinham esses modelos. O preconceito racial não me dá a oportunidade de conhecer esses modelos, então eu fui buscar alternativas e treinar pessoas. Tinha maquiadores que só levavam produtos para pele branca, então os modelos negros tinham que levar sua própria maquiagem. O racismo é tão sutil, magoa muito. É uma sutileza cruel.

Por que você buscou a moda? Qual foi o momento em que pensou: "Quero isso para minha vida"? Tirei essa ideia do interior, sou de Barreiras. Tem uma costureira que é amiga da família e eu via as pessoas fazendo suas próprias roupas, achava lindo. Quando vim morar em Salvador, que estava no auge da moda, ela estava muito presente na minha vida. Fui pesquisar, vi que existia faculdade e conheci muita gente. A moda une pessoas. Quando vi que o mercado de moda era tão preconceitusoo e racista, pensei em desistir. Mas disse: 'Não, vou fazer a diferença mesmo que doa'. Mas, primeiramente, trabalhei minha autoestima.

Na entrevista à Folha de S. Paulo, você falou sobre a democratização da primeira fila do desfile do SPFW, que em 2020 foi virtual. Quais ensinamentos a pandemia trouxe? Uma moda mais democrática. Todo mundo que tem acesso à internet pôde assistir ao desfile. Se tornou mais democrático ainda. Mas muita coisa ainda precisa mudar no mercado da moda, nas bases da sustentabilidade e da humanização. Saber de onde está comprando tecido, saber o impacto que as empresas têm no meio-ambiente e qual é o impacto humanizado: mão-de-obra escravizada, ou profissionais bem remunerados?.

O que representou, para você, participar do Afro Fashion Day? Foi a primeira vez que participei do Afro Fashion Day, acho que é um evento muito importante. E poder vestir uma modelo plus size, negra, com tanta representatibidade em Salvador é só um marco de que a moda está indo pelo caminho certo.

Me fala sobre a coleção nova e de que forma ela contribui com o ano de 2021. Trabalho muito a cultura afro-brasileira através da religião. É uma forma de se reconhecer como pessoa negra no Brasil. A marca contribui trazendo Iemanjá, de maneira que as pessoas não tenham medo dela. Quando trago isso pra passarela, é uma maneira de combater o preconceito. Coleção Flores para Iemanjá (Foto: Divulgação) Novos projetos para 2021? O grande sonho é montar a loja de Salvador. Quero que a marca se mantenha saudável financeiramente para continuar com todos os funcionários e quero fechar duas grandes coleções. A próxima deve ser online, mas a segunda acredito que a gente vai conseguir fazer de forma presencial e com convidados. Quero tentar cada vez mais democratizar essa moda e trazer positivismo também.