'Para os baianos, mesmo que a alegria não seja constante, ela é um valor'

Autora do livro A Invenção da Baianidade, a professora Agnes Mariano diz que Salvador construiu uma imagem festiva de si

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  • Doris Miranda

Publicado em 29 de março de 2019 às 04:30

- Atualizado há um ano

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Agnes Mariano é jornalista, autora do livro A Invenção da Baianidade, que  será relançado dentro de poucas semanas, e professora da Universidade Federal  de Ouro Preto. Aqui, ela fala um pouco da relação entre baianidade, música e a cultura da festa que rege Salvador.

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Confira entrevista a seguir:

Você enxerga essa associação da música com a alegria em Salvador?

Sem dúvida, a Bahia da primeira metade do século XX já era cantada como um lugar especial. Compositores baianos e não baianos falavam de Salvador e da Bahia abordando temas como festas (Bonfim, Navegantes), samba, dança, requebrado, dengo, sensualidade, jeitinho, comidas afrodisíacas, um ardor que estaria nos alimentos e nas pessoas, o cuidado na forma de se vestir, sedução. Os baianos sempre foram descritos, portanto, como pessoas que se dedicam a usufruir a vida.

Mas percebi mudanças também no discurso da baianidade dos anos 60 em diante. Período em que Salvador sai da estagnação econômica e lentidão em que vivia. É nesse segundo período que a palavra alegria passa a ser muito mais referida e, sim, o Carnaval, e também associações culturais ligadas a essa festa passam a ser muito referidas nas canções.

A imagem que Salvador constrói de si e que constroem a respeito dela tem forte presença de temas como festa, Carnaval, prazer, despojamento, alegria.

Pensa que se não houvesse essa cultura carnavalesca, a música local teria enxergado esse modo de expressão de sentimentos?

Acho que sim. Talvez não do mesmo modo, tão intenso e explícito como o Carnaval. Os discursos identitários são discursos, mas não são ilusões. Eles se inspiram em práticas e representações que já existem aí e reforçam certas concepções, certas memórias em detrimento de outras. A sociabilidade vivida em Salvador tem dor, problemas, conflitos, mas tem também muitos traços de otimismo, gregarismo, comunhão, cultivo do prazer, da celebração, que levam à alegria. E quanto mais dizemos/cantamos para nós mesmos que somos assim, colaboramos para reforçar essa ideia.

Vivo em Minas Gerais, que tem semelhanças com Salvador, pela forte presença afro-brasileira, mas a sociabilidade aqui é muito distinta. As pessoas frequentemente são contidas, discretas, reservadas, preocupadas, exigentes consigo mesmas, críticas. Existe o Carnaval, a brincadeira, a ludicidade, como em qualquer lugar, mas eles não ocupam o mesmo espaço no cotidiano e imaginário das pessoas.

Você diria que a música é um dos pilares de sustentação da baianidade? E que a baianidade está fortemente calcada nessa cultura da alegria e descontração?

A oralidade é central para nós, mais influente que a cultura letrada. Somos um povo de letramento recente. O oral chega a um número maior de pessoas e emociona. Além disso, a música, especialmente ritmada, e acompanhada da dança, é gregária, própria para ouvir, tocar, cantar e celebrar a vida juntos. O que tem muito a ver com a sociabilidade local, de matriz afro-brasileira. Os ritos de origem africana envolvem música, dança, expressão de sentimentos, comensalidade, comunhão. São participativos. Num terreiro de candomblé, as pessoas batem palmas, cantam, comem juntos. Numa igreja, é preciso conter-se, ficar em silêncio, ajoelhar-se, contemplar. A cultura afro está impregnada nos baianos, sejam eles negros ou brancos e de qualquer religião.

A música tem uma presença muito forte na cultura baiana. Inclusive de uma forma abusiva. As pessoas ouvem música muito alto, em qualquer bairro, em qualquer lugar a qualquer hora. Soube que existe até uma leniência da legislação em certos períodos do ano. O nosso amor à música em Salvador não precisa ser sinônimo de desrespeito ao espaço do outro.

De qualquer modo, a cultura é viva, as as identidades se modificam o tempo todo. Salvador tem mudado muito, rapidamente, tem crescido. O que ela se tornará e as imagens e discursos que construiremos sobre quem somos e como somos pode mudar.

Na sua opinião pessoal: quem é o seu porta voz da alegria de nós baianos?

Existem muitos baianos que se tornaram figuras públicas em suas áreas de atuação: músicos, compositores, cantores, escritores, intelectuais, publicitários, jornalistas, etc. Vejo em comum, na imagem pública de muitos deles, o reforço dessas ideias que estamos tratando aqui: descontração, ludicidade, alegria, simpatia, humor. Não me parece uma ilusão. De fato, é comum que baianos ou pessoas que viveram muito tempo na Bahia, especialmente em Salvador e Recôncavo, cultivem uma certa dose de otimismo em relação à vida, que tenham uma certa capacidade de rir de si mesmo, de não levar tudo tão a sério. No mínimo, podemos dizer que, para os baianos, mesmo que a alegria não seja constante, ela é um valor.

Isso é inspirador e importante. Vivemos num tempo em que quantidades enormes de pessoas sofrem de depressão, hipocondria e de um derrotismo paralisante. Talvez por isso tanta gente ainda busque Salvador acreditando na “Bahia que vive pra dizer / Como é que faz pra viver” (GIL).