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Vinicius Nascimento
Publicado em 20 de dezembro de 2020 às 07:00
- Atualizado há 2 anos
No reinado de Momo, Salvador fica entregue a Baco, o deus do vinho, da folia e, em bom baianês, das fuleiragens e aleotrias que são liberadas nos sete dias de Carnaval. Os donzelos desavisados passam aperto em terra firme, onde falta rua para conter tanta alegria. Mas, no fundo do mar, a algazarra aflige é outro tipo de virgenzinho, o Stegastes fuscus, um peixinho que habita recifes de coral e é popularmente conhecido pela alcunha de ‘Donzela’.>
Um estudo de cientistas das universidades federais da Bahia (Ufba) e Rio Grande do Norte (UFRN) comprovou que a poluição sonora gerada em terra, causa impacto significativo na vida marinha. Publicada na revista Biological Conservation, com ajuda da Agência Bori, a pesquisa chegou a essa conclusão após medir a intensidade acústica (barulho) dos trios elétricos durante o Carnaval de Salvador, no circuito Barra-Ondina, em 2018. >
Foram comparados os comportamentos de peixes que vivem no recife próximo ao litoral, a cerca de 100 metros de onde passam os trios e outros, da mesma espécie, que vivem em um recife similar, mas afastado dois quilômetros ao leste da fonte sonora, onde não havia ruído. >
Os pesquisadores mediram o som fora e dentro d'água, sendo que para este segundo caso foi utilizado um hidrofone, equipamento que permite a medição do som de forma submersa. Durante o Carnaval, a média foi de 30 decibéis a mais do que em dias comuns.>
‘Jardineiro do mar’>
O peixe Donzela é muito comum no Atlântico Oeste e é conhecido como o 'jardineiro do mar' porque geralmente faz um jardim com as algas de que se alimenta. Seu tamanho chega a 20 cm e tem como característica as laterais achatadas e uma mudança de coloração durante as fases da vida. Por ser uma espécie territorialista, tem o hábito de proteger mais suas fontes de alimento do que o habitat, como locais de reprodução ou abrigo, por exemplo, e chega a perseguir os peixes maiores para expulsá-los dos seus domínios, principalmente quando há alimento em abundância.>
O caso é que durante o Carnaval, o Donzela fica mais mole e vacilante contra seus predadores; além de diminuir seu ritmo de alimentação. Um dos autores do estudo, o doutor Antoin>
Leduc, pontua que a música extremamente alta dos trios elétricos é, na verdade, uma forma de poluição sonora também no ambiente marinho. O peixe Donzela é mais ativo de dia e à noite se esconde em tocas (Foto: Francisco Barros/Ibio-Ufba/Divulgação) Hábitos diurnos>
O Donzela é um peixe diurno. A maior parte de sua atividade ocorre entre a tarde e o pôr do sol. A pesquisa foi feita durante esse horário do dia justamente para analisar o peixe em seus momentos de maior ação, já que durante a noite, costuma se abrigar em tocas.>
Durante a exposição aos altos volumes, os peixes Donzela não saíram de seus recifes por causa do som, mas fizeram 29% menos tentativas de alimentação do que antes do Carnaval. Além disso, durante o período de festa momesca, a distância para que percebessem um potencial predador e iniciassem a fuga diminuiu em aproximadamente 50% quando comparados aos peixes que estavam no recife distante do carnaval, e, por consequência, do barulho."Durante o carnaval, vimos que esse peixe deixou o predador se aproximar mais, ou seja, ele estava distraído pelo barulho e ficou menos atencioso ao risco da chegada do predador, o que evidentemente é perigoso para essa espécie", explica Antoine Leduc.Para simular a reação a predadores, eles usaram um peixe falso feito de fibra de vidro com 30 centímetros de comprimento, do tamanho real de uma espécie comum nos recifes. A reação foi medida para 252 peixes donzela diferentes.>
"A grande novidade desse estudo é mostrar que o barulho produzido na terra firme pode afetar a vida marinha", explica o cientista.>
Para Antoine, o estudo mostra a importância de se considerar fontes terrestres de emissões acústicas para se planejar o manejo e conservação dos ambientes marinhos costeiros. Além disso, ele questiona “se a intensidade acústica emitida no carnaval é saudável para as pessoas já que até os peixes sofrem impactos negativos dessas emissões acústicas”.>
O pesquisador ainda pontua que a espécie Donzela não possui uma sensibilidade acústica avantajada e mesmo assim sofreu impactos significativos em sua rotina em períodos de poluição sonora elevada.>
Novas pesquisas>
Professor do Instituto de Biologia (Ibio) da Ufba, Francisco Barros participou do estudo e diz que a pesquisa abre horizontes e levanta questionamentos para novas problematizações sobre a poluição sonora no ambiente marinho. Se um peixe territorial como o Donzela sofreu impactos significativos, como podem ser afetadas a vida de outras espécies de peixes com maior sensibilidade acústica? E outras espécies de animais, até invertebrados, que vivem nesse ambiente costeiro?"O grande alerta é que uma festa do tamanho do carnaval já tem impactos de produção de lixo, impactos sociais e agora mostramos esse novo impacto. Além de toda a perturbação sonora nos seres humanos, estamos afetando negativamente os ambientes marinhos próximos ao circuito", diz o professor do Ibio.O órgão responsável pela fiscalização dos decibéis emitidos pelos trios elétricos é a Secretaria Municipal de Ordem Pública (Semop). O limite de som que pode ser emitido pelos veículos é de 110 decibéis, o que é equivale a uma turbina de avião, de acordo com o Espaço Aberto da Universidade de São Paulo, que também afirma que o máximo de exposição diária a esse volume permitida para que o ser humano não tenha problemas de saúde é 15 minutos diários.>
Ainda de acordo com Francisco Barros, o estudo traz um alerta considerável sobre o Parque Marinho da Barra, espaço de 332.153 metros quadrados, que vai do Farol até o Forte de Santa Maria. "O Parque Marinho da Barra, que foi idealizado pelo coletivo Fundo da Folia e contou com o apoio de vários outros setores e instituições, foi criado por uma demanda real da sociedade soteropolitana. Ali é uma área de riquíssima biodiversidade marinha, com patrimônio cultural subaquático importante e que certamente também sofre com esses efeitos", aponta.>
Antoine Leduc pontua que ainda não se sabe com precisão quais são as consequências dessa poluição sonora para as espécies quando se pensa no longo prazo. É necessário que outros estudos sejam realizados para avaliar como essa fonte de poluição afeta outras espécies e até qual distância da costa os efeitos acústicos do Carnaval impactam o ambiente marinho.>