Por medo do coronavírus, pessoas se recusam a sepultar idosa em Canudos

Trabalho teve que ser realizado por agentes funerários; prefeitura disse que não administra o cemitério

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  • Daniel Aloísio

Publicado em 9 de junho de 2020 às 05:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Divulgação

Dois agentes funerários passaram por uma situação inusitada após transportar o corpo de uma idosa de 81 anos, vítima de covid-19, de Salvador para Rosário, distrito de Canudos. Na madrugada da última sexta-feira, ao chegar no cemitério, não havia coveiro disponível  - a cidade conta com coveiros voluntários,que, no caso, são os moradores e estes não quiseram correr risco. Também não tinham membros da família presentes. O enterro teve que ser realizado pelos próprios funcionários da funerária.  

“É a primeira vez que passei por essa situação. A gente tinha feito uma viagem cansativa, ida e volta são quase 800 quilômetros. Nos sensibilizamos e fizemos um trabalho que não era nosso”, disse José Silva, dono da funerária Pax Monte Sinai, que fez o trabalho com o funcionário Ricardo Teixeira.  

A idosa não teve o nome divulgado pela família e estava internada no Hospital Roberto Santos para tratar de outra doença, quando contraiu o coronavírus e veio a óbito. O corpo deixou Salvador no início da noite da sexta e chegou no cemitério depois da meia-noite. Sua única filha teve que permanecer na capital baiana, pois também contraiu o vírus  “Não encontramos ninguém na rua que nos indicasse o caminho do cemitério, que fica há uns dois quilômetros da comunidade”, disse Silva. Sua sorte foi que um pastor se sensibilizou e indicou o percurso.  Júnior da Pax e Ricardo Teixeira são os agentes funerários que realizaram o sepultamento (Foto: Divulgação) Josy Ribeiro, 43, sobrinha da vítima, agradeceu ao trabalho: “Não há dinheiro que pague. Eles fizeram o enterro a noite e no escuro. Os dois estavam sozinhos, mas acompanhados por Deus”. 

Ela explicou que existem familiares da idosa que moram no povoado, mas não quiseram participar do sepultamento, pois também estavam com medo de serem contaminados. “Ouvi relatos de pessoas que estavam tremendo de medo. De certa forma, entendo essa situação, esse pavor do desconhecido”, disse.  

Prefeitura  A secretaria de saúde de Canudos informou que o cemitério em questão é administrado pela própria comunidade do Rosário e não pela prefeitura, que também não mantém coveiros no local. “O município foi informado na sexta-feira à noite desse episódio. Para tanto, não houve tempo para deslocar uma equipe que acompanhasse o sepultamento”, disse a secretária Chirleide Ferreira.  Ela informou que o município está se adequando para esse tipo de situação. 

Morador do Rosário, o vereador Daniel Cesar (PSB) disse que, quando morre uma pessoa na comunidade, na maioria dos casos, as pessoas fazem o trabalho de coveiro de maneira voluntária. “Só que a comunidade não tem esse tipo de roupa adequada. Por isso, até abriram a cova mais cedo, mas não ficaram para fechar. Antigamente, tinha alguém contratado pela prefeitura para cuidar do cemitério, mas agora não tem mais”, disse. 

A Secretaria de Saúde da Bahia (Sesab) possui um Plano de Manejo de Óbitos, que exige os seguintes equipamentos para os agentes de sepultura: protetor solar; calçado de segurança tipo Bota de Borracha, que protege contra a umidade e produtos químicos; luvas de procedimento; óculos de segurança; macacão impermeável e máscara.  (Foto: Divulgação) Sem mortes  Com pouco mais de 15 mil habitantes e localizada no nordeste da Bahia, Canudos tem 12 casos de coronavírus confirmados pela vigilância epidemiológica do município e nenhuma morte. O caso em questão não foi registrado pelo boletim epidemiológico do município. “Ela deu entrada no hospital de Euclides da Cunha com o endereço da filha, que mora lá”, explicou Bianca Lubarino, da Vigilância Epidemiológica.  

Mesmo assim, a família confirmou que a vítima morava no distrito do Rosário. “Ela morou em Euclides por muitos anos, trabalhava como empregada doméstica. Mas, quando se aposentou, foi morar no Rosário, onde nasceu, onde tinham os irmãos”, explicou Josy Ribeiro.  

Ainda no Plano de Manejo de Óbitos da Sesab, o traslado de corpos está permitido, desde que os restos mortais sejam sepultados em até 24 horas da ocorrência do óbito. “A gente não pôde esperar o dia amanhecer para realizar o sepultamento, pois iriamos ultrapassar o tempo determinado. Por isso, fizemos tudo sozinhos, não tinha quem segurasse uma lanterna”, disse o dono da funerária Pax.  

Para a família da vítima, o importante é que tudo acabou bem. “Nós olhamos tudo pelo lado positivo e agradecemos pelo sepultamento ter acontecido naquele local, que era um desejo da minha tia”, disse Josy. Procurado, o presidente do Sindicato das Funerárias da Bahia (Sindef/BA) parabenizou os profissionais envolvidos. “Eles foram heróis que ajudaram a salvar memórias e garantir uma última reverência digna. Vamos fazer uma homenagem para eles”, garantiu. 

Relembre   No mês passado, em um distrito do município de Palmeiras, na Chapada Diamantina, moradores fizeram um protesto, bloquearam a via de acesso à região, e ameaçaram com pedras e pedaços de pau a família de Armando Carlos Mateus Barbosa da Silva, que tinha 70 anos e morreu vítima do coronavírus. Os familiares queriam sepultar o corpo do idoso no local, mas tiveram que mudar os planos.  

Na ocasião, em entrevista ao CORREIO, o infectologista e professor da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) Claudilson Bastos disse que o corpo sepultado não oferece risco de contaminação, mas que é preciso adotar alguns cuidados durante o sepultamento. Ele reforçou que, para manusear qualquer objeto, é recomendado usar álcool 70, inclusive nos caixões, e que é preciso evitar aglomerações e seguir as regras de distanciamento social. “Uma vez o corpo enterrado, o vírus não vai subir (sair da terra e contaminar mais gente). É prudente que as pessoas nesse momento tenham a devida consciência, pensem racionalmente e não emocionalmente”, disse o médico. O Ministério da Saúde tem um protocolo para o sepultamento de vítimas do novo coronavírus. As recomendações do órgão são para que eles aconteçam com o caixão fechado, o tempo todo. Os corpos também podem ser cremados, mas, em todos os casos, a cerimônia deve ter no máximo dez pessoas e elas precisam respeitar o distanciamento social, e não se aproximarem do corpo de jeito nenhum. 

O órgão pede também que, se possível, o velório aconteça em local ventilado, de preferência em espaços aberto, e recomenda que seja evitada a permanência de pessoas que pertençam ao grupo de risco: idade igual ou superior a 60 anos, gestantes, lactantes, portadores de doenças crônicas e imunodeprimidos. Além disso, a presença de pessoas com sintomas respiratórios também deve ser evitada como, por exemplo, febre e tosse. 

* Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro