Por que a Senzala do Barro Preto é um lugar tão especial?

CORREIO ouviu pessoas que construíram uma verdadeira relação de amor com a sede o Ilê Aiyê, que foi penhorada por dívida de R$ 400 mil

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  • Vinicius Nascimento

Publicado em 24 de abril de 2020 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Betto Jr.

A vida do bloco afro Ilê Aiyê nunca foi fácil. Antes mesmo de existir, em 1974, o bloco passou por sua primeira censura: a ideia de Vovô do Ilê, um dos fundadores, era nomeá-lo como Poder Negro. A ditadura proibiu sob a acusação de intenções subversivas. O Ilê superou. Assim como superou tantas outras dificuldades até chegar neste abril de 2020, quando o bloco inicia uma batalha judicial para manter o seu maior símbolo: a Senzala do Barro Preto. 

A Justiça do Trabalho determinou o leilão da sede do Ilê, no Curuzu, para arcar com dívidas trabalhistas de R$ 400 mil.  A dívida é fruto de um processo movido pelo cantor Adaelson Evangelista Santos, que integrou a ala de canto da Band’Aiyê. Em 2011, ele relatou à Justiça ter sido vocalista do grupo entre 1988 até 2010. O artista ainda disse ter sido substituído por outro cantor sem que houvesse uma explicação por parte do Ilê. A reportagem não conseguiu localizar Adaelson.

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Vovô confessa um certo pesar por ver a associação processada por uma de suas crias. O diretor diz “não tem muito o que fazer. É lutar para resolver” antes de completar garantindo que a situação será contornada, fazendo valer o espírito de resistência que move o Ilê Aiyê. Ele chegou a oferecer seu patrimônio pessoal para preservar a Senzala e provocou algumas perguntas: o que faz desse lugar tão especial? Qual a sua história? Quem já passou por lá? O CORREIO foi atrás de respostas.

Sonho antigo

A Senzala do Barro Preto não é a primeira casa do Ilê Aiyê. Muito pelo contrário. O terreno, que tem mais de 5 mil m² de área construída, é um sonho que sequer alcançou a maioridade e se tornou real graças ao esforço de pessoas como Vovô e de mãe Hilda, Ialorixá do Ilê Axé Jitolú e mãe biológica de Vovô, falecida em 2009.

Vovô conta que o projeto começou a sair do papel após o grupo deixar o Forte do Santo Antônio Além do Carmo, onde realizou atividades, incluindo ensaios, entre 1982 e 1988. Com apoio do  Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural do Estado da Bahia (IPAC), da Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB) e da prefeitura de Salvador, o Forte abrigou o Centro de Cultura Popular. O Ilê foi indenizado para deixar o local.

Parte desse dinheiro foi investido na compra de um terreno no finalzinho da ladeira do Curuzu, na Liberdade, próximo ao terreiro e casa de Mãe Hilda. Segundo Vovô, não foi preciso um investimento muito grande para comprar o terreno, que custou R$10 mil.

A construção da Senzala, no entanto, custou R$ 5 milhões. A construtora Odebrecht deu apoio e o arquiteto Pedro Rocha, frisa Vovô, desenhou o projeto da sede, que teve financiamento do Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES), Petrobras e Eletrobras . 

Foram cerca de dois anos e meio até o dia 27 de novembro de 2003, data de inauguração da Senzala do Barro Preto."A Senzala do Barro Preto é um sonho realizado", diz Vovô do Ilê.Quase 17 anos depois, o local segue exercendo a função a que se propôs: por lá funcionam a escola Mãe Hilda, que abriga cerca de 100 alunos de ensino fundamental, além da Band'Erê, projeto de iniciação musical para cerca de 400 crianças e a Escola Profissionalizante do Ilê Aiyê. Vovô do Ilê é diretor do bloco afro Ilê Aiyê (Foto: Marina Silva/CORREIO) "A ideia sempre foi construir um espaço para pessoas negras. A Senzala do Barro Preto é uma senzala. Só que diferente daquela onde nossos antepassados viveram. É um lugar de alegria, educação, cultura, transformação da vida dos nossos", contra Vovô do Ilê.

Deusa do Ébano em 2009, aos 18 anos, Edilene Alves atesta que o objetivo do Ilê Aiyê é cumprido dia a dia. E que a Senzala do Barro Preto potencializou esse desejo. Coreógrafa e produtora artística, ela é filha da Yalorixá Edna Alves de Oxum, que acompanhou o Ilê Aiyê desde os primeiros passos da associação. Edilene (à frente, de roupa vermelha) posa para foto com alunas do Grupo de Dança do Ilê na Senzala do Barro Preto (Foto: Acervo Pessoal) “O Ilê Aiyê é um divisor de águas. Eu digo que eu conheço todos os continentes, mais de 20 países é por conta dele. Por conta do que fiz dentro da Senzala. Ele me trouxe uma formação política enquanto mulher negra, educadora e é um reformulador de vidas. Não só pra mim como para toda a minha família. Todo o mundo que conhece o Ilê Aiyê passa por essa transformação de conhecimento. A Senzala do Barro Preto é uma casa da revolução, um quilombo para formar pessoas através da arte com acolhimento e afeto”, conta Edilene.

Após vencer o concurso, Edilene não só realizou um sonho da mãe - que faz parte da ala das Ialorixás que desfilam no Carnaval, como também estreitou laços com o Ilê Aiyê. É professora e coreógrafa da ala de dança, além de participar da produção do concurso da Beleza Negra que venceu há 11 anos."O baque que eu tomei foi muito grande. É como se todo o esforço que você fez para construir o nosso palácio fosse por água abaixo. A gente sabe das dificuldades que o Ilê enfrenta, não é novidade pra ninguém. Mas nunca imaginei que veria uma notícia desse tipo”, disse.  Edilene, em 2009, aos 18 anos, quando foi eleita a Deusa do Ébano do Ilê Aiyê (Foto: Vanderlei Yui/Divulgação) A relação da Senzala do Barro Preto com o Curuzu é intensa. Quem garante é a pedagoga Tairine Maria, que estudou por lá e há 12 anos trabalha na escola Mãe Hilda. Nascida e criada no Curuzu, ela fez cursos de dança, informática, percurssão e canto na Band'Erê - onde praticamente morou até os 14 anos.

Saiu para trabalhar como menor aprendiz e logo depois de ingressar na faculdade de pedagogia teve a oportunidade de inverter o papel: virou professora e  no último ano passou para o cargo de auxiliar pedagógica."O Ilê Aiyê é tudo. É uma casa. Um lugar de existência e resistência. A Senzala do Barro Preto materializa tudo isso. Quando soube da notícia [da penhora] pensei logo nas crianças. O Curuzu é um bairro carente e o Ilê Aiyê resgata várias dessas crianças que não são assistidas por ninguém. Como será a vida delas se perdermos o nosso lugar?", questiona.  Tairine posa para a foto com sua turminha na Escola Mãe Hilda, que atende cerca de 400 crianças gratuitamente (Foto: Acervo Pessoal) *Com supervisão da subeditora Clarissa Pacheco