Porto do Moreira: espaço de sabores e tradições 

Inaugurado há 81 anos, a 'casa de pasto' mantém cardápio original e defende o respeito à memória como segredo da longevidade

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  • Carmen Vasconcelos

Publicado em 13 de maio de 2019 às 05:48

- Atualizado há um ano

. Crédito: Evandro Veiga

Moqueca de carne, rabada com pirão, mocotó, moqueca de arraia, língua ensopada, malassado...tudo isso com o tempero de quem aprecia comida de verdade, sem gourmetizações desnecessárias. Desde 1938, essas e outras iguarias estão no cardápio do restaurante Porto do  Moreira. Um dos primeiros restaurantes abertos em Salvador, e que, ao longo dos seus 81 anos, foi frequentado por clientes como Jorge Amado, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Zeca Pagodinho, além de ter sido ponto de encontro de sambistas, como Ederaldo Gentil, Batatinha e Riachão é o tema da segunda reportagem da série  Quarentões de Sucesso. 

Em janeiro de 2018, os negócios da família – até então comandado pelos irmãos Francisco e Antônio -  sofreram um revés com o falecimento de Antônio Moreira. “Sempre gostei de trabalhar nos bastidores, cuidando da administração e do financeiro. Meu irmão gostava do salão, de conversar com a clientela, assim fazíamos uma dupla excelente”, diz Francisco. Apesar da perda, ele reconhece que  o Porto permanece seguro para os adeptos da culinária afetiva. 

Na verdade, o cardápio permanece o mesmo desde que o carpinteiro português José Moreira da Silva e sua esposa, a filha de italianos Maria Figliuolo, abriram a casa de pasto (como se chamavam os restaurantes).  Para Francisco, essa preservação dos valores talvez seja um dos segredos da permanência de um estabelecimento numa cidade onde abre-se e fecha-se restaurantes ao sabor de temporadas. “Para dizer que nunca mudamos nada, retiramos uma macarronada, que era a predileta de Francesco Chiaretta (fundador do Bella Napoli), que ele sempre pedia com iscas de fígado”, diz.   Pratos como a galinha ao molho pardo continuam fazendo a fama e trazendo a clientela à casa de pasto localizada no Largo do Mocambinho, no centro da cidade (foto: Evandro Veiga) Primazia O sucesso desse restaurante também está pautado no pioneirismo e na sensibilidade de José Moreira, que percebeu que tinha café da manhã garantido na pensão onde morava, no bairro de Nazaré, mas que não tinha lugar para almoçar na cidade. “Foi no estabelecimento de meus avós, que serviam refeições ítalo-brasileiras, que meus pais se conheceram e se casaram”, conta Francisco.

Da percepção de uma lacuna no mercado, nascia então o Porto Moreira que, no início, funcionou no edifício Marquês de Abrantes, quase defronte a atual sede, no Largo do Mocambinho, no Dois de Julho. “Em 1966, viemos para cá e estamos aqui desde então”, completa.

O velho José comandou o restaurante até o início dos anos 1970 e veio a falecer em 1975. Naqueles tempos, o centro da cidade fervilhava de vida com o movimento dos comerciários e dos bancários que não dispensavam uma saideira no final do expediente. “No entanto, as coisas mudaram muito com a degradação do centro, o desmantelamento do trabalho bancário e a violência urbana", diz Francisco. “Hoje, temos um desemprego alto e, na rua, há quem comercialize uma quentinha por R$ 5,00. A lei seca e a falta de segurança impedem que as pessoas estendam até mais tarde e preferimos manter o funcionamento até às 16h”, completa.

Fama discreta Se o happy hour não se estende mais para todos, os clientes mais antigos costumam manter, algumas vezes por  mês e com a devida anuência do proprietário, encontros especiais para celebrar décadas de amizade. Nessas situações, a casa volta a respirar a atmosfera do passado para receber os mais diletos frequentadores que, de fregueses, passaram a ser considerados amigos.

Embora não sejam grandes grupos, eles são fiéis, assíduos e fazem questão de manter a tradição nos mínimos detalhes. Alguns, inclusive, já criaram lembranças na forma de placas ou pratos comemorativos, devidamente assentados nas paredes do porto seguríssimo para marcar suas passagens e registrar a alegria em volta de uma boa mesa, sempre com os melhores pares.

O clima remonta às históricas rodas de samba que contavam com as luxuosas presenças de Ederaldo Gentil, Edil Pacheco, Batatinha, Riachão, entre outros. Mas não é só o passado que faz a fama do Porto Moreira. Durante as gravações da novela das 21h, Segundo Sol, da Rede Globo, o velho restaurante acolheu o elenco que, por diversas vezes, aproveitou a  parte dos fundos do restaurante para celebrar o sabor tópico  da Bahia. 

Este conteúdo faz parte do projeto Correio 40 anos, que tem oferecimento do Bradesco, patrocínio do Hapvida e Sotero Ambiental, e apoio de Vinci Airports, SESI, Salvador Shopping, Unijorge, Claro, Itaipava Arena Fonte Nova, Sebrae e Santa Casa da Bahia. Os encontros memoráveis dos sambistas ficaram registrados nas paredes do restaurante que mantém a aura de encantamento e baianidade (foto: Evandro Veiga) Negócios e família nas porções certas Se manter no mercado por mais de oito décadas com expectativa de muito mais não é uma tarefa fácil e exige resiliência e perseverança. O Restaurante Porto do Moreira já viveu diversas crises econômicas, sequestro de poupança, troca de moeda e se manteve seguro. O segredo dessa solidez é revelado na capacidade de se reinventar sem perder a essência e, segundo Francisco Moreira, o espírito forte, que sempre foi o lema desse Porto. 

O atual proprietário reconhece que não está fácil manter o prumo quando há uma concorrência severa nas ruas e no comércio alimentício; uma perda do poder aquisitivo da população, que começa a ter nas refeições fora de casa um custo alto para manter; a insegurança e falta de estacionamento no centro da cidade que dificulta o acesso e, até mesmo, a fiscalização de alcoolemia que força as pessoas a beberem mais próximas de casa.  Por outro lado, o Porto Moreira oferece algo para além do que pode ser degustado no cardápio e que, por vezes, não consegue ser monetizado: a memória do sabor de uma comida caseira, permeada de afeto, de lembranças de pais, avós; o sentido de pertencimento e identidade garantidos na força de uma gastronomia essencialmente baiana.

Outro desafio é a continuidade. A dupla Francisco e Antônio era complementar. Hoje, Antônio tem a parceria e o apoio da filha, mas reconhece que gerir um negócio familiar tem suas especificidades e que tudo precisa ser feito com tato para que nem as relações familiares e nem as comerciais azedem. 

A despeito de haver uma tendência natural em assumir os negócios no futuro, Cristina Moreira se comporta com uma gerente e entende que a gestão do negócio precisa respeitar toda a tradição presente desde o tempo do avô, que ela não chegou a conhecer. Por outro lado, também acredita que alterações fazem parte da evolução e continuidade.

Terceira geração sob  liderança feminina Cristina Moreira é a terceira geração da família a atuar no restaurante fundado pelo avô. Ao lado do pai, ela quer manter as tradições vivas e renovadas (foto: Evandro Veiga) Representante da terceira geração da família Moreira, Cristina não conheceu o avô, mas herdou dele o amor pelo Porto Moreira. Apesar do afeto, sua presença só virou uma constante no local depois que concluiu sua segunda graduação acadêmica, que foi em Aadministração com ênfase em Recursos Humanos. "Me formei em secretaria executivo e fui trabalhar no Clube dos Diretores Lojistas. Meus pais nunca fizeram muita questão que eu estivesse à frente do restaurante, que sempre foi marcado por uma clientela marcadamente masculina e resistente à presença feminina", conta. 

Atualmente ela ocupa a gerência do local e já conseguiu implantar algumas pequenas modernizações, como o sinal de wi-fi aberto, tv por assinatura e caixa de primeiros socorros, mas reconhece que a tradição seja a marca do negócio da família. 

O que você acha que ainda pode incrementar à tradição do Poroto Moreira?  Há algum tempo cogitamos a possibilidade de nos integrarmos às plataformas de entrega de comida, mas percebemos que para cumprir todas as exigências os valores dos pratos ficariam muito mais alto que o cardápio convencional e isso não seria interessante 

Quem é hoje o público do Porto Moreira? O público é variado. Temos clientes fiéis que frequentam há décadas e trazem seus filhos e netos que também passam a ser clientes habituais. Temos uma clientela nova, que gosta da proposta, do centro e da atmosfera do Porto. Temos os apreciadores da culinária. 

O Porto Moreira é frequentado por alguns famosos, mas vocês quase nunca divulgam isso nas redes sociais. Por que? Gostamos de respeitar a intimidade e o espaço da nossa clientela. Então, se o famoso em questão quiser postar uma foto e nos marcar, ótimo. Do contrário, atendemos com toda a atenção, mas de modo discreto, garantindo ao cliente a tranquilidade de usurfruir do serviço sem maiores afetações. 

Na sua opinião, o que o cardápio do Porto Moreira tem de diferencial Sou suspeita para falar porque frequento aquela cozinha desde a infância e as cozinheiras faziam delicadezas para me agradar, mas acho que a moqueca de carne e o miolo são pratos diferenciados e pouco oferecidos nos outros restaurantes e, pelo paladar dos clientes, acho que são nossos maiores diferenciais. 

Como você compreende as questões relacionadas à divulgação e publicização do Porto Moreira? Não fazemos publicidade no sentido tradicional. Nossos maiores divulgadores são e continuarão  sendo nossos clientes que divulgam em suas redes sociais e comentam com os amigos, retomando uma tradição eficiente.