Qual é a 'cara' das 12 mil vítimas em um ano de covid-19 na Bahia?

Homem, com mais de 80 anos, branco, morador da região Sul e portador de comorbidades: confira o levantamento do CORREIO

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  • Vitor Villar

Publicado em 7 de março de 2021 às 05:30

- Atualizado há 10 meses

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Se as mais de 12 mil vítimas em um ano da covid-19 na Bahia tivessem ‘cara’, ela seria como a de Jurandir Santos, falecido em agosto. Ou a de José Geraldo Menezes, morto em setembro. Homens com mais de 80 anos, moradores da região Sul do estado, brancos e com comorbidades.

Essa ‘cara’ foi montada a partir da maior incidência de óbitos em cada um dos dados coletados e divulgados pela Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab). Veja abaixo, em infografias, o estudo completo do CORREIO.

Por exemplo: entre homens e mulheres, qual sexo tem a maior incidência de mortes? Homens. Entre as faixas etárias, qual foi a mais afetada por óbitos? Maiores de 80 anos. Entre as regiões do estado, qual registrou mais vítimas proporcionalmente? A região Sul.

Mas isso não quer dizer que a maioria das 12 mil vítimas seja de pessoas que se encaixem em todos os traços desse perfil.

Para entender melhor, o maior número de mortes ocorreu entre pardos e moradores da região Leste (Região Metropolitana de Salvador e Recôncavo). Mas a maioria da população baiana, segundo o IBGE, também é de pardos e vive nessa porção do estado.

Para resolver isso, usa-se em epidemiologia a incidência por 100 mil habitantes. Assim, é possível entender em quais populações a covid-19 causou mais vítimas ao longo desse ano de pandemia.

É justamente essa faixa etária, maiores de 80 anos, que começa a ser vacinada na maior parte da Bahia em meio a esse marco histórico. E é a região Sul que vem registrando as maiores taxas de ocupação de leitos de UTI em meio ao atual recrudescimento da doença. (clique na imagem para ampliar)

As vítimas Jurandir Santos tinha 81 anos e morava em Ilhéus. Tinha diabetes e câncer de próstata, e acabou falecendo por complicações agravadas pelo coronavírus. Ele veio a óbito no dia 20 de agosto, no Centro de Atendimento à Covid-19, unidade pública da cidade.

Antes, Jurandir tinha ficado um mês internado em leito clínico tratando a covid-19. Chegou a ser liberado, mas pouco depois de chegar em casa teve uma piora das comorbidades e precisou de um novo internamento, desta vez em UTI.

“Naquele dia (19 de agosto), não tinha UTI em lugar nenhum da região. Nem mesmo no privado. Acharam uma vaga em Salvador, mas a transferência seria por estrada e meu pai não aguentaria. Achamos em Vitória da Conquista, mas também era longe”, lembra a filha, Josane Silva. Seu Jurandir ficou sem atendimento de UTI e acabou falecendo (Foto: arquivo da família) Só conseguiram vaga no dia seguinte, mas Jurandir já estava debilitado e não resistiu. Ele faleceu à noite. No mesmo dia, pela tarde, faleceu o seu filho, Elton Mário da Silva Santos, de 53 anos, também por covid-19. Ele era policial civil e estava internado no Hospital de Ilhéus, privado.

Quase um mês depois, no dia 16 de setembro, faleceu José Geraldo Menezes, em um hospital privado de Jequié. Ele tinha 87 anos e era morador de Ipiaú, cidade próxima. Sofria de doenças cardiovasculares e de problemas respiratórios.

José Geraldo estava sendo tratado em casa, com a família orientada por médicos. Chegou a ficar clinicamente curado dos sintomas da covid-19, mas as sequelas persistiram e agravaras suas comorbidades. Foi internado, sofreu hemorragias, foi entubado, mas não resistiu.

“A gente nunca acha que vai acontecer na família da gente. Sempre acha que vai acontecer com o outro. Só que essa doença está mais próxima do que a gente imagina. E tudo o que aconteceu com meu avô foi por sequelas da covid-19. Ela mexe com o corpo todo”, lamenta Matheus Menezes, neto da vítima. Matheus com o avô José Geraldo, vítima da covid-19 (Foto: arquivo da família) Por que? Essa é a pergunta que logo salta à mente: por que essa ‘cara’? A estatística de homens com mais de 80 anos com comorbidades vai de encontro à população baiana, que em maioria (51,5%) é formada por mulheres e por jovens de 20 a 39 anos.

Tanto o número de mortes – 6,8 mil homens até quarta-feira – como a incidência de óbitos – 95 a cada 100 mil homens – têm sido maiores do que entre mulheres. A quantidade e a incidência de casos confirmados também são maiores entre eles.“A análise sobre os dados está correta, mas é preciso deixar claro que ainda não temos como cravar uma explicação. A ciência está estudando o vírus e o que se pode levantar nesse sentido são hipóteses”, salienta Ramon Saavedra, doutorando em epidemiologia do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da UFBA.O epidemiologista Márcio Natividade, professor do ISC, concorda: “Pode ter relação com o fato de que o homem cuida menos da saúde e é menos assíduo a hábitos como uso de álcool em gel e de máscaras. Basta você sair na rua para ver mais homens sem máscara do que mulheres”.

“O senso comum é que homens acreditam menos na gravidade da doença. Mas são hipóteses, apenas, não há casualidade comprovada”, completa o professor, que cita questões sociais como natureza do trabalho e educação como outras possíveis influências.

Márcio também destaca que a incidência de casos confirmados tem sido muito maior entre pessoas de 30 a 59 anos – ou seja, em idade produtiva. Porém, a de mortes é maior entre os maiores de 80 anos. O que indica que não são os idosos quem mais contraem a doença, porém são os que têm resistido menos.

A explicação para isso é mais clara: “Diz respeito ao curso natural da vida. Populações idosas são mais vulneráveis, tanto no que diz respeito à presença de comorbidades, que aparecem mais nesse estágio da vida, como também ao próprio sistema imunológico mais frágil”, diz Márcio.

Ao longo do tempo Esse perfil, de homem com mais de 80 anos, é a principal vítima da covid-19 desde o início da pandemia. O CORREIO fez essa análise de três em três meses. Em 6 de junho, a incidência já era maior entre eles.

O que mudou ao longo do ano foram a cor e a região com maiores incidências de mortes. Com três meses de pandemia, as cidades do Leste, puxadas por Salvador, ainda eram as mais afetadas por óbitos.

Em 6 de setembro, seis meses após o primeiro caso, as cidades de Itabuna, Ilhéus, Uruçuca, Ibirataia e Ibicaraí dispararam em número de óbitos. Com isso, o Sul tornou-se o epicentro das mortes na Bahia, condição que perdura até hoje.

Jurandir e José Geraldo viviam no Sul da Bahia. Além de Ilhéus e Ipiaú, a região se estende por 68 municípios em torno das cidades de Itabuna, Valença e Jequié.

Entender essa incidência elevada no Sul será um dos desafios dos pesquisadores baianos, como destaca Ramon Saavedra. “Precisaria de uma análise mais a fundo de como está organizada a rede assistencial do SUS por lá. Historicamente, é uma região cujos indicadores sempre nos chamaram a atenção e nos deixaram alerta em outras epidemias, como arboviroses, a exemplo da dengue”, diz o epidemiologista.“Para quem acompanha há mais tempo, o Sul sempre chamou a atenção. Seria importante entender como a vigilância está organizada. Para que se suspeite mais oportunamente e encaminhe o paciente para uma unidade de saúde de forma mais precoce”, completou Ramon.Até junho, a Sesab não registrava a cor ou a raça das vítimas da covid-19. Em 6 de setembro, a secretaria já divulgava esses dados. Naquele momento, com seis meses de pandemia, tanto a maior quantidade como a maior incidência estavam sobre pardos, conforme divulgado.

Em 6 de dezembro, a incidência passou a ser levemente maior sobre os brancos, diferença que se consolidou na fase atual. No entanto, a imprecisão desses dados é grande: 1.071 mortes até o último dia 3 não possuíam qualquer informação de cor, a maior parte por conta do não-recolhimento dessa informação nos primeiros meses de pandemia.

6 de junho de 2020 (três meses de pandemia)

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6 de setembro de 2020 (seis meses de pandemia)

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6 de dezembro de 2020 (nove meses de pandemia)

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6 de março de 2021 (um ano de pandemia)

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Fatores de risco A influência de alguma comorbidade é determinante para a sobrevivência ou não do paciente de covid-19. Das mais de 12 mil pessoas mortas em um ano de pandemia, 70% tinham alguma doença crônica. Esse percentual veio caindo a cada três meses: em junho, era de 76%.

Isso não significa, necessariamente, que o número de mortes de pessoas sem comorbidades tenha aumentado. Ele vem caindo, de 14,7% em junho para 8,5% atualmente. Como pode? Mais uma vez, pesou a falta de dados: os óbitos que ficaram sem informações de comorbidades aumentou de 9% para 21%.

As doenças mais associadas às mortes não mudaram ao longo do ano. Hipertensão, diabetes e doença cardiovascular estão desde o início da pandemia no topo da estatística.

Como destaca Márcio Natividade, essa estatística possui forte relação com o registro maior de óbitos entre homens com mais de 80 anos. Hipertensão e doenças cardiovasculares são reconhecidas na medicina como enfermidades mais comuns ao sexo masculino.“Cardiopatias, problemas renais, diabetes são comorbidades mais relacionadas à terceira idade. E, como conjecturamos, o homem toma menos cuidado com a sua saúde clínica no curso da vida, e isso se reflete na presença dessas doenças quando vira idoso”, analisa o pesquisador.

6 de junho de 2020 (três meses de pandemia)

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6 de setembro de 2020 (seis meses de pandemia)

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6 de dezembro de 2020 (nove meses de pandemia)

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6 de março de 2021 (um ano de pandemia)

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