Qual sua lembrança nas livrarias de Salvador? Repórter foi pedida em namoro na Cultura

'Aqueles livros já ouviram risadas, choros, desabafos e fofocas aos montes', lembra

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  • Carolina Cerqueira

Publicado em 6 de julho de 2021 às 05:45

- Atualizado há um ano

. Crédito: Acervo pessoal

Já ouvi dizer que todo mundo é uma mistura de todas as histórias que viveu. E não é diferente com quem é repórter. Justamente por isso, certas reportagens mexem com a gente de uma forma diferente, fazendo com que um relato pessoal queira pular para a tela do computador e se juntar aos relatos dos personagens ouvidos. Foi isso que aconteceu comigo nessa matéria. Ao saber do fechamento da Livraria Cultura, meu coração ficou apertado e quis compartilhar com vocês, leitores, a minha relação com essa livraria.

A Cultura foi inaugurada no Salvador Shopping, que todo mundo chama de Shopping Salvador, e eu vou pedir licença aqui para assim me referir a ele, em 2010. No ano seguinte, eu fui estudar em um novo colégio, iniciando o Ensino Fundamental. Num processo natural, fui conhecendo pessoas novas e formando um grupinho de amigos. Eu estava naquela fase da adolescência de querer sair sem a supervisão dos pais e os shoppings, por serem fechados, eram os lugares que os meus pais e os pais dos meus amigos permitiam que a gente fosse. E todo mundo achava o máximo esse grande marco de independência. Sair para rolê no Shopping Salvador era um evento e todo sábado era dia de bater ponto por lá.

O programa de sempre era cinema, mas a Livraria Cultura era parada obrigatória. Ou ela era ponto de encontro ou o destino final do rolê. Aquela escada enorme de madeira se tornava o lugar mais confortável do mundo e a gente se espalhava por ali mesmo. Aqueles livros já ouviram risadas, choros, desabafos e fofocas aos montes. O papo fluía até a paciência dos pais esgotar e o telefone tocar, indicando que estava na hora de ir embora. E o meu grupinho, definitivamente, não era o único a adotar o espaço. Num final de tarde/início de noite de sábado, a Cultura estava repleta de adolescentes reunidos, seja em grupos ou em casais de namorados. 

Em 2013, eu fui ao Shopping com uma amiga, o namorado dela e um menino de quem eu gostava. O rolê era de esquema armado, mas eu não sabia ainda. A gente foi ao cinema, assistir a um filme que minha memória não é capaz de lembrar o nome, talvez pela distração da companhia, confesso. Depois da sessão, a próxima parada foi a Livraria Cultura. Seguindo o plano orquestrado, minha amiga e o namorado dela se afastaram de mim e do outro menino. Num corredor de livros da sessão de clássicos da literatura brasileira, sob as bênçãos de nomes como Machado de Assis e Clarice Lispector, ele se aproximou e, seguindo a pressa que a adolescência traz, foi direto ao ponto: “Quer namorar comigo?”. A resposta, seguindo a intensidade que a adolescência traz, foi categórica: “Claro!”.  

A partir daquele dia, a Livraria Cultura se tornou o nosso lugar. Os rolês no Shopping em grupo se dividiram com os rolês de casal e cada um deles contava com longos instantes na Livraria Cultura. Eu cresci apaixonada por livros, ele também. Até que um se apaixonou pelo outro, construindo uma história de romance cuja primeira página foi escrita numa livraria. Daria um best-seller daqueles que viraria filme e geraria o típico conflito do ‘qual é melhor?’. Eu e ele sempre fomos do time livro e, toda vez que passávamos por um cuja capa era a foto do filme, tínhamos que deixar a crítica registrada: ‘Mil vezes a capa original’.  

Seguindo o ritual de sempre, a gente passava pela porta e os olhos já eram fisgados pelos livros expostos na entrada. E íamos desbravando o lugar passo a passo, formando uma pilha de livros nos braços e indo, finalmente, para a máquina de checar os preços. Às vezes, um ou dois da pilha ganhavam o direito de ocupar a estante de casa. Mas, mesmo quando não comprávamos nenhum, o entretenimento estava garantido. A diversão era se perder um do outro e de si mesmo no labirinto das inúmeras estantes, com um livro chamando mais atenção que o outro, gerando uma dúvida agoniante de qual merecia mais destaque naquele dia. Ah, e os presentes de aniversário de namoro eram sempre livros. Não era difícil saber a lista de desejos um do outro com tantos passeios literários. Não podia ser diferente. 

Os anos foram passando e eu comecei a frequentar a Cultura por outros motivos. Já tive reuniões no café de lá, já participei de um grupo de leitura que fazia reuniões no espaço e já marquei entrevistas com fontes para algumas matérias lá. Seja como um lugar de jogar conversa fora com os amigos, encontrar o namorado, se deliciar com leituras ou reuniões importantes, a Livraria Cultura faz parte da minha trajetória de vida. Apesar disso, talvez, ironicamente, eu seja uma das pessoas que contribuiu para seu fechamento. Com o surgimento da Amazon e opção de frete grátis, caí na tentação de comprar livros pela internet, deixando de lado a loja física. Eu abandonei a Cultura e agora ela me dá o troco. 

O namoro já não existe mais, a amizade com a menina que estava no dia do pedido de namoro também não. A Cultura fecha as portas e leva com ela o que sobrava das minhas histórias vividas naquele lugar. Com toda a certeza, a sensação de passear no shopping e não ver mais aquela livraria vai ser uma das mais incômodas para mim e para muitos outros órfãos dela. 

* Carolina Cerqueira é estudante de jornalismo e é repórter estagiária no Correio