Reconhecimento facial já prendeu 35 na Bahia; 3 mil são alvos da polícia

Sistema da SSP-BA possui cadastro com 65 mil rostos, mas especialistas fazem ressalvas

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  • Tailane Muniz

Publicado em 1 de junho de 2019 às 06:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Alberto Maraux/SSP

A Justiça buscava por notícias de Henrique Gonçalves dos Santos Nascimento, o Léo, 29 anos, desde 2013, quando foi acusado de um homicídio qualificado em Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador (RMS). O suspeito, que sequer compareceu à audiência, mal podia imaginar, mas era um dos 65 mil rostos cadastrados no banco de dados da Secretaria da Segurança Pública do Estado da Bahia (SSP-BA) que, desde dezembro, cruza informações, ali armazenadas, com imagens de câmeras de reconhecimento facial - instaladas no aeroporto, rodoviária e estações de metrô da capital.

Alheio ao fato de que um alerta seria enviado às equipes do Centro de Operações e Inteligência (COI), no prédio da SSP, no Centro Administrativo da Bahia (CAB), assim que seus traços faciais fossem filmados por um dos equipamentos, Henrique acabou preso pela Polícia Militar, nesta sexta-feira (31), após circular por uma das 20 estações de metrô da cidade. 

Ao todo, já são 35 pessoas presas por reconhecimento facial, sendo duas em Salvador [uma delas no Carnaval] e 33 na Micareta de Feira de Santana. Os alvos da SSP-BA, no entanto, dão uma lista muito maior. Superintende de Tecnologia e gerente de grandes eventos da SSP, coronel Marcos Oliveira afirmou que, ao todo, três mil pessoas são procuradas pelas câmeras. As demais, de acordo com ele, integram o grupo de “indivíduos que têm ou já tiveram dívidas com a Justiça”, além de desaparecidos.

Embora não seja regulamentado no Brasil, o reconhecimento facial já foi utilizado pelas forças da Segurança também do Rio de Janeiro e São Paulo, onde a Justiça chegou a determinar, em setembro do ano passado, a proibição da prática nas estações de metrô. Há 15 dias, a utilização do mecanismo também foi proibida na cidade de San Francisco, no estado americano da Califórnia, onde autoridades civis consideram a prática “abusiva”.

Em janeiro, parlamentares ligados ao governo federal foram até a China conhecer o banco de dados do país, o maior do mundo, com um milhão de cadastrados. Aposta do plano de segurança para os jogos da Copa América, em junho, a utilização das câmeras em integração com o banco de dados da SSP-BA é resumida pelo coronel Marcos como “apenas mais uma ferramenta que auxilia as polícias na manutenção da ordem nos espaços públicos”. De acordo com o superintendente, não há abuso, se a finalidade é encontrar “apenas alvos com dívida”.

Choque dos traços O alerta que o sistema emitiu ao COI, que funciona 24 horas, foi de que havia 91% de chance de haver, ali, um foragido da Justiça, suspeito de um homicídio. As equipes, então, entraram em contato com militares que estavam próximos da estação [a SSP não informou qual], para que tirassem a prova dos nove do que indicava o sistema, que, em poucas palavras, funciona assim: ao capturar a imagem da pessoa, transforma os pontos em algoritmos e faz triangulações que estimam a distância, por exemplo, entre o nariz e boca. 

O código [ou algoritmo] de cada pessoa é criado, e é a partir daí que a câmera pode reconhecer alguém. Henrique, o Léo, até tentou escapar: ao ser abordado por militares, entregou um RG falso, de acordo com a SSP, mas teve a verdadeira identidade revelada por uma identificação digital instantânea, feita no local. Se Henrique não fosse Henrique, de acordo com o coronel, o sistema não teria emitido um alerta acima de 90%. Ainda segundo ele, a determinação é para que apenas as pessoas que têm “passagens” sejam abordadas. E se, por acaso, o sistema errar, “o policial se desculpa”.“A polícia não está em todos os lugares, não é onipresente, então, é mais uma ferramenta importante e que vem auxiliando para a diminuição de crimes como homicídios. O marginal está sempre buscando formas de burlar, ele sempre pensa em um jeito. Como ele [Henrique] que entregou um RG falso. Nós temos muita preocupação em não errar, em não ir no alvo errado”, disse, ao considerar que pode haver falhas. Henrique estava foragido há seis anos (Foto: Divulgação/SSP) Antes do Carnaval 2019, quando houve a primeira prisão por reconhecimento, o sistema passou por três meses de testes, de acordo com Oliveira. “Na dúvida, a gente sempre beneficia as pessoas. O importante é que saibam que é uma biometria, apenas mais uma coisa a favor da segurança e do cidadão. As pessoas cadastradas têm seus nomes na base da identificação criminal, não ficamos atrás delas, mas são alvo de interesse. É apenas um estado de atenção”, defende.

O coronel comentou, ainda, que o fato de não haver uma regulamentação não torna a prática uma ameaça à sociedade. “Se, por acaso, a pessoa comete um novo delito, essa informação vem junto, somos alimentados com a base da Justiça. A tecnologia está trabalhando com a inteligência artificial e o reconhecimento faz parte desse contexto”, ponderou Oliveira, acrescentando que o banco de dados é atualizado uma vez por semana, pelo menos. 

Procurado pelo CORREIO, o Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJ-BA) disse que as informações dos devedores e foragidos são lançadas no Banco Nacional de Mandado de Prisão e, portanto, podem ser acessados pelas forças de Segurança Pública.

Todos são suspeitos? Embora o coronel Oliveira defenda a premissa de que o “direito de abordar e buscar a identificação de alguém é previsto por lei", há quem considere o reconhecimento facial uma violação de direitos já que, em grandes proporções ou não, nas palavras do representante da SSP, há a possibilidade de haver erro, pois, a questão “envolve uma máquina e não uma pessoa”. A possibilidade de alguém ser abordado após emissão de alerta errado, por exemplo, segundo Oliveira, não é “nenhum constrangimento”, já que o policial “não é orientado a chegar apontando armas”. Centro Integrado de Comando e Controle Móvel (CICCM) funcionará na Copa América, em junho (Foto: Tailane Muniz/CORREIO) No final das contas, se todas as pessoas, em locais públicos, têm suas imagens filmadas e, eventualmente, podem ser abordadas, há, aí, um cenário onde todos são, em tese, suspeitos? O questionamento é do professor de Literaturas Africanas do Instituto de Letras e pesquisador do Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao) da Ufba, Jesiel Oliveira. O professor não só é contrário à utilização do reconhecimento facial em locais públicos, como também defende que a ideia colabora para a manutenção “um cenário racista”. “O computador não pensa sozinho. Vários pesquisadores, inclusive africanos, atribuem riscos a essa prática porque defendem que os algoritmos da base lógica dessa caixa de dados desses sistemas distingue padrões de humanidade, onde sujeitos são vistos como ameaças. Quem é o alvo? Por que pessoas que já cometeram crimes são alvos? Por que consumiram drogas? Essas pessoas são as não brancas, as que sempre foram alvo de estigmas”, defende.Jesiel acrescenta, ainda, que a prisão de mais uma pessoa deve ser o ponto de partida para uma “discussão generalizada” acerca do assunto. “Não acho, de jeito nenhum, que seja uma ferramenta que vem para o bem da sociedade e da Segurança Pública. Porque é um problema a mais para os negros, e por tantos outros motivos. Há uma camada fundamental dessa programação que a gente não tem conhecimento, eu partilho da preocupação, pois é um reforço da vigilância ostensiva e arbitrária sobre pessoas negras”. 

Para ele, se há um alvo, e se esse alvo é alguém que foi preso, isso é uma questão “ampla”. “O argumento que eles propõem é precário. Se a base cadastra essas pessoas, de alguma maneira elas viraram alvo. Uma coisa extremamente importante. Se foi uma passagem derivada por tráfico de drogas, mais da metade dos encarcerados, é um problema que tem que ser pensado com cuidado. É um problema moral, de segurança”.  O autônomo Paulo César Vieira disse que gostou da novidade: 'Mesmo não entendendo muito bem' (Foto: Tailane Muniz/CORREIO) Violação de direitos Há dois dias, o sistema foi utilizado pela SSP no ensaio geral do plano de segurança da Copa América, na Arena Fonte Nova, durante partida entre Bahia e São Paulo. Na oportunidade, algumas pessoas, quando questionadas pela reportagem sobre o reconhecimento facial, disseram não entender “muito bem” do assunto. Outros, no entanto, se posicionaram a favor.  A ideia de ser monitorado e ter a imagem chocada com um banco de dados do Estado não é um problema para o autônomo Paulo César Vieira, 35, que esteve na Arena e viu a movimentação de agentes em frente à portaria principal. 

"Achei super interessante desde o Carnaval a coisa do reconhecimento, com a digital é ainda melhor. Eu não vejo como isso pode ser ruim, já que vivemos em constantes situações de violência", acredita. Para ele, que disse não compreender totalmente como funciona a tecnologia, a polícia "sabe o que faz". 

Pesquisador da Segurança Pública, o jurista Fabrício Rebelo se diz favorável ao reconhecimento facial, entretanto, fez ressalva.“Cria-se um conflito entre a segurança e a privacidade de cada um. É preciso equilíbrio. Algumas pesquisas já levantaram a possibilidade de erro apontando o uso de óculos, maquiagem, bonés, como elementos que possam indicar a identificação parcial, principalmente para quem é veiculado a um delito. Isso pode trazer consequências muito graves. Vai demorar um tempo para alcançar a perfeição”, defende.Quanto ao reconhecimento facial no Brasil, o especialista afirma que “é necessário que haja uma evolução grande. O sistema determina que todos são suspeitos, até que seja comprovada a culpabilidade de uma pessoa. Há possibilidade de se considerar esse tipo de tecnologia conflitante com a nossa constituição, porque temos garantias individuais, como o direito à privacidade do indivíduo”.

Quanto à utilização do sistema no Carnaval e na Micareta de Feira, Rebelo respondeu: “Isso vai ser avaliado, a gente não tem uma posição fechada sobre isso. Tem que se analisar se o indivíduo que está no espaço público tenha aberto mão da privacidade ou não. Só a esclarecendo quando chegar ao poder judiciário, prevalente através de ações, com a garantia de violação dos direitos individuais”. Para a administradora Aline Conceição, reconhecimento "traz segurança" (Foto: Tailane Muniz/CORREIO) Regulamentação Professor de Direito e Processo Penal da Faculdade de Tecnologia e Ciências (FTC), o advogado Leandro Vargas defende a regulamentação total da prática. Segundo Leandro, as regras precisam ser claras ao cidadão. “Há a necessidade de garantias ao cidadão. Isso pode trazer tranquilidade à sociedade? Sim. Mas é necessário ponderar que estamos falando de tecnologia, o que é passível de vícios e erros. E, em caso de culpa, um cidadão ainda tem que ter seus direitos garantidos, para que ele possa construir sua defesa. É um sistema que pode ter como consequência danos de difícil reparação, a qualquer um de nós”.A administradora Aline Conceição Silva, 38, disse que passou a "confiar no reconhecimento facial" depois do Carnaval. "Fiquei impressionada com a eficácia depois que aquele homem foi preso. Uma pessoa ali, entre tantas milhares, foi reconhecida e presa. Certamente algo que vem para o bem da sociedade. Traz tranquilidade", diz ela. 

De acordo com o coronel Marcos Oliveira, a ideia é que o reconhecimento facial seja implementado, de médio a longo prazo, em 55 municípios baianos. O professor Leandro Vargas disse que “é imprescindível” que, quando toda a Bahia já estiver monitorada por câmeras, haja, também, “regras claras” de funcionamento dos equipamentos. Para o advogado, não pode restar dúvidas de que você pode ser abordado por policiais - civis ou militares - ainda que, a olho nu, não esteja praticando qualquer “atitude suspeita”.

*Colaborou Bruno Wendel