Relato: 'Entre comprar o papel higiênico e o feijão, ficamos com o feijão'

Leia depoimento de uma baiana que, como muitos outros, têm sofrido com as altas dos preços

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  • Thais Borges

Publicado em 28 de agosto de 2021 às 05:20

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Shutterstock

A doméstica Elza Macedo, 47 anos, viu a situação da família se complicar na pandemia. Depois de ter descoberto um câncer de mama, as finanças ficaram apertadas na casa onde mora com três filhos. 

Mesmo recebendo o auxílio doença, tudo ficou mais difícil."Às vezes, deixamos de comer. Deixamos de ter uma refeição pela manhã ou o almoço de meio-dia", diz. Leia a reportagem principal: Quem consegue viver assim? Sem alternativa, baianos sofrem com a alta dos preços

Leia o relato dela na íntegra: 

“Aqui moramos e três de meus quatro filhos. Mas eu fiquei doente em plena pandemia. Descobri um câncer de mama em abril do ano passado. Trabalhava em um restaurante como auxiliar de cozinha e tive que ser afastada pelo auxílio doença. 

Moro de aluguel, a cesta básica está lá em cima e aqui, para sobreviver, está muito difícil. Eu paro e olho: não sei se compro o remédio, se compro algo para minha alimentação, se dou comida a meus filhos, se vou pagar recibo de luz, de água. Às vezes, deixamos de comer. Deixamos de ter uma refeição pela manhã ou o almoço de meio-dia. 

Aí veio o vale da Cufa (Central Única das Favelas), que é da onde está vindo uma força, porque você tem o feijão, o arroz, o açúcar. Estou em uma situação que eu nunca pensei viver. A menor das minhas filhas tem 8 anos e a nossa maior dificuldade é na alimentação. Tem uma menina de 8, a outra de 18, o rapaz tem 23 e o outro de 34, mas ele não mora comigo. 

Mas aí vem o recibo de luz caro porque a energia aumentou. A gente tenta economizar bastante, mas está vindo R$ 150. Mesmo assim, nossa maior dificuldade é o alimento. Com minha doença, adquiri diabetes e pressão alta. Precisava de uma alimentação balanceada. Não poderia começar farofa de ovo, por exemplo, mas quando não tem é isso mesmo.  O gás está um absurdo. Comprar o bujão de gás por R$ 100, para mim, é pesado demais.Semana passada mesmo aqui, a gente teve alimentação por conta da minha irmã. Sempre que pode, ela ajuda. Hoje (segunda), tinha um ensopado de frango que eu fiz no sábado. A gente comeu sábado, ontem e hoje. Amanhã a gente vai pensar no que fazer. Amanhã, eu não sei. No armário, eu tenho um pacote de soja, um de arroz, um fubá de milho, um quilo de sal e um tablete de biscoito. Às vezes, não tem nada. Como minha filha não estava tendo aula (as aulas na rede municipal voltaram na última segunda-feira), deixo ela dormir mais porque ganho tempo. Se ela acordar 11h, eu nao preciso dar café da manhã, já dou logo o almoço. Se nao tiver nada para meio-dia, tem que esperar até a noite para ver. 

Eu tinha o auxílio doença, que foi cortado agora, e meu filho trabalhava como ajudante de cozinha num hospital. Mas ele também ficou desempregado tem uns três meses. A menina mais velha aprendeu a fazer sobrancelha, fazer unha, dar uma prancha no cabelo, e vai fazendo os bicos. Mas não é profissional, não, só as amiguinhas do bairro que pedem. 

Fiquei desesperada quando o INSS cortou meu auxílio doença no início do mês. Não dava para fazer o mercado, mas pagava as outras contas, como o aluguel. Ainda não estou apta a trabalhar. Meu trabalho é de doméstica, faxineira. Eu operei em março, mas ainda vou passar por outra cirurgia. Tirei a mama toda, mas ainda estou usando um expansor (de tecido, uma prótese temporária). 

Quando minha menina mais nova estava na escola, tinha a merenda lá. Na pandemia, eles davam uma cesta básica, as escolas forneciam. Mas, depois de um tempo, não sei o que houve que a cesta diminuiu. Dava passar 15 dias, até um mês, dependendo do que você fizesse. Mas agora só vem uma soja, um pacote de arroz, um de açúcar, um biscoito, um fubá e um quilo de feijão. Antes, vinha três quilos de açúcar, quatro quilos de feijão, quatro quilos de arroz, óleo, leite, dois pacotes de biscoito, três pacotes de macarrão, dois de soja e dois de café. Agora, as crianças já estão voltando para a aula. 

Como é que vive desse jeito? A gente, quando tem filho, quer oferecer nosso melhor ou o básico. Mas você ouve o filho dizer ‘eu estou com fome, vou comer o que?’. O que você faz? Ele abre o armário, a geladeira, não vê nada. É desesperador. Com esse aumento de preços, vou no mercado com R$ 200 e não trago nada. Antigamente, eu conseguia trazer alguma coisa. Hoje, eu volto estressada e triste. Porque pegar um frango, um quilo de cada coisa, quando chega no caixa, nem dá para passar tudo. Ainda tem os materiais de higiene pessoal que não podem faltar. Já chegou ao ponto de aqui em casa não ter papel higiênico. Entre o papel higiênico e o feijão, vai o feijão. Imagine quatro pessoas numa casa numa situação dessa. Os filhos maiores entendem. A gente vê nos olhos deles a tristeza, mas não cobram, não pedem. Mas a pequena pede. Ela pergunta o que vai merendar, o que vai tomar de café. Você vê a carinha triste. 

Agora mesmo, eu estou com o juízo ardendo porque a dona da casa onde eu moro teve aqui ontem pedindo a casa, porque já tenho um mes de aluguel atrasado. E o recibo de luz também sem pagar, água sem pagar. Ela me deu um prazo de 10 dias e não sei o que eu vou fazer. Infelizmente, está todo mundo no mesmo barco, todo mundo precisando. Ela está precisando do dinheiro do aluguel. 

Na semana passada, fui na médica e pedi um novo laudo. Levei os documentos para o INSS e agora estou esperando a resposta deles. Mas quando vai ser, só Jesus sabe. Só peço a Deus que enxerguem e entendam que não posso trabalhar. Se não posso fazer esforço, nem pegar peso, como é que me dão alta? 

Na semana passada, tive que ir na consulta com o cirurgião para marcar a nova cirurgia. Quando o dia amanheceu, disse a meu filho que não tinha um real para ir até lá (o Hospital da Mulher). Fui em duas vizinhas pedir emprestado, elas não tinham. Minha irmã também não tinha. Aí meu filho conseguiu R$ 10 com um colega que mora aqui próximo. Seria para a ida e para a volta. 

Mas eu pensei que seria uma coisa rápida. Quando cheguei naquele hospital, a fila dava três voltas. Imensa às 7h30 da manhã. Quando o médico veio me atender, já eram 10h30 e pediu pra eu fazer logo os exames de sangue e mamografia. Consegui fazer, mas deu uma da tarde e eu já não estava aguentando. Estava tremendo de fome, porque só tinha feito uma refeição no domingo de noite. Um biscoito cream cracker com um copo de leite. 

Na frente do hospital, fica um pessoal vendendo mingau. Comprei um salgado e um mingau, sendo que nem posso comer nada de rua por causa da diabetes. Mas precisava. Mas só pensava: como eu volto agora, se usei o dinheiro do transporte para voltar para casa? Quando deu 3h e pouco da tarde, tinha uma mulher esperando do meu lado e eu conversei com ela. Falei que estava precisando do dinheiro do transporte. Ela disse que só tinha R$ 2, mas me deu. 

Não era suficiente para a passagem, mas falei com o cobrador para pedir carona. Ele ficou meio aborrecido, mas eu falei que estava precisando muito. Quando eu cheguei em casa com os R$ 2 que a moça me deu, eu já estava com fome. Eu comprei R$ 2 de ovo e em casa, tinha um feijão cozido. Fritei ovo e a gente comeu, eu e as duas meninas, já quatro e pouco da tarde. 

Mas tem dia que a gente corre para cama para dormir cedo, porque se ficar acordado, a barriga reclama mesmo. Dizem que o sono mata a fome, mas é isso mesmo”.