Segredo não é pra quatro paredes

Por Rogério Menezes

  • D
  • Da Redação

Publicado em 13 de maio de 2018 às 05:00

- Atualizado há um ano

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‘Estimado jornalista e escritor.

Soube que o senhor escreve coluna em jornal de Salvador. Pois bem! Abro-lhe meu coração. Tenho 90 anos e nunca tive filhos. Conto-lhe segredo, não quero que este segredo fique entre quatro paredes. A partir de certo momento de minha vida, passei a odiar a cantora Dalva de Oliveira.  

Deixe-me lhe explicar. Eu e meu primeiro e único namorado, eu com 22 anos, ele com 25, sentíamos verdadeira veneração por Dalva. Possuíamos todos os discos gravados por ela, dançávamos e namorávamos ao som das canções que cantava feito uma deusa.

Quando soubemos que havia gravado Meu Sertão de Jequié, composta por Klecius Caldas e Armando Cavalcanti, mandamos buscar o disco no Rio de Janeiro. Quando ouvimos essa maviosa canção pela primeira vez, marcamos a data de nosso casamento, e decidimos que essa seria a música nupcial. Logo depois, soubemos que a esplendorosa diva tinha espetáculo marcado no Cine Teatro Jequié. Eu exultei. Durval, também. Ilustração: Pedro Saci Fui à modista encomendar vestido novo. Queria ficar um estouro naquela noite. Mas a data do espetáculo se aproximava e Durval ficava arisco, estranho. Então ele me disse ‘Bi, vou a Salvador a trabalho e não poderei assistir Dalva’. Fiz o maior bafafá. Falei ‘sem você não vou!’.  Ele disse ‘fique em casa quietinha, ouvindo os discos de nossa musa’, e saiu.

Chorei e dormi abraçada ao vestido novo. Mas amanhã foi outro dia. Resolvi que iria sozinha. Caprichei no ‘it’. Vestido justo, abaixo do joelho, com manga cavada de tafetá azul-turquesa com decote em V. Chapéu de aba flexível, luvas de pelica na altura dos cotovelos, sapatos salto oito – tudo na cor branca. Era mignon, elegante, linda e rica – eu parecia a Audrey Hepburn!

Quando adentrei o Cine Teatro Jequié, todos os olhares se voltaram para mim. Estava de fechar o comércio. Sentei em cadeira localizada no meio do cinema, cercada dos esnobes locais. Enquanto fumava cigarro com piteira, reparava nos modelos das mulheres e no rosto dos homens.

De repente, o tiro no coração. Avistei Durval. Enroscava-se no pescoço de Ritinha, prima carnal, sangue do meu sangue. Saí do teatro, aos prantos. Em casa, destruí todo o relicário dedicado a Dalva de Oliveira que juntamos durante anos.

Dois meses depois, o pérfido traidor se casou com Ritinha na Igreja Matriz de Santo Antônio. Então peguei ojeriza a Dalva de Oliveira. Se a Rádio Tupi tocava Dalva, eu desligava. Se aparecia em capa de revista eu comprava dois ou três exemplares e os rasgava em pedacinhos.

Dalva de Oliveira virou o bode expiatório da minha infelicidade. Cheguei ao cúmulo de comemorar a morte dela com champanhe francês!

Ora perto de morrer provecta, pobre e seca – nenhum homem me tocou depois de Durval –, quero por intermédio de sua coluna dominical implorar perdão à alma imortal de Dalva. 

Peço-lhe desculpas, dileto cronista, pela intrusão, e conto com sua compaixão.

Com carinho, Abigail F.’z[Carta manuscrita envelopada deixada ao pé da escada do pequeno prédio onde moro há duas semanas].