Ser bicha preta no Brasil exige resistência diária mesmo dentro do movimento

Debate virtual sobre opressão e racismo fará parte da Parada LGBTQIA+ da Bahia deste ano; evento será transmitido pelo CORREIO e Me Salte

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  • Da Redação

Publicado em 1 de dezembro de 2020 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Bruna Fotografias

Ser bicha no Brasil não é fácil. O país é líder em matar pessoas LGBTQIA+ de forma violenta e registrou 329 mortes em 2019. Foram 297 homicídios e 32 suicídios, de acordo com levantamento do Grupo Gay da Bahia (GGB). Um LGBTQIA+ morre a cada 26 horas por aqui. Ser preto no Brasil também não é fácil. O Atlas da Violência, feito pelo FBSP - Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em parceria com o Ipea - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, aponta que o risco de um negro ser assassinado é 74% maior. Para as negras a taxa é de 64,4% maior em relação às pessoas brancas.

Agora, imagine o que é ser uma bicha preta. A violência física não é a única que ocorre no dia-a-dia dessas pessoas. Dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, dão conta de que a violência psicológica aumentou 7,4% na vida das pessoas LGBTQIA+ entre 2017 e 2018: de 1693 para 1819 casos. Em outros tipos de violência, o aumento é absurdo: 76,8% notificações a mais em 2018, de 1.192 para 2.108. Estar na pele das bichas pretas é um desafio e uma rotina de resistência minuto a minuto.

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A realidade das bichas pretas será tema de uma das mesas da Parada LGBTQIA+ da Bahia 2020, a 19ª edição do evento, que desta vez terá o tema “Racismo na comunidade LGBTQIA+ e será virtual. O evento acontece em 5 de dezembro, às 18h, com transmissão pelas redes sociais do CORREIO e do Me Salte. Vão debater o assunto o produtor cultural Alan Costa e o diretor da Preta Agência de Comunicação, Ismael Carvalho. Ismael Carvalho também estará no primeiro debate (Foto: Acervo Pessoal) Resistir e lutar por respeito

Alan Costa é uma bicha preta do Recôncavo baiano, de Santo Antônio de Jesus. Tem formação em Letras Vernáculas pela Uneb e atua como mobilizador social na "Campanha Jovem Negro Vivo" da Anistia Internacional Brasil. Também é o grande idealizador do Coletivo Afrobapho - formado por jovens negros LGBTQIA+ que utilizam artes integradas como mobilização social e estratégias de sobrevivência.

"Eu já tenho um rompimento de um padrão e quando vou dialogar essa questão racial com a construção heteronormativa sobre esse corpo, pensando gênero e sexualidade, aí que eu desvio muito mais dessa norma", diz Alan. Ele afirma que homens negros sofrem uma pressão social para exalar um modelo de masculinidade desde muito jovens. E fugir desse padrão é doloroso. Baby relata diversas situações de rejeição por não performar o padrão (Foto: Acervo Pessoa) O influenciador Cleidson Santana, ou simplesmente Baby, por exemplo, conta que na infância foi ensinado pelo pai a ‘ser macho’. Para isso, mesmo com a pouca idade ouvia coisas como a necessidade de ter um pênis grande e se relacionar com muitas mulheres. Ele cresceu e não performou o esperado. Não tem um corpo malhado, tem a voz fina e anasalada e gosta de usar vestidos. Por ser como é, se viu em inúmeras situações de rejeição: ia para baladas e era rejeitado por não ter um corpo atlético e a pele branca. "Já passei vários perrengues em lugares que eu frequentava como boates LGBT´s de Salvador. No início eram todas viradas para o público branco, gay padrão. Sempre vamos para a boate na intenção de ficar com alguém e a gente não conseguia porque eles só ficam entre eles", contaOs perrengues vão além: dentro do próprio círculo de amigos ele ouve críticas ao jeito como fala, anda e se comporta. A pressão pela heteronormatividade ainda dói, mesmo com o jovem da Cidade Baixa se impondo para ser nada além do que ele é.

Alan Costa, por sua vez, revela que apanhou na escola por incontáveis vezes por ter a voz fina e andar rebolando. Mas sofrer essas violências não é a realidade de gays que performam uma dita feminilidade logo no rosto. O estudante Matheus de Morais diz que tem rosto de boyzinho ou cara de padrão estético masculino, mas transparece feminilidade com o seu corpo. E também sofre violências diárias.

“Quem é afeminado sabe que é afeminado e sabe dos processos de violência que pode sofrer. Desde as violências sutis que nos acometem todos os dias no transporte público, nos olhares, nas falas das pessoas, até as violências da rejeição, do afeto, do carinho, que nos é negado por sermos afeminadas”, afirma. Willy é modelo e enfrenta preconceito por gostar de roupas e cabelo que a norma categoriza como femininos (Foto: Vivaldo Marques/Divulgação) As opressões sequer são exclusividade de homens gays. Modelo, Willy Montenegro é andrógino e se relaciona com homens e mulheres desde que sinta atração. Ele diz que já se acostumou a ver olhares tortos quando se veste com roupas ditas femininas ou faz penteados que são convencionados como de mulheres. 

Preconceito na comunidade

Pesquisador do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Cultura e Sexualidade da Universidade Federal da Bahia, Claudenilson Dias afirma que todas as pessoas que tem o que ele chama de 'viadagem exacerbada' são vistas de forma ruim dentro da própria comunidade LGBTQIA+, e isso se agrava quando se tratam de pessoas negras. Por conta disso, ele classifica que ser uma bicha preta no Brasil é, acima de tudo, uma manifestação política."Essas pessoas mobilizam e incomodam o imaginário social, que busca um ideal de masculinidade que consideramos tóxica. Bichas pretas são a expressão de uma política contrária a tudo isso", aponta o pesquisador. No entanto, contrariar estruturas sociais geralmente acarreta reações, que podem ser violentas e constrangedoras, como foi o caso sofrido pelo estudante Pascoal de Oliveira. Ele foi ao supermercado Big Bompreço de Itapuã comprar farinha láctea usando roupa de ginástica, após fazer exercícios físicos. Só que, para a sua surpresa e indignação, um funcionário disse que ele não poderia entrar no estabelecimento pois seu short era curto demais. Na lógica do colaborador da empresa, Pascoal é homem e não poderia estar ali de shortinho. Luiz Mott na Parada LGBTQIA+ de 2016 (Foto: Evandro Veiga/Arquivo CORREIO) Fundador do Grupo Gay da Bahia (GGB) e decano do movimento pelos direitos das pessoas LGBTQIA+ no Brasil, Luiz Mott afirma que nos seus 40 anos de atividade já consegue perceber algumas mudanças e vitórias para a comunidade, como a equiparação da homofobia ao racismo, a legalização do casamento, uso do nome social pelas pessoas trans e a presença de mais de 80 candidates lgbt+, sobretudo trans, nas últimas eleições."Apesar de mentalidades não se mudarem por decreto, esperamos que a criminalização da homofobia assuste os criminosos em relação a isso, para que não se mate tanto. A Bahia tem que rimar com alegria, cidadania e não com homotransfobia", afirma Mott.Além das mesas de debates (veja a programação completa abaixo), a Parada LGBTQIA+ da Bahia 2020 também terá atrações artísticas. As performances serão da atriz, educadora e pesquisadora sobre raça, sexualidade e gênero, Matheuzza; da apresentadora, transformista e realizadora de concursos de beleza, Bagageryer Spilberg; das cantoras Doralyce e Josyara; do rapper Hiran, uma das maiores representações do rap nacional; e de Malayka SN, que é DJ, visual artist e drag.

O projeto Diversidade tem realização do GGB, produção Maré e parceria e criação de conteúdo Correio/Me Salte e Movida; e patrocínio do Grupo Big e Goethe Institut.

SERVIÇO: 19ª Parada do Orgulho LGBTQIA+ da Bahia Quando: 5 de dezembro, sábado; Horário: Das 18h até 20h. Onde: ao vivo nos canais “Me Salte” e Jornal CORREIO* (Instagram, Facebook e Youtube);

PROGRAMAÇÃO COMPLETA:Debates:

*Mesa 01 – Bichas pretas Alan Costa – Formado em Letras Vernáculas pela UNEB, atua como produtor cultural e artístico na cena soteropolitana. Ismael Carvalho – Criador de conteúdo digital, cofundador e diretor de criação da Preta Agência de Comunicação.

*Mesa 2 – Negras, lésbicas e masculinizadas  Jandira Mawusí – Pedagoga pela UNEB, idealizadora do Coletivo Merê, é uma das representantes da Caminhada Contra o Ódio e o Racismo Religioso que acontece há mais de 15 anos em Salvador. Bruna Bastos – Integrante do grupo de pesquisas Rasuras UFBA, pesquisa e estuda Letramentos de Reexistência produzidos por lésbicas negras. É idealizadora da página @sapatonaaentendida onde dialoga sobre lesbianidade e Afroperspectiva.

*Mesa 3 – Transexuais e travestis negras não trabalham apenas em salão  ÉriKa Hilton – Primeira vereadora trans e negra eleita de São Paulo. A mulher mais votada da cidade com 50.508 votos, pelo Psol. Inaê Leoni –  Mulher trans, negra, baiana de Salvador.  Licenciada em Teatro da UFBa, em 2010, começou a estudar canto de modo sistemático.

*Performances artistíticas:

Matheuzza (atriz, educadora e pesquisadora nas questões de raça, sexualidade e gênero); Bagageryer Spilberg (apresentadora, transformista e realizadora de concursos de beleza); as cantoras Doralyce e Josyara; o rapper Hiran, uma das maiores identidades do rap nacional; e Malayka SN, que é DJ, visual artist e drag.*Glossário LGBTQIA+Lésbicas –  Mulheres que sentem atração afetiva/sexual por outras mulheres; Gays –  Homens que sentem atração afetiva/sexual por  outros homens; Bissexuais – Pessoas que sentem atração afetivo/sexual por homens e mulheres; Travestis, Transexuais e Transgêneros –  Não se relaciona com a orientação sexual, mas   identidade de gênero. Corresponde às pessoas que não se identificam com o gênero atribuído em seu nascimento; Queer – Pessoas que não se identificam com os padrões cis e heteronormativos;Intersexo –  Pessoas cujas combinações biológicas e desenvolvimento corporal – cromossomos, genitais, hormônios, etc. – não se enquadram na norma binária (masculino ou feminino); Assexuais – Pessoas que não sentem atração sexual por outras pessoas; Interseccionalidade –   Estudo da sobreposição ou intersecção de identidades sociais e sistemas relacionados de opressão, dominação ou discriminação;Cisgênero – Pessoas que se identificam com o gênero atribuído em seu nascimento;

*Fonte da pesquisa: Educa Mais Brasil