Sinagoga e placas em hebraico: Morro de São Paulo vira point de israelenses

Ilha tem nativos fluentes em hebraico, placas e menus no idioma de Israel

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  • Victor Villarpando

Publicado em 12 de maio de 2019 às 05:10

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Renato Santana

Do píer no qual atracam os barcos que chegam a Morro de São Paulo até a terceira praia, apenas na rua principal, 14 estabelecimentos exibem placas em hebraico, idioma e alfabeto de Israel, com letras diferentes das nossas e no qual as coisas são escritas e lidas da direita para a esquerda. Tem pousada, restaurante, agência de turismo, pizzaria e até um carrinho de churros. Há ainda sinagoga, nativo com tatuagem em hebraico, pessoas que sabem falar o idioma e até crianças com nomes israelenses. A Rua Shalom reúne a sinagoga e duas pousadas especializadas em israelenses (Foto: Renato Santana/CORREIO) Tudo por causa dos gringos que vieram de Israel, a 9.309 km de Morro de São Paulo, uma das ilhas do município de Cairu, na Costa do Dendê. O único voo direto entre os dois países é um da Latam, que funciona três vezes por semana e demora 15h10 para vir da capital, Tel-Aviv, para São Paulo. O restaurante Dale Papi, na terceira praia (Foto: Renato Santana/CORREIO) Um oceano (o Atlântico) e um continente (a África) parecem não intimidar os israelenses. Depois da vizinha Argentina, que tem 44 milhões de habitantes, o pequeno país do Oriente Médio, com população de apenas 8,7 milhões de pessoas, é o segundo que mais manda visitantes para a ilha, de acordo com a prefeitura de Cairu. No ranking de Morro, Israel está à frente de França, Itália e Espanha, cujas populações são ainda maiores que a da Argentina. E olhe que tem voo direto entre Salvador e Madri, a capital espanhola. Pelas ruas principais de Morro é comum encontrar propagandas em hebraico (Foto: Victor Villarpando/CORREIO) Bahia/Brasil Os números estaduais e nacionais apontam que Morro é mesmo o xodó dos israelenses. De acordo com os dados mais recentes do Ministério do Turismo (2017), eles não figuram nem no top 20 de países que mais mandam visitantes, ficando atrás de Holanda, Venezuela, China, Peru, Reino Unido, Itália... Até franquias, como a Açaí Concept, têm placas em hebraico (Foto: Victor Villarpando/CORREIO) Pouco mais de 29 mil israelenses vieram ao Brasil. Menos gente do que vem da minúscula Suíça (69 mil), que tem 8,4 milhões de habitantes e do que da distante Austrália (33 mil), que fica a 29 horas e 38 minutos de voo com duas escalas. Na Bahia, também não constam no top 10 de emissores de turistas, que é dominado por Argentina, Portugal, Espanha, Itália, França e Alemanha. A administração do arquipélago não informa a quantidade de turistas de cada nacionalidade, mas comunicou, em nota, que Morro recebe 200 mil visitantes por ano. Os cardápios do Dale Papi (Foto: Victor Villarpando/CORREIO) Passamos um fim de semana na ilha, hospedados num beco da terceira praia que reúne, em cerca de 30 metros, duas pousadas especializadas em israelenses e a sinagoga. No centro religioso, participamos de duas cerimônias tradicionais da fé judaica: o Shabat, jantar que acontece toda sexta-feira, e a Mimouna, que marca o fim da Pessach, festa que comemora a fuga dos hebreus do Egito, conhecida como “a páscoa judaica”.

Botamos os pés na areia, comemos comida hebraica, conhecemos a barbearia que os rapazes de Israel frequentam e conversamos com muitos, muitos israelenses. Confira as 23 coisas mais curiosas que descobrimos por lá. Sababa?

Tem gente que fala hebraico Basta dar o primeiro passo no píer de Morro de São Paulo para começar a ouvir hebraico. “Sababa?”, perguntam os carregadores de malas aos jovens com mochila. Em hebraico, a palavra significa “legal”, “tudo bem”. No baianês de Morro, virou termo para se referir aos turistas israelenses. E não para por aí. Assaf, Marcos e Nilda: 95% dos hóspedes da pousada Sampa vêm de Israel (Foto: Renato Santana/CORREIO) Marcos dos Santos, 33, dono da Pousada Sampa no Morro, fala fluentemente o idioma. “Aprendi ‘natoralmente’, convivendo e anotando num caderninho. Hoje, penso em hebraico, fico feliz, reclamo, brigo, negocio... Às vezes até sonho no idioma (risos). Quando eles vão embora, conversamos no zap”, conta ele, que estima que 95% dos hóspedes da pousada vêm de lá. O pequeno Assaf, de 8 anos, se encaixa naquela máxima do filho de peixe. Aprendeu palavras e frases no idioma e já tira dúvidas dos hóspedes.

Tá na fachada Nas fachadas dos estabelecimentos, mais hebraico. Do desembarque à terceira praia, contamos 14 deles que tinham inscrições no idioma. Na Carpaccio e Pizza, uma cartolina escrita no idioma gera filas antes mesmo da abertura da casa. O cartaz na frente da Carpaccio e Pizza já tem 10 anos e Ezio não tira por nada (Foto: Victor Villarpando) “Eles costumam recomendar os lugares que gostam, postar na internet, deixar depoimentos. Há uns 10 anos, veio um grupo aqui e uma moça escreveu o depoimento nessa cartolina que está na porta. Desde então, começaram a vir muitos. A única mudança que faço é atualizar o preço”, afirma Ezio Gonçalves, 51, que desde 2005 tem a pizzaria em Morro e afirma que, no Verão, mais de 90% das mesas são ocupadas por israelenses: “De 10 anos pra cá triplicou o número. Meu restaurante vive cheio deles”. Israelenses na segunda praia (Foto: Renato Santana/CORREIO) Quem são os sababas? Mochileiros. “Todo ano, entre 30 e 50 mil jovens israelenses, a maioria de classe média, fazem viagens longas depois do serviço militar obrigatório. A experiência se dá numa espécie de ‘limbo’, antes de escolherem qual faculdade vão cursar quando retornarem a Israel. Os destinos preferidos são a América do Sul e o Sudoeste da Ásia”, diz Natan Uriely, professor do Departamento de Turismo da Faculdade de Administração da Universidade Ben-Gurion de Negev, em Israel. Nafar Abulafya, 22, curtindo a segunda praia (Foto: Renato Santana/CORREIO) Cerca de 60% desses jovens viajam pela Ásia, por países como Índia, Nepal e Tailândia. E 30% vão para a América Latina, de acordo com o professor e especialista em turismo e cultura mochileira Chaim Noy, da Escola de Comunicação da Universidade de Bar Ilan, também em Israel, cuja tese de doutorado resultou no livro Mochileiros Israelenses: de Turismo a Rito de Passagem. O empresário Shlomi Gavriel, 26, na festa da Mimouna, na sinagoga (Foto: Renato Santana/CORREIO) Por que Morro? Citado por todos os israelenses com quem conversei, o site Muchiler (muchiler.co.il) é uma espécie de guia para os mochileiros nesse rolé pós-serviço militar. Nele, Morro é descrito da seguinte maneira: “ilha mais famosa do viajante israelense, é um paraíso e ponto obrigatório no Brasil. A tranquilidade, praias, festas e atmosfera tornam a ilha um destino muito popular”.

Nimrod Tal, 24, disse ter lido sobre Morro no site e também no grupo do Muchiler no Facebook, que somava 33.290 integrantes até o fechamento desta reportagem. Mas que já tinha ouvido falar de Morro antes: “Tudo que é israelense vai para Morro. E depois posta nas redes sociais. Se você não visita Morro, não esteve no Brasil. Não sei quem foi o primeiro cara que veio aqui, mas eu vim porque minha irmã mais velha veio, depois amigos meus vieram. Agora foi minha vez. Estou aqui há duas semanas”.

De acordo com a prefeitura de Cairu, o período com maior fluxo de turistas israelenses vai de janeiro a agosto. O pico, de acordo com os comerciantes, gira entre um mês antes e um mês depois do Carnaval.

Na TV Gravada em 2013 em Morro de São Paulo, a primeira temporada da série de comédia Magic Malabi Express foi ao ar em 2017 no Channel 10 de Israel. É a adaptação de um livro autobiográfico de Miki Geva, ator e comediante que conheceu a ilha – adivinhe só? - numa viagem após o serviço militar. A série israelense Magic Malabi Express foi gravada em Morro (Foto: Divulgação) É a história de um rapaz israelense que decide vir para o Brasil com amigos. E tem a esperança de reencontrar Maria, uma brasileira com quem ele namorou em Israel. Encantados com a ilha, eles decidem ficar mais e vender malabi, uma sobremesa típica do Oriente Médio que lembra um pudim com água de rosas e pistache. Só que, por engano, eles colocam uma droga alucinógena na receita e começa a confusão. Nesse meio tempo, o rapaz reencontra uma antiga paixão, uma moça israelense que também estava mochilando na ilha.

Assista a um episódio da série no Youtube:

“Olha, acho que foi uma série bastante popular lá, viu? Digo porque sempre tem israelense que vem me abordar perguntando se sou eu mesmo, que apareço no Malabi Express”, conta Alemão, guia turístico mais famoso de Morro (@alemaosolucao no Instagram). Personagem folclórico da ilha, o capixaba, que há quase 29 anos foi visitar Morro e nunca mais voltou, fez uma ponta na série como o padre que celebra um casamento.

Santo de casa Não há trabalho de divulgação ou recepção voltado para os mochileiros israelenses por parte do poder público brasileiro em nenhuma esfera. “Trabalhamos com qualificação, estamos disponibilizando curso de inglês, por exemplo. Mas não tem de hebraico. Vamos colocar depois dessa chamada aí. Vocês nos despertaram para uma coisa que já vinha acontecendo. A gente sabe que existe, eles estão chegando, mas não tem um trabalho voltado para eles. Mais do que falar, eu queria ouvir de você como foi sua experiência”, diz Diana Farias, secretária de Turismo de Cairu há um ano e meio.

Questionada pelo CORREIO, a Secretaria de Turismo do Estado da Bahia respondeu, em nota, que “os mercados israelense e asiático estão entre as novas fronteiras que o turismo baiano quer alcançar nos mercados internacionais”. Titular da pasta, o secretário Fausto Franco comentou o número de turistas que Israel envia ao Brasil anualmente: “Podemos ampliar este número com uma política mais agressiva de atração de visitantes".

Procurada pelo CORREIO, a Embratur (Instituto Brasileiro de Turismo), autarquia do Ministério do Turismo responsável por promoção e marketing de destinos, serviços e produtos turísticos brasileiros no mercado internacional, informou, em nota, que "em fevereiro deste ano, promoveu uma press trip com jornalistas daquele país nos destinos Rio de Janeiro, Foz do Iguaçu e São Paulo". No mesmo mês, o instituto participou da feira IMTM (International Mediterranean Tourism Market), em Tel Aviv, a convite da LATAM. A companhia aérea destacou suas conexões para diversos países, incluindo a rota Tel Aviv – São Paulo.

A tradição mochileira Ninguém sabe ao certo. Para o professor Noy, a tradição da viagem pós-serviço militar começou lá na década de 70. Para Uriely, foi cerca de 10 anos depois. Ele mesmo, que tem quase 60 anos, fez um mochilão pós-exército por Estados Unidos e Europa no começo dos anos 80 e depois foi para o Sudoeste da Ásia e América Latina.

Na década de 90, segundo Noy, o costume já tinha se consolidado como tradição. A escolha de destinos tão distantes, de acordo com o professor, tem relação com a tensão geopolítica no Oriente Médio: cidadãos de Israel não podem viajar para os fronteiriços Líbano e Síria e nem para os quase-vizinhos Irã, Iraque, Líbia, Sudão, Algéria, Brunei, Kuwait, Oman, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Paquistão. Outra razão apontada por ele é o preço.

"É relativamente barato viajar, se hospedar e passear por destinos no Sudoeste da Ásia e na América Latina. Dessa maneira, os mochileiros israelenses podem fazer viagens de mais longa duração com o orçamento disponível", pontua Noy. A Embaixada de Israel em Brasília foi procurada mas informou que não comentaria a presença massiva dos israelenses na Bahia.

Comportamento de grupo “Existe uma conexão entre israelenses, algo que não ví em nenhuma outra nacionalidade. Um ajuda muito o outro, não importa se é conhecido ou não. Se tem um israelense com problema, ele nunca vai ficar sozinho”, conta Yasmin Tiker, 24, que veio numa viagem pós-exército e há três anos vive entre a ilha e a cidade de Petah Tikva, em Israel, onde nasceu. Para ela, esse senso de grupo explica uma das características mais apontadas pelos comerciantes da ilha para falar sobre israelenses: eles fazem questão de divulgar o que gostam e confiam muito nas indicações de seus conterrâneos.

“No Verão só tem israelense aqui. Tenho capacidade para 104 pessoas no salão e já cheguei a contar 52 israelenses na fila, esperando para entrar. Perguntei de um em um quem era sababa. E todos disseram que vieram por indicações de amigos ou postagens no grupo do Muchiler no Facebook. Minha casa abre 17h. Às 16h30 eles já estão aqui, sentados no passeio, esperando”, relembra Ezio.

Nada de Acarajé Nenhum dos israelenses com quem o CORREIO conversou provou acarajé ou abará. Tampouco botou uma garfada de feijoada ou moqueca na boca. Quem segue a religião judaica tem uma série de restrições alimentares. Uma delas é não chegar perto de carne de porco, camarão e lagosta. Outra é não misturar carne bovina com leite e derivados. Parmegiana ou estrogonofe nem pensar. Por via das dúvidas, muitos acabam não provando quase nenhuma das nossas delícias. Como durante a Pessach os judeus não comem fermento, Marcos serve pão ázimo (Matzá) no café da manhã (Foto: Victor Villarpando/CORREIO) “Tem israelense que passa fome porque não acha coisas que pode comer, vive de batata-frita e salgadinho”, diz Yasmin. Por isso, as adaptações não ficam só na tradução do menu. “Eles não querem nem chegar perto do que não podem comer. Se eu botar na mesma forma meia pizza calabresa e meia pizza deles, eles não tocam nem na deles. Até as espátulas a gente orienta os garçons a limparem muito bem, pra não ficar nem um pedacinho de coisa proibida”, explica Ezio.

O que eles comem? Basta algum garçom chegar na cozinha do Carpaccio e Pizza e falar ‘sababa na área’ que começam as fornadas de provolone com azeitona, milho com cebola, ovo com cebola, tomate com cebola, champignon com cebola... Nenhuma faz parte do menu da casa.

“Em comum, só a de chocolate, que eles amam. Outra particularidade é que, quando chegam na mesa, a gente bota uma vasilha de molho de tomate, uma de orégano e uma de pimenta porque eles só comem pizza, sempre de mão, com essas coisas. Para beber junto com pizza, costumam pedir muita água, não têm hábito de cerveja, refrigerante, suco ou caipirinha. O negócio é água”, conta Ezio. O empresário aponta, ainda, o apetite dos visitantes: “quem menos come pega 20 fatias. Homem ou mulher, não importa”.

Na praia, o menu também muda nos tempos de sababas. “Você nota logo que os restaurantes anunciam, além das moquecas, promoção de milanesa. Cada vez mais tem gente se adaptando para atender à demanda. E todo ano chegam mais israelenses que no ano anterior”, pontua Yasmin. Café da manhã na pousada Sampa em Morro tem até shakeshouka, mistura de ovos fritos com molho de tomate apimentado (Foto: Victor Villarpando/CORREIO) As comidas de lá Há lugares que apostam em pratos típicos de Israel. É o caso do restaurante Nascer do Sol, na segunda praia. Com capacidade para até 30 pessoas, a casa tem três anos. Segundo o dono, Gilvan Nascimento, 32, 95% da clientela é composta por israelenses.

Os sababas são fisgados da praia por garçons cujas fardas têm estampados candelabros e bandeiras de Israel. No cardápio bilíngue, iguarias como falafel (R$ 30) e shakeshouka (R$ 25), uma mistura de ovos fritos com molho de tomate apimentado. “É a comida mais popular. É como o feijão com arroz de lá”, explica Yasmin. Marcos conta que, na Sampa no Morro, durante o Verão, chega a vender mais de 60 unidades do prato por dia. Gilvan e Daiane Nascimento: casal comanda o restaurante Nascer do Sol (Foto: Renato Santana/CORREIO) Pousadas especializadas A recepção da Pousada Sampa em Morro é uma síntese desse Morro de Israel: entre uma dezena de placas e avisos em hebraico, há uma escultura de uma namoradeira cercada por castiçais prateados. “Foram presentes dos hóspedes”, diz Marcos. É uma casa de dois andares, construída aos poucos, com catorze quartos, supersimples, mas bastante limpa. A recepção da pousada Sampa em Morro (Foto: Victor Villarpando/CORREIO) “Este ano só tivemos brasileiros no Réveillon. De resto, todos os hóspedes foram de Israel”, afirma ele, que é batista e divide os afazeres do negócio com a esposa, Nilda dos Santos, com quem tem 11 anos de casado. “Acontece muito deles chegarem dizendo que vão ficar três dias e acabarem ficando 10 ou 15. Já teve uma menina que ficou 50 dias”, lembra ele. A diária em um quarto coletivo, para quatro ou cinco pessoas sai a R$ 60. Uma suíte para dois fica por R$ 80. Gilvan tatuou Jerusalém no peito em agradecimento à clientela israelense (Foto: Renato Santana/CORREIO) Para brindar os israelenses, logo na entrada da pousada, Marcos pintou uma mensagem que virou ponto de fotos e selfies. “Estive com Marcos e sua família em Morro”, está escrito em hebraico. Além da pousada dele, o Muchiler também indica os albergues Black and White e Sorrisos, as pousadas Gute Morro e Grauçá.

Apartamentos também Theo dos Santos, 52, do Chalés do Theo, tem três apartamentos voltados para esse público. Um para três pessoas, outro para quatro e outro para oito. “Comecei com um local que atendia cinco hóspedes e hoje consigo receber 15. Entre 200 e 300 pessoas passaram por aqui ano passado, sendo que metade do meu público é israelense e a outra metade é argentino. Os argentinos vêm mais pelo Booking. Já os israelenses vêm no boca a boca e pelo Muchiler”, diz o feirense que está em Morro há 20 anos. Um dos apartamentos de Theo, do Chalés do Theo: capacidade para oito pessoas (Foto: Renato Santana/CORREIO) Além de uma cozinha bem equipada, ele destaca varanda como fundamental para os israelenses. “E eles gostam de juntar a galera e ficar bebendo e dançando. Notei que muitos viajavam carregando caixas de som grandes. Aí comprei logo uma boa, da JBL, custou uns R$ 3.500”, explica ele, que fala uma ou duas palavrinhas em hebraico, mas se vira mesmo no aplicativo do Google Tradutor. As diárias de apartamento inteiro variam entre R$ 500 e R$ 1.200. Theo na varanda de um dos apartamentos que aluga: vista para a segunda praia (Foto: Renato Santana/CORREIO) Tem quem não goste A fama dos israelenses em Morro é de jovens bagunceiros e barulhentos. No entanto, nenhum dos donos de pousadas que pensa assim quis ser identificado. Nem em off. “É discriminação. Eles, muitas vezes, trocam o dia pela noite. Acordam tarde e ficam bebendo e dançando... E tem pousada que não aceita, né? Mas muita gente que antes detestava judeus hoje adquiriu riqueza através deles. Aí se adapta”, diz Gilvan, que, além do restaurante Nascer do Sol, tem um apartamento que aluga por temporada. Ele diz que os clientes são “97% das vezes israelenses”.

Para contemplar as especificidades desse público, Marcos conta que, em períodos de maior fluxo de israelenses, prefere deixar a pousada inteira para eles, justamente para evitar situações com outros hóspedes. “No cotidiano com eles é importante deixar as regras claras. Quero que eles se sintam à vontade, mas estipulo logo o que pode e o que não pode. Peço que não fumem maconha aqui dentro, por exemplo, por causa de meu filho. Digo também que nada de barulho depois das 23h. Eles são pessoas boas. Só que são jovens, né? Gritam muito, falam ao mesmo tempo, se atropelam nas conversas, é uma confusão”, diz Marcos.

Segundo Ezio, a má fama existiu, mas ficou no passado. “Logo que eles começaram a chegar, há uns 10 anos, tinha muita confusão: entre eles, com a polícia, com vendedores de roska... Mas de uns sete anos para cá isso vem mudando. Pode perguntar para qualquer um aí: eles se adaptaram também, mudaram pra melhor. São pessoas excelentes para se trabalhar porque são simples, não têm muita exigência. E se gostam, são fieis mesmo”, explica o empresário. O barbeiro Maikon Leite, da barbearia Beleza Pura: tatuagem em hebraico (Foto: Renato Santana/CORREIO) Ele faz a cabeça dos sababas O barbeiro Maikon Leite, da barbearia Beleza Pura, só anda de camiseta ou sem camisa, para facilitar a vida. O por quê? Uma tatuagem em hebraico do ombro esquerdo para o peito, na qual se lê ‘barbeiro profissional’. “Me pedem muito pra tirar selfie. Aí é só puxar a alça da camiseta pro lado”, conta ele, que chega a atender 50 israelenses por dia durante o Verão – e só tem três cadeiras no salão de cerca de 12 metros quadrados. Nas paredes, dezenas de comentários e recomendações em hebraico. “Eles riscam as paredes todas, ficam aqui de gastação. Tem uns 8 ou 9 anos que trabalho com corte de cabelo aqui. E o número de israelenses só aumenta. Eles me procuram diretamente ou pelo zap, dizendo que viram fotos de amigos”, conta Mike, como é conhecido entre essa galera. No salão de Mike, as paredes são cheias de depoimentos de israelenses (Foto: Renato Santana/CORREIO) Há diferenças entre os sababas e os brasileiros ou outros turistas? “Um corte deles demora 40 ou 50 minutos, enquanto o de um brasileiro, por exemplo, é mais rápido. Às vezes tem um cara cortando e ficam três ou quatro amigos cercando a cadeira, olhando e dando opinião”, diz o barbeiro, que cobra R$ 50 por serviço. Os acabamentos preferidos? Os mesmos do Brasil: “muito degradê e navalhado”.

Mike não sabe ler o que está escrito nas paredes, mas se vira no bate-papo e está aperfeiçoando as habilidades num aplicativo de celular. Por conta do sucesso, já tem até proposta para morar em Israel. “Já recebi convites pra trabalhar como barbeiro lá. Foi o caso do dono de uma barbearia em Tel Aviv. Isso porque vários clientes dele cortaram comigo e chegaram lá mostrando os resultados, falando bem. Ele me seguiu no Instagram (@maikon_freestyle) e estamos conversando no zap sobre isso”, conta. Na sinagoga, o Shabat começa com oração e leitura da Torá (Foto: Renato Santana/CORREIO) Sinagoga animadíssima Não fossem pelas inscrições em hebraico, candelabros, rapazes de quipá (aquela almofadinha no cocoruto), exemplares da Torá (livro sagrado dos judeus), e uma fotona de Lubavitcher Rebbe, ‘o rabino master’, pareceria uma festinha comum, com música alta, animação, a galera se jogando na dança, muita comida gostosa servida em mesas de plástico e bebidas alcóolicas. Isso é o ápice do shabat, evento que marca a chegada do sábado, dia sagrado deles. A mesa do jantar do Shabat (Foto: Renato Santana/CORREIO) Tudo começa com um momento de oração coletiva, ainda do lado de fora da sinagoga, e leitura da Torá. Depois vêm o jantar com alguns cântigos, uma dúzia de gritos de Shabat Shalom! (‘um sábado de paz’, em hebraico) e uma comilança repleta de saladas, carnes e frango. A hora de comer: paredes com inscrições em hebraico e foto do 'rabino master' Lubavitcher Rebbe (Foto: Victor Villarpando/CORREIO) Por fim, os sofás e mesas vão para os cantos e a sinagoga vira uma grande boate. E eles metem dança. Na Mimouna, que aconteceu no dia seguinte e marcou o fim da Pessach, o menu foi mais doce: além frutas cortadas, comemos Moufleta, uma espécie de crepe besuntado no mel e Sfinj, um pão frito e passado no açúcar. Mas a festança foi igual ou maior. O rabino Mendy Kalifa (Foto: Renato Santana/CORREIO) Em casa A sinagoga de Morro de São Paulo, que abriu as portas há dois anos, na Rua Shalom, está separada da igreja batista por um pequeno beco. Quem comanda é o rabino Mendy Kalifa, 24, de Bersebá, em Israel.“Morro é um ícone do Brasil para os israelenses, por isso eles vêm tanto. E se tem muitos, tem que ter sinagoga para acolher e manter as tradições. Temos costume de guardar o sábado, de comer comida kosher (carnes de animais abatidos conforme rituais da Torá)”, explica Mendy, que, antes de desembarcar na ilha, passou por sinagogas no México, Argentina, Bolívia, Peru e Colômbia. Em jantar do Shabat e também da Mimouna, o repórter Victor Villarpando ganhou até uma quipá (Foto: Renato Santana/CORREIO) Ele conta que, na sexta-feira de Carnaval, o jantar do Shabat teve que acontecer num espaço alugado por conta da quantidade de gente: foram mais de mil pessoas. No último sábado de abril éramos cerca de 60. E fomos muito bem acolhidos por todos. Depois da comida, a sinagoga vira pista de dança (Foto: Victor Villarpando/CORREIO) “Toda quarta-feira chegam 100 quilos de carne kosher, que vem de Belém do Pará para abastecer a sinagoga”, explica o rabino. Estávamos do lado de fora, para que eu conseguisse gravar o áudio da conversa. Lá dentro, com a música comendo no centro, algumas moças fazem aquele barulho da novela o clone lalalalalalalalalalaiiii bem alto. Chega um grupo de cinco meninos com uma garrafa de vodca Slova e copos de plástico nas mãos. Servem doses e todos bebem de uma vez. “Vamos voltar pra a festa!”, convoca Mendy, depois de virar a dele. O rabino interage pra valer com a galera: Theo, do Chalés do Theo, também participa (Foto: Renato Santana/CORREIO) Cuidados “Gostei do dia em que ví os pinguins chegando – a gente brinca com os religiosos assim por causa da roupa. Eles fazem jantares, têm comida kosher... Os israelenses se sentem em casa. Se tem algum de nós precisando de qualquer ajuda, eles estão lá, a qualquer hora do dia”, afirma Yasmin, que faz parte da pequena comunidade de moradores israelenses da ilha. Refrigerante, vodca, sfinj e frutas na mesa da Mimouna na sinagoga (Foto: Victor Villarpando/CORREIO) “Somos poucos, uns seis, mas somos muito unidos. Lembro de uma vez que achei um menino israelense alucinando de febre, passando muito mal na rua. Fiquei muito preocupada, botei ele pra dentro de casa, mandei dar uma ducha fria e contactei o rabino. Ele conseguiu um helicóptero às 2h da manhã pra levar o rapaz pra um hospital em Salvador”, conta ela. O jantar na sinagoga (Foto: Victor Villarpando/CORREIO) Música Pagode e arrocha não têm vez nas caixas de som dos sababas. “A gente ouve muita música de Israel, psytrance e raggaeton. Não conheço músicas brasileiras. Só sei que as meninas dançam rebolando muito a bunda, não consigo fazer aquilo”, diz Nafar Abulafya, 22, aos risos. Ela estava em sua segunda semana de Morro de São Paulo e pretendia continuar viajando pela América do Sul por mais seis meses. Festa na sinagoga é animada (Foto: Renato Santana/CORREIO) Da nossa música, Nimrod Tal e as amigas, Noa e Maayan Haim, conhecem apenas Olha a Explosão, de MC Kevinho, e Parado no Bailão, do MC L da Vinte. “Lá em Israel não tem essas músicas pervertidas daqui”, conta Nimrod, que durante o serviço militar fazia a manutenção de tanques de guerra.

Ah, e sabia que o Brasil já foi tema de música em Israel? É a dançante Tudo Bom, dos israelenses Static & Ben-El Tavori, que soma 55 milhões de visualizações do Youtube. Na letra, que mistura hebraico e português, pipocam palavras como caipirinha, gatinha, louca, favela, berimbau... E no refrão, claro, sababa: “Tudo bom. Tudo tudo tudo bom?”.

Assista ao clipe de Tudo bom:

Libera geral Para Nimrod, a liberdade é ponto central na paixão dos israelenses por Morro. “Por 22 anos, sempre me disseram o que fazer e o que não fazer. A gente sai direto da escola pro exército. Depois disso, ninguém mais te diz o que fazer. É uma sensação estranha, mas é muito boa. Se eu quiser ir pra festa, eu vou. Se quero voar pra Cusco (no Peru), eu voo. Faço o que quero. Gosto de me sentir livre porque não tinha sido livre até então. Sei que precisarei fazer faculdade e cuidar do futuro, mas nesse período de viagem ninguém fica me pressionando sobre isso” diz ele.

Jaim Zadok, 24, que estava há quase duas semanas em Morro, concorda. “Acho que muita gente vem para cá porque há liberdade, não tem tantas regras. As pessoas dançam nas ruas, brincam com tudo, se sentem livres, bebem, fumam... É uma vida sem preocupações, é o paraíso”, diz ele, que aprendeu a falar espanhol porque ama novelas mexicanas, como Maria do Bairro e A Usurpadora. “Também entendo um pouco de português porque assisti algumas novelas brasileiras, como Avenida Brasil, O Clone e Caminho das Índias na TV em Israel”, explica.

Drogas “A gente sai do exército querendo ver o mundo, passear por aí. Depois do serviço militar você quer mais é ‘ficar alto’ o tempo inteiro”, diz Shlomi Gavriel, 26, que fez sua viagem de período sabático pós-exército no ano passado, para Tailândia, Cambodja e Vietnã. Este ano, o jovem, que tem uma empresa de dedetização em Jerusalém, resolveu conhecer o Brasil.

“O consumo de drogas é algo comum na juventude pelo mundo e, claro, também em Israel. Mas o fato desses jovens estarem fora do exército, longe das famílias e de leis rigorosas permite que eles acabem experimentando muita coisa, inclusive drogas”, pontua o professor Chaim Noy.

Marcos já ficou em apuros com um rapaz que chegou à pousada alterado. “Esse cara surtou no dormitório compartilhado. A sorte foi essa, porque aí um hóspede que tava na outra cama correu pra me pedir ajuda. Ele tava muito louco. Amarrou uma toalha no pescoço e disse que ia pular de lá de cima para a piscina. Só que não tem piscina aqui. Ele tava pendurado, já para cair e a gente agarrou ele. Eu que chamei o médico, mas demorou pra ele melhorar. Teve um momento das alucinações em que ele ligou para a mãe e se despediu dela, como se fosse se matar. Foi muito tenso”, recorda o empresário. Anos depois, a irmã do rapaz visitou Morro e fez questão de ir à pousada agradecer. A pequena Hadassah no colo de Yasmin Tiker (Foto: Renato Santana/CORREIO) Tem criança com nome israelense Assaf tem apenas 8 anos, mas já sabe falar palavras e algumas frases em hebraico. “Botei o nome do meu filho assim em homenagem ao povo deles, pois é com eles que ganhamos nosso sustento. Significa presente de Deus”, conta Marcos.

O nome da pequena Hadassah, de cinco anos, tem motivação parecida. “Se eu fosse rico, dava tudo de graça pra os israelitas, porque são o povo de Deus. Sinto uma energia neles que não sei nem dizer. Amo de coração. Tudo que tenho agradeço a Deus e aos israelenses. Tanto que botei esse nome em minha filha”, diz Gilvan, que se inspirou na Bíblia, no nome de nascença da rainha Esther. Adesivos na parede do restaurante Dale Papi (Foto: Victor Villarpando/CORREIO) Mortos que viajam Nos locais frequentados pelos israelenses é comum ver adesivos com rostos de jovens, textos em hebraico e datas. “Já quando estamos no serviço militar, costumamos planejar como vai ser a viagem que faremos depois. Infelizmente, alguns morrem no exército. Já perdi amigos assim. Aí a gente leva adesivos para a viagem e cola nos lugares onde planejou ir juntos. É algo do tipo ‘estivemos aqui com fulano’. Tem gente que imprime uma foto grande do rosto do amigo que morreu e ‘inclui’ a pessoa nas fotos com isso. É uma homenagem para um amigo que planejou passear e conhecer o mundo, mas não teve a oportunidade. Uma maneira de dizer que essa pessoa não está mais aqui, mas que de alguma forma pôde ter esses momentos felizes com os amigos”, explica Yasmin.

Desde seu surgimento em 1948, Israel esteve em oito guerras, duas intifadas palestinas (rebelião popular palestina contra as forças de ocupação de Israel na faixa de Gaza e na Cisjordânia) e numa série de conflitos armados com alguns dos países da Liga Árabe. Egito, Líbano, Jordânia, Síria e Iraque, por exemplo, invadiram Israel no dia seguinte à criação.

Esta semana, o país foi alvo de foguetes do Hamas - organização islâmica para liberar a Palestina da ocupação israelense - e da Jihad Islâmica - facção baseada na Síria que visa criar um estado palestino islâmico e destruir Israel - e também atacou.