Só Deus: projeto entra em região violenta de Salvador e ensina morador a empreender

Iniciativa é da Paróquia Nossa Senhora da Luz e da Ordem Nossa Senhora das Mercês

  • Foto do(a) author(a) Bruno Wendel
  • Bruno Wendel

Publicado em 10 de setembro de 2019 às 06:15

- Atualizado há um ano

. Crédito: Evandro Veiga/CORREIO

Os tiros atingem bandidos, viaturas, coletes policiais e inocentes. Assim é a rotina do Boqueirão, no Complexo do Nordeste de Amaralina, uma das regiões mais violentas de Salvador. O local é reduto da facção Comando da Paz (CP), uma das organizações criminosas mais fortes do estado, onde também estão instaladas três Bases Comunitárias da Polícia Militar e a 40ª Companhia Independente. Lá, onde o acesso da polícia só é possível com um grande efetivo – isso inclui unidades especializadas monitoradas por helicóptero –, Deus entra com facilidade.

Isso porque há seis anos a Paróquia Nossa Senhora da Luz e a Ordem Nossa Senhora das Mercês implantaram o Centro de Empreendedorismo Nordeste de Amaralina (Caena), um projeto pioneiro que ensina noções de empreendedorismo a jovens em uma das comunidades mais estigmatizadas pela violência no estado, situada na Santa Cruz, um dos quatro bairros que formam o complexo, junto com Nordeste de Amaralina, Vale das Pedrinhas e a Chapada do Rio Vermelho.

Em oito meses, foram quatro casos de perseguições policiais em que os bandidos invadem os imóveis e fazem reféns os próprios moradores. A situação mais recente foi em 15 de agosto, quando cinco homens ligados ao CP invadiram uma casa no final de linha de Santa Cruz onde estavam um idoso, o filho dele e o neto de 8 anos. Os criminosos libertaram os reféns e se entregaram à polícia.

Apesar das ocorrências policiais, o Caena já beneficiou 560 jovens e atualmente conta com 40 alunos distribuídos em dez ações em cursos e oficinas. “É uma forma de combater o estigma da região. Acreditamos que é possível mudar. O que nós oferecemos aqui dificilmente jovens encontrarão em outro lugar. Aprenderão a ser empreendedores de excelência”, explicou o frei padre Rogério Soares de Almeida Silveira, idealizador do projeto, que tem parceria com o Parque Social. O frei padre Rogério Soares de Almeida Silveira, idealizador do projeto, na sede do Caena (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) Entre salas e computadores, os alunos aprendem gestão de negócios, planos estratégicos, metas, noções de contabilidade, trabalho em equipe, liderança e competitividade.

O prédio tem dois andares e tem 70% de sua obra concluídos. Foi erguido na Rua Nossa Senhora da Conceição, já na divisa do Nordeste de Amaralina. Os dois bairros têm 15.303 domicílios com 48.954 moradores, segundo o IBGE.

Para dar o pontapé inicial, o frei padre Rogério enfrentou alguns problemas, um deles foi o estigma da região. “Inicialmente, tivemos algumas dificuldades, pois algumas empresas se recusavam a entrar devido ao medo. Então, foi quando tivemos a ideia de usar a mão de obra local. Um dos benfeitores (assim se refere o frei padre Rogério aos colaboradores do projeto) é dono de uma construtora e fez todo o projeto. A partir daí, convocamos moradores qualificados para a obra”, contou. 

Um dos operários foi o mestre de obras João Ferreira da Silva, 63, nascido e criado no local. “Pra gente, isso aqui é um presente de Deus. Trabalhamos com muito amor, porque fazemos a nossa parte para mudar o que falam daqui. A semente foi plantada, e a árvore está crescendo”, disse ele, que trabalha na construção de uma padaria no primeiro andar do prédio. O mestre de obras João Ferreira da Silva, orgulhoso por participar da construção do prédio (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) Quem também trabalhou na construção do prédio foi o carpinteiro José Dionísio, 55. “Sinto-me orgulhoso. Esse projeto é uma benção. Vê os nossos jovens tendo a oportunidade que nós não tivemos é muito gratificante”, disse ele.

Todas as quintas-feiras, das 8h30 às 12h30, Jamile de Andrade da Silva, 19, está no Caena. Ela é uma das alunas da oficina de miniempresa. “A minha intenção é expandir meus conhecimentos num projeto que veio para ficar. Antes, vivíamos de ilusão. Alguns projetos chegavam, mas ficavam alguns dias. Hoje, não. Temos à disposição um conhecimento de primeira qualidade com profissionais de primeira e o melhor de tudo, aqui na comunidade”, diz Jamile, estudante do 1º semestre de Administração na Universidade Federal da Bahia (Ufba). A estudante Jamile Andrade da Silva é, hoje, aluna de Administração depois de estudar com uma bolsa da Paróquia Nossa Senhora da Luz (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) Formada há seis em Administração numa faculdade particular, Idelci Bispo, 49, está fora do mercado de trabalho, mas busca logo empreender e, por isso, também está na turma. “Sempre sonhei em empreender, mas não tinha embasamento. Agora, posso juntar algumas ferramentas e atuar com propriedade. Quero abrir uma loja de cosméticos com aplicação de serviço”, sonha.

Visionário Em 2010, já pároco da igreja Nossa Senhora da Luz na Pituba, o frei padre Rogério atentou que poderia fazer muito mais do que dar cestas básicas. Ele recebeu uma mãe aflita porque o filho de 15 anos tinha sido convidado para servir ao tráfico. “Conversei com o garoto, e ele me falou categoricamente: ‘Padre, não tenho escolha, minha mãe é pobre, não tenho pai, somos 4 filhos. Dentro do Areal, não há possibilidades, quero ajudar minha mãe e tenho vontade de ter um tênis e roupas bonitas’. Na época, não tive como fazer nada, não tive como mudar o rumo daquele menino. Pouco tempo depois, soube da morte dele, já dentro do tráfico. Isso me deixou pensativo.”

No terreno da igreja, ele imaginou então um centro de empreendedorismo. “Foi como uma inspiração divina, não sei explicar. Comecei a fazer contatos com paroquianos e vieram os primeiros voluntários”, relembrou. 

 A aproximação entre o complexo e a Pituba mudou a vida da advogada Alyne Mary Correa da Costa, 51. “O Caena é uma academia do empreendedor. Sou colaboradora, incentivadora.  A maioria das pessoas da Pituba nunca entrou no Nordeste. 80% dos moradores não passaram pelo muro social. No dia que entrei, fiquei encantada com a quantidade de comércio. É um mundo. Minha visão mudou”, disse Alyne Mary, que atualmente mora em Itacimirim, mas continua ajudando nas causas da paróquia – ela convenceu os parentes de Manaus a ajudarem o Caena também. 

De acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP-BA), em 2017, foram 105 ocorrências contra 85 em 2018, considerando os dados referentes a homicídios dolosos, tentativa de homicídios e prisão relacionadas ao tráfico de drogas.

Em relação à criminalidade, a SSP-BA informou que “diariamente equipes das polícias Militar e Civil atuam na região, combatendo o tráfico de drogas. Lembra que na área do Nordeste de Amaralina funcionam três Bases Comunitárias de Segurança, uma delas na região da Santa Cruz e próximo da localidade do Boqueirão. A unidade atende cerca de 5 mil crianças, adolescentes e adultos, anualmente, promovendo cursos profissionalizantes, atividades relacionadas a artes marciais, ações para terceira idade, entre outras interações”. Igreja Nossa Senhora da Luz está à frente do projeto (Foto: Evandro Veiga/CORREIO) Parceiros Desde o ano passado, o Caena conta com parceiros. “Nas ações do Laboratório de Desenvolvimento Profissional, o parceiro entra com a expertise e o Caena com os jovens e a infraestrutura. Servimos como uma ‘janela de oportunidades’, ofertando para o Nordeste o melhor que os nossos parceiros já realizam”, disse a psicóloga Viviane Quênia, responsável pela área pedagógica do projeto.

A parceria entre o Caena e o Parque Social surgiu através de um acordo em áreas comuns de atuação, promovendo ações que fortalecem o ecossistema do empreendedorismo social com foco no complexo. No Programa Comunidade Empreende (PCE), desenvolvido pelo Parque Social e que tem como finalidade disseminar a cultura de autodesenvolvimento nas comunidades, o Caena contribuiu nas divulgações do programa em veículos de comunicação da comunidade, nas redes sociais e por malas diretas, ajudando também na mobilização para participação nas ações.

Os outros parceiros do Caena são: Universidade Católica do Salvador (Ucsal), Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), Núcleo de Atendimento Psicológico (Napsi) e Junior Achievement, organização de educação prática em negócios, economia e empreendedorismo.

Por enquanto, o Caena sobrevive de doações. A pretensão é de torná-lo autossustentável com a construção de uma padaria no primeiro andar do prédio. “Vamos produzir pães e vender aos moradores da Pituba, do Itaigara e da própria comunidade. Temos dois especialistas no assunto que farão pães de qualidade e exclusivos”, explicou o frei padre Rogério. 

Ainda no entorno do prédio, há um terreno que já alimenta um outro projeto do religioso. “Meu sonho é erguer um anfiteatro para que os moradores possam se apresentar. É uma forma também de trazer turistas para cá, como ocorre nos morros do Rio de Janeiro. É mostrar para o mundo que a vida insiste em ser vida”, disse o frei padre Rogério.

As formas de como ajudar estão no site do projeto: www.caena.com.br.

Acesso restrito No fim de julho, o CORREIO esteve no Boqueirão, comunidade da Santa Cruz. Esta foi a primeira vez que uma equipe de reportagem entrou na localidade sem a presença da polícia – em outras situações, por medida de segurança, nossa equipe acompanhou uma mega operação da Polícia Militar, que tinha como objetivo instalar bases comunitárias no Complexo do Nordeste de Amaralina.

Era por volta das 9h30 quando a equipe chegou ao local combinado na Pituba, para encontrar com o frei padre Rogério e outros integrantes da Paróquia Nossa Senhora da Luz e do projeto Caena. O acesso à comunidade foi feito pela Rua Cícero Simões – um vetor de ligação entre os luxuosos edifícios e as construções irregulares do complexo.

Meia hora depois, o comboio de três carros – o primeiro transportava o frei padre Rogério – levou todos à Rua Nossa Senhora da Conceição. Por medida de segurança, os carros estavam com todos os vidros abaixados e todos os ocupantes não usam o cinto de segurança – medida adotada para evitar que, numa suposta abordagem, seja realizada algum movimento brusco que possa contrariar homens armados. Outra condição de segurança foi a circulação dos veículos em baixa velocidade.

No trajeto até chegar ao prédio - cerca de cinco minutos -, os carros foram seguidos por olhares atentos do tráfico – pelos becos e vielas, jovens, aparentemente com menos 18 anos, conhecidos como “olheiros”, usam celulares para filmar a circulação dos carros. Alguns segundos depois, a rua estava tomada por eles. O momento mais tenso foi quando a equipe percebeu que alguns meninos que rodeavam os carros estavam armados

Segundo o último censo do IBGE, em 2010, entre os jovens de 10 a 24 anos, os bairros de Santa Cruz e Nordeste de Amaralina possuem cerca de 12.300 habitantes. Isso significa que 25% dos habitantes desses bairros estão na faixa etária que faz parte do público-alvo do projeto.