'Tem mulheres que buscam o crack para viver': história de usuárias em Salvador vira livro

Antropóloga Luana Malheiro acompanhou 20 mulheres usuárias de crack no Pelourinho para entender a cultura do uso abusivo do crack

Publicado em 30 de agosto de 2020 às 11:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Divulgação

Durante dois anos e meio, a antropóloga baiana Luana Malheiro acompanhou a rotina de 20 mulheres no Centro Histórico de Salvador. Eram todas usuárias de crack, uma das drogas com mais impacto sobre o corpo humano. Mas Luana queria entender mais que o efeito físico: o objetivo da pesquisa, que resultou no livro ‘Tornar-se mulher usuária de crack’, era entender como as mulheres chegavam ao crack e como se formava essa cultura de uso da droga.

Os resultados podem surpreender muita gente. Entre as conclusões, Luana aponta que, para muitas, o crack é como uma busca pela vida - e não um meio de morrer. Quase todas as mulheres que participaram da pesquisa foram vítimas de violência, e foi que as levou para as ruas - em 2016, Salvador chegou ao número aproximado de 3.060 mulheres que viviam nas ruas, sendo 1.838 negras, 1.030 pardas e 192 brancas, conforme dados da Cartografia dos Desejos e Direitos, publicada em 2016. 

Mas no final do trabalho, Luana e as companheiras tiveram um alento: a pesquisa acabou resultando numa rede de apoio para usuárias e um grupo chegou a ir a um encontro feminista em Recife (PE). “O livro conta mais ou menos essa história, esse coletivo existe até hoje e a gente tem essa proposta de denunciar essa guerra às drogas. Debate um pouco de como esse racismo brasileiro também tem atuado no sentido que Lélia Gonzalez [antropólogo brasileira] coloca, o sentido da neurose brasileira, o racismo que opera nesse modo da negação do racismo”, explica Luana.

“Quando a gente olha para a política de drogas, a gente ouve narrativas dizendo que o problema é do crack, e não de uma estrutura racista, de uma estrutura sexista. Eu abordo como isso é uma outra face do racismo, da culpabilização”, completa.

Confira a entrevista:

Por que falar das mulheres usuárias de crack em Salvador e por quanto tempo você as ouviu? Eu sou de Salvador, moro aqui. Esse trabalho foi o resultado da minha dissertação de mestrado na Ufba, em Antropologia. Nesse livro, eu conto a história de uma pesquisa que eu fiz num universo de 20 mulheres usuárias de crack no Centro de Salvador. Eu acompanhei essas mulheres em cenas de uso, nos trajetos delas para acessar serviços de saúde, serviços de abrigamento, maternidade, enfim. Fiz um acompanhamento de cerca de dois anos e meio. A questão da minha pesquisa era entender qual o caminho que fazia com que uma mulher se tornasse usuária de crack.

Elas começam usando outras drogas e depois passam para o crack?  Nunca é só o crack. Tem o crack, a cola, tem o álcool. As pessoas usam muito mais o álcool. É um conjunto de drogas, mas o crack deixa alerta e não faz com que você fique numa situação vulnerável. A maconha não é recomendada para a rua porque ela te tira do estado de alerta. O crack, na rua, também tem uma funcionalidade. A maconha é usada no momento em que a mulher quer sair desse uso abusivo, caminhando para a autorregularão.

Usuários de crack sofrem muito preconceito. Em que momento ele entra na vida dessas mulheres, que caminho é esse?  Eu acabei entendendo que o momento em que essas mulheres entram numa cultura de crack mais abusiva é quando ela sofre uma violência muito forte. É a violência racial e de gênero como uma porta de entrada de uso para o crack. Os relatos são, por exemplo, de perda do filho já na maternidade, o que leva essa mulher a ter um vazio muito grande e isso só é preenchido com uso de crack. Ou mulheres que sofrem estupros e esse trauma leva ao uso abusivo.Das 20 mulheres que eu acompanhei, 18 delas sofreram violência dentro de casa, que faz com que elas saiam de casa. Isso quebra um mito de que elas vão para a rua atrás de drogas. Na verdade, elas vão para a rua em busca de um conforto. O uso mais abusivo aparece como uma resposta a esse conjunto de violências. (Foto: Julliano Falcão/Divulgação) No livro, você fala que o crack, muitas vezes, é o ‘caminho de vida’ dessas mulheres. Por quê?  Para mim foi muito doloroso, foram narrativas muito dolorosas, mas eu acho que é surpreendente porque você tem uma ideia, um senso comum, de que as pessoas usam o crack para a morte, de que elas querem morrer.E você vê que tem mulheres que buscam o crack para viver, num caminho de tanta morte em suas vidas. Eu consegui identificar um ciclo que se repete constantemente: ela sofre uma violência brutal - da polícia, do companheiro do tráfico, do companheiro de papelão - e para conseguir elaborar essa violência, ela faz o uso do crack.E se a gente se reporta, a gente percebe que a pessoa vai recorrer à bebida alcoólica, à cachaça. O crack está nesse quadro de busca de vida, de cura, dentro do que está acessível pra essas mulheres.

É uma fuga da realidade?  Eu acho que um aspecto ligado também ao feminicídio, ao racismo, à guerra às drogas do estado brasileiro que adota o método de exterminar. Eu conto a história da mãe de um jovem que está em situação de pobreza, de rua, e o filho começa a vender crack. Quando ele começa a sair, a se organizar, ele é morto na frente da mãe com quatro tiros nas costas. Isso tem mais ou menos cinco anos e ela diz que tem cinco anos que sempre que ela acessa essa dor, ela só tem um alívio quando ela fuma o crack. É difícil a gente julgar esse uso. Tem uma parte do livro que eu debato como a mídia trata uma questão da precariedade do corpo das mulheres. Sempre e trabalhou numa perspectiva de desqualificar essa mulher, de que ela não tem habilidade de ser mãe, não pode ser mãe. Hoje, a gente tem uma situação no Brasil que é muito grave que é de retirada dos bebês das mães que usam crack. A Justiça entende o direito da criança, mas não o da mãe, que vive um luto.

Que dificuldades elas enfrentam, além do vício? A pesquisa entrou também na falta de acesso dessas mulheres aos serviços. Tem uma mulher que sofreu agressão do companheiro e fez um relato de que ela formalizou uma queixa na Delegacia da Mulher, mas não tem acesso à casa abrigo porque ela é uma pessoa em situação de rua. Isso mostra como a rede de proteção é pensada para um tipo de mulher, para um tipo de violência, é para quem tem um domicilio.A violência que acontece o tempo todo com a mulher na rua, a Lei Maria da Penha não consegue conduzir. O desfecho é que a mulher acaba voltando para a casa, o agressor vê a medida protetiva, a espanca e ela vai para a rua.O que mais te mercou nessas histórias?  Tem diversas narrativas de superação de que as mulheres conseguem acessar as redes de cuidado, como o Consultório na Rua, o Corra do Abraço. Quando a mulher se sente cuidada, ela se sente estimulada a buscar outros serviços. No final da pesquisa, a gente acaba entendendo que houve alguns momentos coletivos. Uma das companheiras com trajetória de rua, ela narra q consegue entender que essa violência não é só dela, como de outras mulheres. A gente conseguiu um espaço coletivo para debater essas violências e para conseguir ensinar às mulheres que chegam mais novas na rua a como se proteger. A gente consegue debater coletivamente a violência de gênero para criar espaços de luta e consegue ocupar essas cenas também com política. A gente consegue formalizar um grupo local da Renfa (Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas), e a gente consegue incluir, financiar, quatro companheiras que eram trabalhadoras do mercado de drogas porque não tinham conseguido ingressas o mercado formal. A gente consegue que elas entrem no projeto e sejam formadoras. Com a articulação da Ufba, a gente consegue um ônibus e leva 30 mulheres e cerca de sete crianças para um encontro nacional em Recife (PE). Foi a primeira vez que boa parte dessas mulheres estavam indo para um encontro feminista. (Foto: Julliano Falcão/Divulgação) O livro: Tornar-se mulher usuária de crack: cultura e política sobre drogas Editora: Telha Páginas : 372 Preço: R$ 65 Pré-venda: www.editoratelha.com.br Onde encontrar: Amazon, Americanas, Blooks Livraria, Livraria da EdUERJ, Livraria Leonardo Da Vinci, Magazine Luiza, Mercado Livre, Shoptime e Submarino

A autora: Luana Malheiro é Bacharel em Ciências Sociais com concentração em Antropo- logia pela Ufba, especia- lista em Saúde Coletiva com ênfase em Saúde Mental pelo Instituto De Saúde Coletiva da Ufba (ISC/Ufba), mestra em Antropologia pela Ufba. Atualmente é articuladora política na Secretaria Executiva da Plataforma Brasileira de Políticas Sobre Drogas (PBPD) e con- selheira da Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas (INNPD).