'Temos um acervo importante que está ameaçado', diz Capinan sobre o Muncab

O poeta e compositor baiano provoca um "zumbido" para chamar a atenção das dificuldades enfrentadas pelo Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira, que luta para sobreviver

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  • Laura Fernades

Publicado em 12 de novembro de 2016 às 07:35

- Atualizado há um ano

Quatorze anos se passaram desde a idealização do Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab) e, por incrível que pareça, o espaço carinhosamente apelidado de “museu em processo” está longe de concluir suas obras. “Perda cultural imensa”, na opinião do diretor do Muncab, José Carlos Capinan, 75 anos, que decidiu fazer um “zumbido” para chamar a atenção das dificuldades enfrentadas no espaço.Persistente, o poeta e compositor tropicalista conversa com o CORREIO sobre problemas que vão de alagamentos e risco às obras, até o processo de federalização ainda pendente. Também presidente da Associação de Amigos da Cultura Afro-Brasileira (Amafro), Capinan revela projetos artísticos e arquitetônicos para o museu, conversa sobre o projeto Zumbido no Muncab, que terá show de Paulinho da Viola, e critica o retrocesso da sociedade atual. Confira.O poeta e compositor José Carlos Capinan é diretor do Muncab e presidente da Amafro(Foto: Mauro Akin Nassor)Idealizado em 2002, o Muncab passa por um processo de federalização que ainda não foi concluído. Em que pé está isso?A proposta de criação do museu surge em 2002, feita pelo Ministério da Cultura, e a ideia era criar cinco museus federais em diferentes estados. Entre eles, havia um dedicado à cultura afro-brasileira e definiu- se que o melhor lugar para a implantação desse museu seria a Bahia, por sua própria história, pela força da cultura afro-brasileira aqui. A ideia era que o museu tivesse uma gestão mista - com participação do estado, do Ministério da Cultura e de uma Oscip (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) -, em função de superar um problema que era vivido na época e que continua hoje. Não só um problema de gestão, mas de recursos que permitissem investir em atividades educativas e culturais, que é mais ou menos o modelo que estamos tentando implantar aqui. Ou seja, o projeto estava planejado para ser executado em dois anos, a partir de 2002, sendo que sua parte fundamental seria a federalização, na qual, através de um decreto-lei, esse museu viraria federal.Quais são os obstáculos que estão impedindo esse processo?Ocorreram algumas interrupções administrativas e isso já atrasou em dois anos o trabalho. Em 2004, tivemos o primeiro patrocínio da Caixa Econômica, para fazer cadastro dos dois prédios, projeto arquitetônico, museológico e projetos complementares. Nós captamos através da Lei Rouanet, mas não foi suficiente para desenvolver as obras de restauro. Então, em 2010, continuávamos com dificuldades. Aí veio a criação de um convênio com o Fundo Nacional de Cultura, no valor aproximado de R$ 10 milhões. Entretanto, os repasses parcelados foram suspensos em 2011, devido a irregularidades nas obras encontradas pela CGU (Controladoria-Geral da União). Em função disso, nós abrimos uma ação contra a empreiteira e essa ação ainda está sendo julgada. Obra é uma coisa muito complicada, sobretudo obra de ruínas. Por exemplo, estamos vivendo um problema com as chuvas que continuam alagando o museu. Queremos a liberação do que está retido para darmos continuidade a essas obras e fazer a readequação no telhado. Temos um acervo muito importante que está ameaçado. Precisamos dar continuidade, porque temos 80% de obra realizada desse lado do prédio e a gente quer retomar as obras do outro prédio, onde serão feitos uma biblioteca e um café.O que esse impasse provoca?Uma perda cultural imensa, uma perda histórica, porque não legitima a diversidade cultural que é uma das maiores riquezas que nós temos. É uma discriminação, porque não permite que o Brasil conheça sua própria origem, suas matrizes. Na luta contra o racismo, contra o preconceito e na luta pelo conhecimento a gente também perde, porque não tem uma entidade capaz de dinamizar esse conhecimento para vencer a ignorância a respeito dessa matriz importante. Por isso, em determinado momento, adotamos o apelido ‘Museu em Processo’ e continuamos a fazer ações educativas e exposições, como a do Mestre Didi e O Benin Está Vivo Ainda Lá - Ancestralidade e Contemporaneidade (2009), com curadoria de Emanoel Araujo, que é responsável pela escolha desse prédio magnífico - antigo  Tesouro do estado. Depois de adotar o ‘Museu em Processo’, nós adotamos hoje outro lema: Museu Vivo.Capinan na sala onde estão expostas obras que retratam a chegada dos negros africanos no Brasil(Foto: Mauro Akin Nassor)Diante do que se pensa para o Muncab, há alguma tentativa de dinamizar o entorno?Existem muitas ideias, mas estão na dependência da nossa verba. Por exemplo, há uma proposta do arquiteto  Paulo Ormindo para a criação de um estacionamento subterrâneo, que é muito importante, e há a proposta de sinalização indicando onde fica o museu. Além disso, nosso calendário prevê duas exposições temporárias anuais, em datas alusivas como é o 13 de maio e o mês de novembro, mês da consciência negra. Só estamos conseguindo fazer em novembro. Mas acho que a criação do museu como entidade jurídica vai nos dar colaboradores, técnicos, pesquisadores, professores e museólogos para fazer a instituição funcionar. Hoje, nós estamos trabalhando com cinco pessoas, contando os vigilantes, oito.O que está ainda previsto na programação do Muncab?Nosso roteiro expográfico foi criado para tentar cobrir a maioria dos temas da cultura afro-brasileira. Isso é o que o roteiro - que ainda não foi totalmente instalado - pretende: falar da identidade negra, falar da África como continente de onde toda a humanidade veio inicialmente; falar da questão do tráfico de escravos; da resistência negra, dos quilombos e revoltas; das contribuições na culinária; da religiosidade; das festas populares; do esporte; e da música, que é uma exuberância  de matrizes com o samba, semba, maracatu... Nós vamos ter uma árvore do conhecimento e vamos convidar artistas a cada dois anos para fazer uma instalação nessa sala. Temos a ideia do jardim do axé, com plantas medicinais sagradas, e vamos falar da arte também, porque somos um museu histórico e artístico.A partir do dia 18, o museu realiza o projeto Zumbido no Muncab. Qual é o objetivo do evento, que conta com exposições, oficina e show de Paulinho da Viola?Primeiro é dar mais visibilidade ao museu e seus problemas. Dar mais visibilidade a sua importância e conquistar mais adeptos a sua instalação, pra gente vencer essa burocracia, essa falta de consideração. Somos prioridade e vencer a resistência é o objetivo principal. Retomar o projeto, pressionar para que seja federalizado o museu. Isso é importante para que ele sobreviva de fato.(Foto: Mauro Akin Nassor)Por quê?Hoje, o grande problema nas manifestações  é a falta de conteúdo e o individualismo  sem identidade, sem responsabilidade. Devemos ser aqui, nessa casa de cultura, estimuladores da liberdade de criação, da liberdade de expressão. Sem isso, o humanismo se esvazia. A principal   bandeira aqui é o humanismo. Ensinar a fazer, ensinar a ser, porque acho que somos o que fazemos e quanto melhor fazemos, melhor somos. Essa é a proposta do museu, poder ajudar a formar uma consciência, que permita uma contribuição com a contemporaneidade.Concorda que essa contemporaneidade vive um retrocesso?Sem dúvida. Tenho uma interpretação para essa crise brasileira atual: é uma crise capitalista sobretudo, que não consegue garantir para a humanidade um sistema que seja bom para todos. Até a metade do século passado, a questão da negritude, da mulher, a questão de gênero e de outras coisas estavam travadas. A partir dos anos 60, houve uma contracultura e aí, de repente, várias coisas que foram conquistadas estão ameaçadas novamente. Tudo isso depois de um século onde emerge o Woodstock, a Bossa Nova, o Cinema Novo, a Semana de Arte Moderna, o movimento contra a guerra... Você vê o candidato que vence as eleições nos Estados Unidos falando de uma forma preconceituosa contra a mulher, o homossexual, os mulçumanos e contra uma série de coisas que fazem a gente pôr em dúvida se isso tudo será permanente, ou será destruído. Essa onda de conservadorismo é muito forte e a inteligência tem que voltar a ser a grande arma. A inteligência, a sensibilidade, a arte, a cultura... E o museu é justamente uma casa a favor da produção de conhecimento. Tínhamos vários programas para trabalhar com a comunidade, mas como é que a gente vai fazer isso sem recurso? Sem a estrutura museológica aprovada? Então tem que dar um choque, fazer um “sacudimento” como foi o Tropicalismo.Aproveitando que você tocou no assunto, como está a expectativa para celebrar os 50 anos da Tropicália, ano que vem?Eu não tinha ideia de que a Tropicália viraria um movimento que está aí para ser permanentemente ensinado... Mas é uma forma de preservar memórias e atitudes. Na época do Tropicalismo, havia uma rebeldia universal e os jovens lançavam desafios com relação ao que estava instituído, não confiavam em pessoas com mais de 30 anos e até nos partidos políticos, que foram rejeitados como se fossem capazes de mudar o mundo. Então, a ideia era que a música, a arte e a poesia transformassem o mundo. É isso que dá força ao Tropicalismo naquele momento, porque é basicamente um movimento cultural, comportamental. Surgem aí os grandes momentos do black power, que contestam os preconceitos estéticos, os padrões. Tudo isso é colocado em jogo no mundo inteiro. Os festivais foram muito importantes também para essa expressão, o festival de 67 sobretudo, com Domingo no Parque; Alegria, Alegria; e aí também surge Soy Loco Por Ti América. As guitarras entram como a estética musical e poética desse momento. Nessa época, a Guerra Fria, a corrida armamentista, a corrida pelo espaço, tudo isso desafiou os tropicalistas e acho que responderam de uma forma bem sensível. Por isso, talvez, sejam sempre uma fonte pra gente rever esse caminho e, em uma hora como essa em que há uma onda conservadora, para tomarmos novas iniciativas e mexer com os caretas.