Terreiros e quilombos em Cachoeira são alvos de danos ambientais por conflitos de terra

Defensoria Pública vai promover uma Audiência Pública sobre estes conflitos fundiários

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  • Da Redação

Publicado em 25 de agosto de 2021 às 09:18

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Divulgação/Defensoria Pública

São 285 anos de história, 105 anos de escritura do terreno, 7 anos de reconhecimento como Patrimônio Cultural Imaterial da Bahia e o pedido é um só: o direito de continuar o que vem sendo feito desde 1736 – o culto aos ancestrais. “Isso começou em 2017. Eles, que se dizem funcionários de uma empresa de celulose, somem por um tempo e reaparecem. No último dia 8, vieram novamente e destruíram os assentamentos dos orixás, cortaram as cercas e retiraram os bambus sem a nossa autorização e sem licença ambiental para isso. Uma verdadeira agressão ao nosso solo tão sagrado”. O rastro de destruição mostrado pelo pai de santo Antônio dos Santos da Silva, o Pai Duda, comprova o quanto a área do terreiro Icimimó Aganjú Didê, em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, vem sendo atingida nos últimos anos após sucessivas ações de uma empresa que afirma ser a proprietária das terras, apesar de o terreiro ter a escritura.

Assim que a repercussão sobre os estragos causados por esta mais recente destruição ao terreiro chegou à Ouvidoria Cidadã da Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE/BA), o órgão, que faz a ponte de diálogo entre a Instituição e a sociedade civil, começou a articular uma atuação interinstitucional para solucionar o caso e organizou uma visita para conhecer, de perto, a realidade deste e de outros terreiros e também das comunidades quilombolas de Cachoeira que, por sua vez, também sofrem com a ação de fazendeiros que se dizem donos das terras.

A ida à histórica cidade de Cachoeira representou o início da atuação conjunta entre a Defensoria Pública da Bahia, a Defensoria Pública da União – DPU, a Secretaria Estadual de Promoção da Igualdade Racial – Sepromi, a Prefeitura de Cachoeira e a Secretaria Municipal de Reparação e Igualdade Racial. “Não tem como intervir sem conhecer, pois o ver de perto abrem os horizontes. Eu acredito no trabalho em rede e é por isso que estamos aqui – juntos e somando nossas forças para resolver esta questão que aflige nosso povo e nossa gente”, resumiu a ouvidora-geral da DPE/BA, Sirlene Assis.

A visita à cidade começou com uma reunião, logo no início da manhã, com a prefeita Eliana Gonzaga. “Cachoeira precisa desse olhar, pois o que está acontecendo aqui é uma violência religiosa. A tradição precisa ser mantida, a força das religiões de matriz africana precisa ser respeitada e reconhecida. Estamos falando de terra e, com certeza, essa semente que estamos plantando hoje vai dar muitos frutos”, ressaltou a prefeita.

A reunião, além da equipe da Ouvidoria, de defensores estaduais e da União, de representantes da Sepromi e de secretários e assessores municipais, contou também com a participação de quem vive na pele esta situação: a presidente da Associação de Mulheres do Quilombo Tabuleiro da Vitória e adjacências, Maria das Graças Silva de Brito, mais conhecida como Maria de Totó.

“São os direitos violados que me trazem aqui. Temos nossa história antes mesmo deles chegarem, mas, a todo instante, ouvimos que as terras foram compradas e que nós é que somos os invasores. Dependemos da terra para trabalhar e sobreviver. É de lá que se planta, é de lá que se colhe, é de lá que garantimos a nossa vida. Vamos dormir sem saber se estaremos vivos ao amanhecer. Precisamos desta força de vocês, é ela quem vai nos socorrer”, suplicou a líder quilombola.

“O bambu chegando e engolindo a matéria-prima do candomblé, que é a folha”

Na segunda parte da visita, chegou a vez de subir as ladeiras íngremes da zona rural de ‘Quebra-Bunda’ e chegar ao povoado de Terra Vermelha para ver, de perto, a situação devastadora que atingiu o Icimimó. Antes, uma parada no terreiro Loba’Nekun para ouvir a Mãe Lúcia e sua voz da experiência. “Os donos da casa de axé são os voduns e os babás”, sentenciou a ialorixá.

Na chegada à área em que fica o Icimimó, que é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN e registrado pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC), os bambus cortados e espalhados pelo terreno fizeram a equipe ter a dimensão do rastro de destruição relatado por Pai Duda no início desta reportagem: indícios de queimadas, desmatamento, assentamentos dos orixás destruídos e cercas derrubadas.

“Tudo começou com o plantio de bambu. E bambu é assim, você planta um e ele brota e se espalha com muita facilidade. Com o tempo, vi a nascente secando, o bambu chegando e engolindo a matéria-prima do candomblé, que é a folha”, acrescentou o pai de santo, enquanto mostrava toda a área destruída.

Diante de todos os relatos e tudo que viu, a Defensoria já começou a planejar como será a atuação no caso. “Antes mesmo da instalação definitiva da unidade defensorial aqui em Cachoeira, pretendemos iniciar a defesa dos direitos dos povos de terreiros e comunidades quilombolas, combatendo a discriminação religiosa e os danos ambientais. Para isso, vamos utilizar todos os instrumentos disponíveis para buscar uma solução”, adiantou a coordenadora da 6ª Regional da DPE/BA, Carina Góes.

No final da visita, que incluiu também a ida ao quilombo Tabuleiro da Vitória no dia seguinte, a Ouvidoria Cidadã da Defensoria anunciou que vai promover uma Audiência Pública sobre estes conflitos fundiários que envolvem, de um lado, os terreiros e territórios quilombolas e, do outro lado, empresas e fazendeiros da região. “Diante de tudo que vimos aqui, temos elementos mais que suficientes para realizar uma Audiência Pública sobre este tema tão caro para os povos dos terreiros e das comunidades quilombolas de Cachoeira”, garantiu a ouvidora-geral.