Tomando umas e sambando: o Bonfim de quem usa a fé como desculpa pra comer água

No lado B do cortejo, encontramos até infiéis e ateus que são devotos da bagaceira

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  • Gabriel Moura

Publicado em 17 de janeiro de 2020 às 01:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Arisson Marinho/CORREIO

No seleto rol dos grandes marcos da baianidade, ao lado do pãozinho delícia em aniversário de criança, está a placa anunciando 3 piriguetes por 5. Presente em qualquer aglomeração popular, a mensagem que anuncia a chegada da gelada “no precinho” soava como salvação pr’aqueles que foram à Lavagem do Bonfim, nesta quinta-feira (16), na intenção da bagaceira.

Por conta do horário adiantado, as primeiras latinhas já começavam a ser abertas às 7h da madrugada, ainda no Comércio. Mas calma, porque quem se aventurou a comer água no horário em que se toma café estava preparado para a missão.

É o caso do motorista de aplicativo Tarcísio Rocha Almeida, 30 anos, que já é calejado na Lavagem e, anualmente, repete o ritual para evitar qualquer contratempo na missão de ir bebendo até a Colina Sagrada.

“Rapaz, deu 6 da manhã e já bati aquela feijoada pra dar ‘sustança’. Aí já cheguei aqui sete horas e comecei a me ‘hidratar’. Num sol quente desse, não tem condições de fazer esse percurso de boca seca. É andar os 8k com a fé no peito e a cerveja na mão”, conta ele que há 13 anos, faça chuva ou faça sol, adere ao gela guela da Lavagem. O motorista de app Tarcísio Rocha Almeida abriu os trabalhos cedo (Foto: Gabriel Moura/CORREIO) O “abastecimento” aos pés do Elevador Lacerda é apenas um aperitivo. Durante todo o percurso, opções não faltavam para quem queria ficar igual às escadarias da basílica: em águas. Com quase um isopor por metro quadrado, o copo jamais ficava vazio.

Era igualmente moleza botar pra fora a energia e animação adquiridas através do “isotônico de cevada”.

Cerva e som Os adeptos de um rolé mais cultural ‘colavam’ nas fanfarras que tocavam samba. Quem queria ficar agarradinho com mozão também podia se posicionar ao lado de algum bar que tocava aquela sofrência.

Já o estudante Jota Barreto não quis arriscar e levou a sua caixa de som para criar o seu paredão.“Pivete, eu cheguei aqui cedo e participei da corrida até o Bonfim. Fui o caminho todo rezando e pedindo proteção para a cachaça que eu vou beber. Depois que cheguei lá, começou a hora do profano e vou voltar comendo água até a (igreja da) Conceição da Praia”, afirma ele, que, em seguida, se declara para a sua loira favorita. “Para mim, a cerveja é 90% tesão, 5% amor e 5% cevada. Tô aqui do lado da minha esposa e mesmo assim tô com vontade de pegar esse homem maravilhoso (apontando para o amigo)”, diz ele que, apesar de não ter considerado o álcool em seu cálculo, era provavelmente este ingrediente “esquecido” que motivava tamanha demasia em suas declarações. Jota (de chapéu, sem camisa e com tatuagem na barriga) era o mais empolgado (Vídeo: Gabriel Moura) Democrático A Lavagem abarcava pessoas com as mais variadas motivações para estar lá. Desde os fiéis que se emocionavam ao ver a imagem do santo, aos infiéis que não queriam ser vistos. Era o caso de D.C.S, que deu um “zig” na patroa para “extravasar” durante a celeuma. “Posso dizer meu nome não, senão a ‘federal’ me descobre”, disse ele após o repórter perguntar sua graça. Antes disso, ele revelou as suas intenções. “A gente passa 364 dias por ano dando amor, atenção e carinho. Durante um eu mereço me libertar um pouco, não é?” Deus é quem sabe.Além dos infiéis no âmbito carnal, havia também quem se convertia em devoto durante a caminhada. “Eu sou ateia, mas acabei de descobrir a minha vocação religiosa. Eu sou fiel à baixaria”, doutrinou a estudante Patrícia Lemos, 21, já no fim do percurso, quando a cerveja deixava de ser um estimulante e se transformava em anestesia para quem não aguentava mais paletar.

Olha a ‘água’ Os vendedores tinham uma das missões mais difíceis: a de conseguir trabalhar e permanecer na linha enquanto observava a multidão tomando umas e sambando. Mas João da Silva, 34, que anunciava a cerveja que vendia como água (de comer) não aguentou e, vez ou outra, bebiscava uma gelada.

“Debaixo de um sol desses não tem santo que suporte. E não se pode esquecer que o que hidrata de verdade é a cerveja. Ela inclusive melhora a minha performance como vendedor”, diz ele que, na verdade, é carpinteiro mas está há dois anos desempregado. Enquanto não encontra um novo serviço formal, sustenta a família como ambulante.

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Outra vendedora, Jéssica Santana, 28, se aproveita do fato de ser a dona da cerveja para “dividir” a mercadoria com os clientes. “Enquanto ninguém vem comprar, eu vou garantindo que não vai sobrar estoque quando eu voltar pra casa. Esse trabalho é maravilhoso. Em qual outro eu conseguiria beber e ganhar dinheiro ao mesmo tempo?”, comemora.

Uma mão no copo e outra no juízo Apesar do clima de curtição, havia quem alertasse os mais empolgados para evitar os excessos. Na frente das Obras Sociais Irmã Dulce, por exemplo, voluntárias trocavam latinhas de cerveja vazias por garrafas de água. E assim muitas almas foram salvas ou, pelo menos, reidratadas.

*Com orientação do Chefe de Reportagem Jorge Gauthier