Tribunal Marítimo prevê julgamento da Cavalo Marinho I ainda este ano

Sobreviventes e parentes que perderam familiares desabafam dois anos após acidente

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  • Bruno Wendel

Publicado em 23 de agosto de 2019 às 19:49

- Atualizado há um ano

. Crédito: Betto JR/Arquivo CORREIO

Só depende da decisão do juiz Nelson Cavalcante e Silva Filho para que o processo que tramita no Tribunal Marítimo, que apura o acidente envolvendo a embarcação Cavalo Marinho I, seja julgado até o final deste ano. Recentemente foi encerrada a fase das alegações finais, quando foram ouvidas todas as partes envolvidas na maior tragédia da Baía de Todos-os-Santos. Há dois anos, no dia 24 de agosto de 2017, a embarcação, que levava 116 passageiros, afundou pouco depois de deixar o terminal marítimo de Mar Grande e deixou 19 mortos.

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O CORREIO procurou o Tribunal Marítimo para entender como funcionará o processo a partir de agora. Por meio de nota, foi informado que à época da tragédia a Capitania dos Portos de Salvador instaurou um Inquérito Administrativo sobre Acidente e Fato da Navegação (IAFN) para apurar a ocorrência com a maior celeridade possível. “Recentemente foi encerrada a fase de ‘Alegações Finais’ e, em razão da fase avançada de tramitação em que se encontra o processo, é possível que o julgamento seja realizado ainda no corrente ano”, diz a nota.

Ou seja, agora, o juiz-relator Nelson Cavalcante e Silva Filho analisará todas as peças do processo – documentos técnicos (laudos) e depoimentos – para que possa fazer um relatório e dar o seu parecer. A partir daí, será marcada a data do julgamento, que acontecerá na sede do tribunal, no Rio de Janeiro, e será realizado por sete especialistas, incluindo o juiz-relator.

Essas sete pessoas formarão um colegiado para analisar os chamados "fatores complexos de navegabilidade da embarcação". Ou seja, serão observados, por exemplo, se o comandante fez a manobra certa, se os cálculos para construção da embarcação estão corretos, se houve alguma falha em algum equipamento, se houve desgaste na embarcação. O resultado da decisão pode ser usado como argumento em futuros processos indenizatórios contra os réus.

No próximo dia 5 de setembro, no processo que apura as mortes, o juiz criminal da Comarca do Tribunal de Justiça em Itaparica deve ouvir as testemunhas finais de defesa. O Ministério Público do Estado (MP-BA) denunciou por homicídio culposo e lesão corporal culposa, no dia 30 de agosto de 2018, o proprietário da empresa CL Transporte Marítimo, o empresário Lívio Garcia Galvão Júnior, e o comandante da Cavalo Marinho I, Osvaldo Coelho Barreto.

Representante de Lívio no processo civil, o advogado da CL Transporte, Manoel Pinto, disse que ele não se pronunciará sobre o assunto. Já na esfera criminal, o empresário é representado pelo advogado e criminalista Vivaldo Amaral, que informou não ter autorização do cliente para dar declarações sobre o caso. Corpos foram colocados na areia da praia (Foto: Marina Silva/CORREIO) Julgamento Os trâmites do Tribunal Marítimo são semelhantes aos do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJ-BA). Ou seja, após a instrução, produção de provas e a perícia, o processo vai para o colegiado de sete juízes com especialidades diferentes. Os réus do processo são Osvaldo, Lívio e o engenheiro naval Henrique José Caribé Ribeiro.

Essa corte é formada por um especialista em direito marítimo; um especialista em direito internacional; um capitão de longo curso da Marinha Mercante; um capitão-de-Mar- e-Guerra, um capitão-de-Mar-e-Guerra do Corpo da Armada, ambos oficiais (engenheiros) da Marinha do Brasil; um juiz especialista em armação de navio e navegação comercial; e um juiz presidente almirante da Marinha do Brasil. Destes, o almirante só vota em caso de empate. 

A multidisciplinaridade do colegiado é para serem analisados todos os fatores complexos de navegabilidade da embarcação. 

Caso seja comprovada a culpabilidade dos réus, serão aplicadas as penas previstas pelo tribunal: suspensão, cassação de certificado, aplicação de multa – na esfera administrativa.

“Li o inquérito da Marinha e está muito completo, detalhado. Acredito que o tribunal pode seguir a conclusão do próprio inquérito, pela culpabilidade da empresa e dos demais indicados. Acredito que esse julgamento será célere porque hoje é maior tragédia humana que está em análise no Tribunal Marítimo”, declarou ao CORREIO o advogado Zilan Costa e Silva, especialista em Direito Marítimo.

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Dor Filho da aposentada Edileusa Reis da Conceição, 53, que morreu na tragédia, o pescador Juraci Reis, 37, quer que o processo traga respostas do que aconteceu naquele 24 de agosto de 2017. Apesar disso, ele sabe que nada diminuirá a dor que carrega desde aquele dia.“Há dias vivo nessa angústia. É uma dor muito grande e que aumenta quando chegamos perto da data, do dia 24. Hoje eu não consegui comer nada, não consegui fazer nada. Sinto as piores sensações do mundo. Uma dor que não diminui, só cresce", lamenta.Uma das maiores dores que carrega é justamente a impunidade. Mesmo sabendo que isso não diminuirá a saudade, nem trará sua mãe de volta, Juraci quer que os responsáveis sejam punidos.

"Fico perplexo pela demora na punição dos culpados. Foram 19 pessoas mortas e amanhã já faz dois anos. Os responsáveis estão vivendo suas vidas como se nada estivesse acontecido. Há uma falta de interesse na resolução do problema”, reclamou o pescador.

Os traumas também acompanham dia e noite da vida de Michele Sila Amorim, 34, uma das sobreviventes da tragédia. Ela conta que frequentemente relembra a cena da embarcação afundando e revive aquele dia na sua memória. É como um filme passando na cabeça, há dois anos. 

“Foi o pior dia de minha vida. É uma coisa que vem à memória toda vez quando durmo. O pior de tudo é que ficou marcado também pela injustiça, pois até agora, ninguém foi punido, nada. A CL continua rodando, podendo acontecer uma tragédia ainda pior”, desabafou ela.

No dia do acidente, Michele estava a caminho do trabalho, uma empresa de home care em Salvador. Apesar do desespero, ela, que não sabe nadar, lembra com detalhes de tudo o que aconteceu. “Eu estava sentada no segundo lugar do primeiro banco da frente. Uns 10 minutos depois que a embarcação passou do farol escutei o pessoal gritando: ‘vai virar’. Logo em seguida, caí no mar, comecei a beber água, bati o braço para subir e fiquei entre uma lona e uma madeira. Então, consegui chegar ao bote da embarcação. Comigo eram 20 pessoas e criança de 4 anos no bote”, lembrou Michele, emocionada.Depois da tragédia, a situação das lanchas segue precária para quem navega na Baía de Todos-os-Santos. A declaração é de Lenise Ferreira de Andrade, integrante da comissão de vítimas e usuários do sistema.

“Nada mudou. Se entrar hoje, vai encontrar do mesmo jeito, com os coletes fora do alcance dos usuários, por exemplo. Tenho receio que essa decisão do juiz mostre que o pessoal não deveria ter viajado por causa do mau tempo ou reverter a situação. Se houvesse uma fiscalização rigorosa, não haveria a tragédia”, bradou.

Ela vem denunciando a precariedade do sistema de navegação no trecho desde 2006. “Sou usuária de marca-passo há anos, infartei dentro do ferry uma vez e não recebi socorro. A minha sorte é que eu havia tomado um remédio que me fez aguentar até chegar em terra firme. Chegando, eu recebi atendimento da ambulância da VitalMed, que eu mesma acionei", aponta. A lancha Cavalo Marinho I, inclusive, foi notificada pela Capitania dos Portos um ano antes da tragédia.

O CORREIO entrou em contato com a Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de Energia, Transportes e Comunicações da Bahia (Agerba), que regula, concede e fiscaliza os serviços de travessias do transporte intermunicipal hidroviário de passageiros.

Por meio de nota, o órgão informou que "acompanha toda a documentação, como licenças e comprovantes de vistorias exigidos pela Marinha, para que as embarcações possam compor a frota do sistema hidroviário". Em relação à embarcação Cavalo Marinho I, disse que "após apuração, nenhuma sanção administrativa foi aplicada. Junto à Agerba a documentação da empresa estava em dia, ficando os itens a fiscalização das embarcações e itens de segurança para a navegação sob exclusiva competência da autoridade marítima".

A Agerba também é o responsável por estabelecer tarifas, cumprimento de horários das embarcações, limpeza, conforto nos barcos e serviços de atendimento prestados ao usuário.   Tragédia completa dois anos neste sábado (24) (Foto: Arquivo CORREIO) Indenizações A sentença do Tribunal Marítimo servirá de subsídio para as decisões do poder judiciário, como as ações cíveis movidas em decorrência do acidente - ou seja, as indenizações. “Com o acórdão, que é uma sentença coletiva, os processos judiciais não vão discutir as culpas, e sim os valores das indenizações”, explicou Zilan, o especialista em Direito Marítimo.

Esse tipo de acordo coletivo acontece para acelerar o processo. Isso porque, só a Defensoria Pública da União (DPU), por exemplo, ingressou com pelo menos 20 ações indenizatórias no Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Todas aguardam um desfecho.

A informação foi confirmada pela própria DPU, que declarou por meio de nota que “as ações propostas na Justiça Federal estão suspensas, aguardando a resolução dos processos instaurados no Tribunal Marítimo”.

Já a Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE-BA) disse, por meio de nota, que “a decisão do Tribunal Marítimo tem poder de influência sobre a decisão judicial, porém não é determinante para o resultado dos julgamentos das ações judiciais”.

No total, o órgão ajuizou 46 ações, sendo 41 em Itaparica e 5 em Salvador. Das ações de Itaparica, atualmente há 36 sob responsabilidade da DPE-BA, enquanto as outras cinco estão com advogados particulares. Nestes processos, a defensoria solicitou danos materiais (ou seja, o que as vítimas perderam no acidente, o que inclui dinheiro, celular, entre outros) e danos morais para as vítimas sobreviventes, com valor base de R$ 100 mil de indenização. Além disso, pede um valor maior para familiares de vítimas fatais, com base em decisões proferidas por Tribunais Superiores.

Em Itaparica, a DPE-BA conseguiu a indisponibilidade dos bens da CL Transporte Marítimo. Ou seja, a empresa está impedida de vender ou se desfazer das suas embarcações. Além disso, obteve resposta positiva para o pedido de bloqueio de parte da renda da empresa, para garantir o pagamento das indenizações ao final do processo.

Apesar disso, a empresa não está depositando os valores determinados pelo juiz para as vítimas e, por isto, a defensoria solicitou novamente a comprovação dos depósitos - o que também depende da decisão do juiz.

Ao CORREIO, o órgão informou ainda que propôs a conciliação com a CL, o que não aconteceu porque a empresa alegou que os valores pedidos são considerados altos. Embora tenha feito esta alegação, não foi feita contestação ou contraproposta por parte da instituição. A CL afirmou ainda que o acidente ocorreu por causa de fatores externos e pediu ao TJ-BA a suspensão das ações até a decisão final do Tribunal Marítimo.

Diante das declarações, a DPE-BA apresentou a réplica, indicando que os laudos - tanto do inquérito policial quanto do Tribunal Marítimo - atestam falhas da empresa em relação à falta de lastro na embarcação, bem como a imprudência do condutor que levou a lancha para navegar em condições adversas. Por isso, pediu ao TJ-BA para não aceitar a suspensão dos processos.

A maioria dos processos movidos aguarda a audiência de instrução, caso o juiz não aceite o pedido de suspensão destes até a conclusão do processo no Tribunal Marítimo.

O CORREIO também buscou o Ministério Público Estadual (MPE-BA). O órgão informou, por meio de nota, que em razão do segundo ano do acidente, que ocasionou prejuízos materiais e morais a outros usuários do serviço, "todas as medidas cabíveis foram adotadas pela Instituição em relação ao trágico evento".

Acrescentou ainda que "após as devidas apurações relacionadas ao fato, ações civis públicas e denúncia criminal foram apresentadas, respectivamente, pelos promotores de Justiça Joseane Suzart e Ubirajara Fadigas à Justiça" e que "diversas iniciativas foram adotadas pelo Ministério Público em razão da precariedade, inadequação, insegurança e altos valores do serviço de transporte hidroviário de passageiros realizado entre Mar Grande e Salvador desde 2006".

Ainda segundo o MPE, após a tragédia, Joseane Suzart fez um pedido de tutela cautelar de urgência para suspensão do serviço, no dia 29 de agosto de 2017, cinco dias após o acidente. Além disso, ajuizou uma nova ação civil pública no dia 4 de outubro do mesmo ano, onde solicitou a cassação do serviço prestado pelas empresas que realizam a travessia Salvador-Mar Grande. A informação foi confirmada pelo TJ-BA.

Ainda sobre o processo, o MPE informou que, no âmbito criminal, a 2ª Promotoria de Justiça de Itaparica, cuja titularidade é do promotor de Justiça Ubirajara Fadigas, recebeu a primeira versão do inquérito policial no dia 11 de maio de 2018 e o devolveu à Delegacia de Polícia de Vera Cruz com pedido de novas diligências em 21 de maio de 2018. O inquérito policial foi finalizado e entregue ao MP em 23 de agosto do ano passado.

Uma semana depois, o promotor de Justiça denunciou o proprietário da empresa CL Transporte Marítimo, Lívio Garcia Galvão Júnior, e o comandante da embarcação Cavalo Marinho I, Osvaldo Coelho Barreto, como responsáveis pelas 19 mortes no acidente marítimo.