Um ano de pandemia provocou montanha-russa de emoções nos baianos

Da piada ao apocalipse sanitário: uma retrospectiva da covid-19 na Bahia

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  • Gabriel Moura

Publicado em 14 de março de 2021 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Marina Silva/ CORREIO

No final de janeiro de 2020 surgiu a notícia de que um novo vírus teria surgido na China após um homem comer uma espécie de ensopado de morcego. Ao publicar esta matéria, no dia 23 daquele mês, o CORREIO substituiu o termo para “moqueca de morcego”, numa tentativa de baianizá-lo. Pouco tempo depois, quando uma moradora de Feira de Santana voltou de sua viagem à Itália, o vírus, de fato, tornou-se baiano.

A confirmação do primeiro caso na Bahia completou um ano no último sábado (6) e o isolamento social começou na semana seguinte. De lá pra cá, foram cerca de 700 mil infectados pelo vírus no estado, com mais de 12 mil mortes - além de todas as restrições.

Já a tal moqueca foi a primeira citação ao coronavírus feita nas páginas ou no site do jornal. Naquela época, o nome covid-19 nem existia e o assunto ainda era tratado como meme nas redes sociais. O vírus virou “Coronga”, e, quando citado, quase sempre era acompanhado de um vídeo com a cantora Cardi B dizendo, aos berros, que o negócio estava ficando sério.

Na Bahia a preocupação era outra. O vírus tratou de se espalhar pelo mundo justamente no final de janeiro / início de fevereiro -ou seja: época de pré-Carnaval. O medo era que a festa fosse cancelada.

O Carnaval rolou. Não teve música rebatizando a doença, como é tradição, mas no meio da avenida eram muitas as citações ao vírus. “Me chama de corona e me pega” e “sua beleza é mais contagiante que o coronavírus” foram cantadas que viralizaram em meio aos mais libertinos. 

Já o ator Genário Neto, de 26 anos, juntou-se com quatro amigos e se inspirou no corona para sair vestido de “Madonna Vírus” pela Barra-Ondina.“Quando vimos os casos na China, pensamos qual vírus seria bom para este lado do mundo. Aí surgiu o da Madonna, pois caso alguém fosse atingido por ele, seria mais alegre e sem preconceito, igual à musa”, explicou o artista, que faz parte do canal Rédea Curta. Coronavírus ainda era algo distante no Carnaval de 2020 e brincadeiras eram normais (Betto Jr./ Arquivo CORREIO) As piadas que hoje parecem absurdas, naquela época faziam sentido. Não só o povo em geral, mas também autoridades políticas e de saúde não sabiam muito bem o tamanho que esse monstro microscópico poderia atingir. 

“Ninguém esperava que ele infectasse tanta gente. Se você for ver, a taxa de mortalidade dele é entre 1 e 2%, algo que a gente já previa nesta época. Acontece que, como um número absurdo de pessoas se infectaram, o número de mortes foi extremamente alto. Afinal, 1% de 25 milhões é 250 mil”, analisa o infectologista Robson Reis.

O especialista lembra que não foi só esse entendimento do vírus que mudou. No início, a recomendação era que não se usasse máscara, que o paciente deveria ir para o hospital apenas se fosse um caso grave - além de alguns medicamentos, que foram usados no início da pandemia, mas depois provaram-se ineficientes.

Fique em casa Ainda com todo mundo meio perdido, lá pela segunda quinzena de março de 2020 começou a campanha “fique em casa”. A primeira morte só foi confirmada na Bahia no dia 29 daquele mês, quando o estado já somava algumas centenas de casos. Depois, com a revisão dos dados, dois óbitos foram confirmados referentes à data de 28 de março. Naquele momento, o desconhecimento que outrora provocara memes, agora causava medo.“No início a gente tinha medo do desconhecido justamente por ser desconhecido. Não sabíamos quais medidas teríamos que tomar, quanto tempo elas durariam e qual o real perigo daquele vírus do qual pouca gente sabia realmente falar. As primeiras notícias nos assustaram bastante”, explica a psicóloga Jaqueline Anjos, conselheira do Conselho Regional de Psicologia da Bahia.Em meio ao medo e notícias assustadoras que vinham de países como Itália, Espanha e Inglaterra, um novo estilo de vida foi criado. Boa parte das empresas e serviços públicos adotaram o esquema “home-office”, enquanto escolas, cursos e faculdades migraram para as aulas remotas. “Aglomeração” se transformou no maior palavrão da língua portuguesa.

Sem sair para restaurantes, bares e lanchonetes, as pessoas recorreram aos aplicativos de delivery, que cresceram 30% nos meses de março e abril de 2020, conforme pesquisa do Instituto Locomotiva. Os shows deram lugar às lives, festas de aniversário aconteciam pelo “Zoom” e, em ano de Jogos Olímpicos, competições esportivas foram canceladas. Adaptação foi natural e aulas foram transmitidas com a ajuda da tecnologia (Foto: Divulgação) Já na Bahia uma nova forma de comunicação entre os vizinhos ganhou força. Bastava ir para a janela e berrar “eu falei faraó”, que a resposta vinha com um uníssono “ê faraó”. 

Só que o tempo foi passando. O que era para ser algumas semanas de isolamento, virou meses. São João e 2 de Julho foram cancelados. E, ao verem que o número de casos não abaixava e que a porta de saída parecia cada vez mais longe, alguns baianos resolveram botar o pé pra fora de casa novamente.

De volta às ruas Começou aos poucos, indo na casa de parentes e amigos, mas logo os bares ficaram lotados. Veio eleição, com festas principalmente no interior. Réveillon muita gente viajou para aglomerar na Linha Verde, principalmente, enquanto boa parte de quem ficou não fez muita questão de permanecer em casa também.

“Eu fiquei quatro meses trancada em casa e peguei covid-19 mesmo assim. Depois meti o louco. Se eu, em lockdown, me infectei através do delivery, provavelmente, não havia motivo para eu me isolar novamente. Depois de agosto eu viajei, fui pra festa, para bar... voltei a viver normal”, conta a designer Anna Gabriela, de 25 anos. “Não tenho medo de infectar outras pessoas também. Eu moro sozinha e quem está na rua assume o risco, assim como eu”, opina. População dispensou o isolamento e fez farra durante as eleições (Foto: Nara Gentil/CORREIO) O número de festas clandestinas disparou. Desde os paredões em comunidades ao famoso “Réveillon de Neymar”. Essas aglomerações cobraram um preço e agora estamos na tal “segunda onda”. Mas, mesmo com o número de mortes e casos batendo recorde, alguns se recusam a abandonar a liberdade e voltar ao isolamento. Por quê?

Freud explica Ouvido pelo CORREIO, o psicanalista Marcelo Braz trouxe conceitos de alguns pensadores da psicologia para explicar o comportamento das pessoas durante a pandemia. Freud, o mais famoso deles, falava que quando a realidade tornava-se insuportável, podemos rejeitá-la por meio de um mecanismo de defesa chamado “rejeição de uma ideia insuportável”, que exclui a percepção de perigo.“Parte significativa da população decidiu rejeitar a realidade e aderir a uma narrativa delirante. As redes sociais contribuíram decisivamente para isso, com o uso das fake news. Vivemos a emergência de um delírio coletivo em grande escala”, analisa o psicanalista.Há ainda o que Jacques Lacan chamava de passagem ao ato - que é uma resposta corporal onde o sujeito desaparece frente a uma angústia ou um medo. Já Burrhus Frederic Skinner criou o conceito de “habituação”, em que o ser humano aprende a conviver com eventos que poderiam ser insuportáveis aparentemente. 

A presença constante de um estímulo ligado a um evento como uma pandemia pode levar alguém a não o perceber como “perigoso” algo que ele é exposto durante muito tempo. Ou seja: a pessoa vai se acostumando ao perigo e o medo vai perdendo intensidade.

“Se a gente pensar para além do perigo, pensar em estímulos gerados por comportamentos grotescos e absurdos, a nossa capacidade de se espantar também tende a cair na medida em que eles vão se tornando parte do ambiente. Se você encontrar um jegue circulando dentro de um hospital no primeiro dia, você vai se indignar bastante. No dia seguinte, você vai se indignar um pouco menos. No terceiro dia, se você encontrar o jegue dormindo no hall principal do hospital, você vai me dizer: ‘ah, é apenas um jegue dormindo no hospital, a situação já foi muito pior’. Entende? Esse conceito da psicologia comportamental é usado nos manuais de guerra”, detalha Marcelo Braz.