Um dia disfarçado de turista solitário nos pontos mais visitados de Salvador

Lábia e respeito de vendedores prevalecem, mas abordagem intimidadora às vezes acontece: 'molesta, mas não sequestra'

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  • Da Redação

Publicado em 13 de fevereiro de 2022 às 06:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Marina Silva/Jornal CORREIO

Não se trata apenas do aperto de mente. Talvez, muita lábia. Isso, convenhamos, o baiano tem muito. Ou, como diriam os próprios vendedores de colares do Pelourinho, “o baiano molesta, mas não sequestra”. Um jeito curioso de dizer que existe até uma insistência ao tentar vender o produto ou pintar a pele do turista. Contudo, o assédio na abordagem, nunca. Ou quase nunca. 

No final de janeiro, o carioca Kadu Pacheco alegou ter sido coagido a comprar colares que não queria, além de ser pintado sem seu consentimento. O resultado foi R$ 119 gastos, segundo o turista, após “leves extorsões", como publicou no Tik Tok, com mais de 200 mil visualizações. Com tanta polêmica, nada mais justo que saber o lado dos vendedores, mas de um jeito diferente: se disfarçando de turista e sentindo na pele o que Kadu passou. Ou não. 

@kadu_pacheco da série 'coisas que só acontecem comigo' ???? #fyp #viral #paravoce #trend #viagem ♬ som original - Kadu Pacheco

Turista por um dia Uma camisa ‘Flora Floral’ do verão de 2018 atochada na barriga versão 2022, bermuda bege e aquela alpercata franciscana adquirida no natal de 2017 que nunca foi usada. O disfarce quase perfeito para um soteropolitano turistar por um dia no Pelourinho e Farol da Barra. Vestido a caráter, o propósito era ver até onde iria o assédio dos vendedores ambulantes. Na carteira, os mesmos R$ 119 gastos por Kadu.  Só não dava muito para abrir a boca, pois o primeiro “véi” denunciaria o disfarce. Deu para enganar. Fui paulista, carioca, mineiro e meti até um “no, thanks”. 

“Ô gringo, venha cá. Zorra, parece o Brad Pitt”, escutei, com certa vaidade.  “Essa coruja eu dou, esse colar aqui eu vendo”, disse um vendedor, me dando uma corrente de latão com, segundo ele, a coruja da sorte. Ele queria vender outros colares, enquanto amarrava uma fitinha do Bonfim. “Essa aqui também é de graça, mas só um baiano pode amarrar”, disse, enquanto ganhava tempo na abordagem. 

O pedido era para que eu comprasse outro colar por R$ 30, mas o valor foi caindo. E a paciência também. “Tem quanto aí, olha aí pra eu ver. Ajude o maloqueiro a comprar um pão”, disse, sem a mesma simpatia anterior. Deixei de ser o Brad Pitt. No final, morreu nos R$ 2, mas fiquei com a correntinha da coruja e fitinha do Bonfim. Não foram os R$ 94 que Kadu pagou nos colares, mas uma abordagem como esta, de fato, assustou. 

Exceção Contudo, não foi regra, mas exceção. Depois desta abordagem inicial, as coisas ficaram mais leves. Quase. Um pintor de pele não curtiu muito meu ‘no, thanks’.“Você é fake news, turista que não se pinta no Pelourinho é fake. Isso aqui é cultura e tradição”, gritava, mas respeitando minha decisão. No Terreiro de Jesus acontece a maior parte das abordagens. Baianas e capoeiristas oferecem fotos, guias turísticos ofertam auxílio, além dos ambulantes e  pintores de pele. Desta vez, nada de abordagens agressivas, e turistas chegavam a solicitar antes da abordagem. A pintura varia entre R$ 10 e R$ 50.   

“Vem de onde, amigo? Venha, vou fazer o sol da prosperidade. [Pintura] é cultura e tradição, todo mundo pinta aqui. Turista que não pinta é fake news. Gostei de você, faço um pequeno e você deixa uma ajuda, de coração. Aceito pix”, disse o pintor Lucas Ferreira, que já se preparava para pintar meu braço. Quando disse que não queria, ele não insistiu, mas continuou me tratando bem, sempre naquela lábia tipicamente baiana.

“Essas pinturas vieram dos  astecas e indígenas trazidas por Carlinhos Brown, e virou Timbalada. A Timbalada é uma banda que sai todo mundo pintado. As pinturas significam vida, saúde e paz”, disse Lucas. “Gostei de você, vou pintar de graça o sol da prosperidade, do Olodum, que significa paz em iorubá”, completou, fazendo a arte de graça. Não pediu nada em troca. Na base da hospitalidade, guia turístico oferece serviço a 'turista' no Centro Histórico (Foto: Marina Silva/CORREIO) Sobre o Olodum, o nome, de fato, é em iorubá, mas significa "Deus dos Deuses", em alusão ao Deus criador, Olodumaré. Já a história da pintura, segundo o próprio Brown, foi um acaso, após o figurino de um show não ter chegado a tempo. Os músicos resolveram se pintar e acabou virando tradição. Convenhamos que a história contada por Lucas foi bem melhor.   

Estava pintado, com fitinha do Bonfim e um colar de coruja. Até então, gastei R$ 2. E só tinha 40 minutos turistando. Neste meio tempo, alguns ambulantes me abordaram, guias e baianas, até um vovô artista querendo vender sua arte. “Melhor comprar logo que estou indo para Paris, semana que vem, expor meu trabalho”, disse. Todos bem humorados e sem assédio.“Vem cá, coisinho. Não mordo não, vem ver meus colares. Baiano molesta, mas não sequestra”, disse a vendedora Carmem, aos risos. Mais uma vez, respeitou quando disse não. Marcou, já era Outra coisa curiosa: uma vez pintado e com a fitinha do Bonfim, quase ninguém te aborda mais. Precisei, inclusive, tirar a pintura para continuar sendo abordado. 

Enquanto tentava retirar a pintura na sombra da Casa de Jorge Amado, um filho de santo especialista em Bênção de Axé me auxiliou, dando um pouco de sua água de cheiro. Enquanto esfregava o braço, ganhei um banho de arruda, proteção, axé e um pedaço da planta para colocar acima da orelha direita. “Me dê uma ajuda, meu lindo. Qualquer ajuda para um lanche”, disse. Ofereci mais R$ 2, aceito com festa. “Deus te ilumine, meu filho! Precisar de alguma coisa, estou aqui”, se despediu. Uma benção por dois conto? De graça, né? Foram outras quatro abordagens de pintores e três de ambulantes. Nada de assédio. Veja vídeo:

Comum em todo lugar Catarinense, Eloisa foi pega de surpresa com a pintura, perguntou quanto era e permitiu. “Gastei 10 reais, pode pintar sem medo. Em qualquer lugar turístico tem vendedores insistindo para comprarmos seus produtos. Em todo lugar do mundo é assim, não é só aqui, não. Já precisei comprar quatro panos incas no Peru sem querer, até hoje está lá em casa. Vai lá, menino. Vai embora sem se pintar?”, me aconselhou, quando perguntei se valia a pena ser pintado. Ao lado do Elevador Lacerda, vendedor Diego oferece serviço com receptividade e bom papo (Foto: Marina Silva/CORREIO) Diego ofereceu seus serviços artísticos, mas aceitou um não como resposta e ainda bateu um papo, crente que eu era paulista. “Não tenha medo de nós. Queremos vender, ganhar nosso pão. Tem gente que insiste mais, é chato mesmo. Mas aquilo que aconteceu com o turista lá na Barra foi estranho. O cara é blogueiro, achamos que ele deixou levar pelo assédio e depois não soube como sair. Foi chato, manchou nossa imagem com um caso isolado”, avaliou Diego, que ainda deu dicas de segurança para andar na região. 

Cuidados  Delegada da Delegacia de Proteção ao Turista (Deltur), Marita Souza afirma que é preciso atenção sobre o caso ocorrido com Kadu, mas não deve ser encarado como regra.“Não podemos criminalizar a pintura timbaleira pelo ocorrido com o turista. Eles vendem seus serviços e o turista gosta também. O que incomoda é a insistência, claro, mas esta relação entre vendedor e turista acontece em qualquer lugar turístico”, aponta a delegada. “Aqui temos uma relação muito próxima dos ambulantes, conversamos com os turistas, raramente temos algum tipo de problema como o que ocorreu na Barra. Existe um incômodo pela insistência e procuramos sempre conversar sobre isso com eles. Reforçamos que não é não. Está tudo muito tranquilo”, avalia.  

Por meio de nota, a Secretaria Municipal de Ordem Pública (Semop) garante dar capacitação aos vendedores, principalmente sobre os cuidados para evitar abordagens intimidadoras. “A Semop esclarece que a administração municipal tem trabalhado para oferecer capacitação aos ambulantes, no sentido de promover mais qualidade nos serviços prestados pelos trabalhadores a moradores e visitantes e, consequentemente, retorno positivo para estes profissionais”.

Após quase uma hora turistando no Centro Histórico e nenhum problema com ambulantes, o susto.  “Eu te conheço da TV! Do Correio da Bahia”, gritou uma baiana. Descoberto, o jeito foi ir para o Farol da Barra, justamente onde Kadu contou ter sido intimidado. Mais uma vez, nada de assédio. Muito pelo contrário. Um ambulante tentou vender um colar, mas acabou me dando um do Olodum, de graça.  Saldo final do dia turistando. valor gasto: R$ 4 (Foto: Moysés Suzart/CORREIO) O saldo final de um dia bancando o turista: R$ 4 por três fitinhas do Bonfim, uma corrente da coruja, colar do Olodum, pintura timbaleira (ou dos astecas?) e  um banho de arruda para proteção. “hahahahaha, eu dei muito azar!”, resumiu Kadu Pacheco, ao contarmos nossa experiência como turista disfarçado, via WhatsApp. É, Kadu. Da próxima vez me procura para mais dicas. Volte sempre!

Confira dicas para turistas e ambulantes (Fonte: Deltur)TURISTAS - Evite andar sozinho(a) em ruas com pouco fluxo. Pergunte o preço de tudo antes do serviço. Seja firme, caso não queira. Se o assédio persistir e for intimidado, procure as autoridades imediatamente.    AMBULANTES - Não é não. Nada de pintar ou colocar colares sem consentimento. Isso é assédio. Ganhe o turista na lábia, mas deixe bem claro o preço antes. O convencimento pode ser feito de forma bem humorada, com gentileza. Nada de agressividade. Lembre-se: turista mal tratado não volta.