Uma luta sem fim: entenda a reincidência do câncer, enfrentada por Ana Maria Braga

A chamada recidiva pode acontecer com pacientes de qualquer idade; conheça as histórias

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  • Thais Borges

Publicado em 1 de fevereiro de 2020 às 05:43

- Atualizado há um ano

. Crédito: Tainara, 14 anos, faz tratamento no Hospital Martagão Gesteira (Foto: Betto Jr./CORREIO)

Dona Marizete Neves estava prestes a se aposentar. Depois de trabalhar por mais de duas décadas como professora na rede municipal, esperava ter o merecido descanso. Mas, de repente, veio um sangramento. Era esporádico: dia sim, outro não. Procurou um clínico geral achando que tinha hemorroidas, mas escutou que buscasse um proctologista. 

Alguns exames mais tarde, veio o diagnóstico: câncer no reto. Era 2008, mas, após os tratamentos, ficou bem. Em 2015, veio a primeira recaída – outro tumor maligno na região. No ano passado, mais uma vez: o câncer retal tinha retornado. Era a reincidência do tumor maligno – ou, em termos médicos, a chamada recidiva do câncer. 

Nos últimos dias, a recorrência da doença em um mesmo paciente teve destaque no noticiário nacional: a apresentadora Ana Maria Braga, do Mais Você (TV Bahia/Globo), revelou, durante o programa, que tinha sido diagnosticada com câncer pela quinta vez. Agora, ela enfrenta um adenocarcinoma – um tipo de neoplasia maligna – no pulmão. É a terceira vez que Ana Maria recebe o diagnóstico de câncer no pulmão; a primeira foi em 2015. “Eu tive dois pequenos cânceres de pulmão no passado. Um foi operado e outro tratado com radiocirurgia. Infelizmente, fui diagnosticada com outro câncer de pulmão. É um adenocarcinoma. É mais agressivo e não é passível de cirurgia ou radioterapia”, contou a apresentadora, na segunda-feira (27).Mas a verdade é que a recidiva do câncer não escolhe um perfil de paciente, nem um ou outro órgão. Ana Maria teve no pulmão, dona Marizete no reto. Dona Suzana teve leucemia, enquanto Tainara, com 14 anos e um câncer infantojuvenil, enfrenta um linfoma de Hodgkin. 

Ao contrário da maioria das células saudáveis (à exceção das sanguíneas), as células cancerígenas não ficam fixas em um único tecido. É como se elas produzissem substâncias capazes de se movimentar e se soltar do tecido original e buscar outro tecido para nascer. 

Alguns tumores, como os da mama, têm mais facilidade para se fixar em outros locais, como o pulmão ou o cérebro. Assim, essas células, caso consigam sair do órgão original, podem criar um novo “assentamento” de células que pode levar anos para surgir. “É como um tumor de mama que você retira na cirurgia e, anos depois, o tumor volta. Ele só volta porque, antes do tratamento, aquelas células acharam outros órgãos, se fixaram ali e foram brigando com o sistema imunológico para continuar ali”, explica o urologista Breno Dauster, especialista em oncologia urológica, professor do curso de Medicina do Centro Universitário UniFTC e coordenador de Urologia do Hospital Aristides Maltez. Ou seja: essas células tinham sido liberadas pelo tumor inicial e estavam espalhadas pelo organismo, mas permaneciam inativas. Em um determinado momento, voltaram a crescer e a manifestar sintomas. 

“De forma geral, os sinais e sintomas das recidiva podem ser semelhantes à manifestação da doença inicialmente ou ter sintomas diferentes a depender do local onde for acometido”, diz a hematologista Marianna Vieira Lima, da clínica AMO. 

É possível, porém, identificar parâmetros para observar se um câncer tem mais ou menos chance de voltar. É o caso da avaliação da própria agressividade do tumor, que inclui entender a velocidade de crescimento da doença. Quanto mais agressivo for o câncer, mais rápido as células tumorosas vão se replicar. 

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Psicológico No caso de dona Marizete, a recidiva veio com um choque. No primeiro diagnóstico, foi como se perdesse o chão. Depois, só vinha um outro pensamento. “De novo?’, eu pensava. Meu médico dizia para não me preocupar, que vai dar tudo certo. Mas tem dias que eu acordo e estou ótima. Agora mesmo, estou sem dor. Mas tem dias que estou mal”, conta.  Dona Marizete enfrenta o câncer no reto pela terceira vez (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Hoje, ela trata o terceiro câncer com quimioterapia. A radioterapia, que foi uma opção nas outras ocasiões, agora já não era possível. O médico explicou que a região talvez não resistisse a mais um tratamento do tipo.“A gente coloca os médicos na parede e não consegue espremer nada. Não sei se eles não querem dizer para não deixar a gente mais nervosa, porque não existe uma resposta convincente”, diz Marizete. Para a bancária aposentada Suzana Marly Carvalho, 67, a notícia de que estava com leucemia também caiu como uma bomba. Nunca tinha tido nenhum problema de saúde grave até aquele junho de 2013. Planejava passar o aniversário, no dia 17 de junho, em Aracaju (SE). Por isso, antecipou o São João da família em uma casa de praia em Guarajuba, em Camaçari. 

No dia seguinte, ao voltar para casa, percebeu a moleza. Achou que fosse uma virose. Mas, no terceiro dia de sintomas, decidiu ir a uma emergência hospitalar. Lá, ao fazer os exames, os médicos perceberam uma alteração no sangue e que ela estava com pneumonia. “Chamaram a oncologia e os exames acusaram que eu estava com leucemia linfoide aguda. Era o dia 14 de junho e foi um desespero total. Fiquei sem chão. No dia do meu aniversário, as pessoas me ligavam para me dar parabéns e eu contava que tinha leucemia”, lembra. Da emergência, ela não saiu mais do hospital. Ficou internada para dar início à quimioterapia. Só que, ao longo de um ano e meio, Suzana teve três recidivas.

"Era coisa de um mês (boa). Não levava um mês e voltava. Tudo muito rápido porque essa leucemia é muito agressiva. Teve momentos em que o médico chamou minha família e disse q talvez eu não escapasse. O tratamento é terrível, é muito complicado”, diz.  Ela fez um transplante em dezembro de 2014. De lá para cá, a doença segue em remissão. 

Mais frequentes O que acontece é que um mesmo órgão pode ter diferentes tipos de tumor. E, de acordo com o urologista Breno Dauster, um tipo pode ser mais agressivo que outro. “É importante entender o tipo de tumor que o paciente tem e o risco da recidiva. Isso serve para acompanhar a intensidade”, explica. 

No Brasil, não há dados oficiais sobre reincidência de câncer, de acordo com o Instituto Nacional de Câncer (Inca). Os números disponibilizados pelo Ministério da Saúde contabilizam os primeiros casos: em 2018, inclusive, foram mais de 580 mil casos novos - número semelhante a 2019. As estimativas para 2020 serão divulgadas na terça-feira (4), Dia Mundial de Combate ao Câncer.

A maioria das estatísticas disponíveis sobre recidivas vem de pesquisas conduzidas nos Estados Unidos e na Europa. De fato, esses dados não devem ser totalmente transpostos à realidade do Brasil: cada país tem condições sociais e ambientais diferentes. Mas são desses estudos os resultados que mostram que tumores como o glioblastoma – um câncer cerebral – têm quase 100% de chance de recorrência. “O glioblastoma tem um problema maior, porque você não pode simplesmente retirar o órgão. A depender do órgão envolvido, a capacidade de ressecar o tumor totalmente é muito pequena. Você não pode tirar totalmente um sarcoma do coração, assim como um tumor no cérebro”, explica o médico. É diferente do que acontece com a mama. É possível retirar todo o tumor da mama em uma cirurgia. O problema é que as células cancerígenas da mama se deslocam mais facilmente para outros órgãos. “Por isso, normalmente, as pacientes são submetidas à quimioterapia, porque o tratamento preventivo diminui a incidência de células circulando pelo corpo”. 

Infantojuvenil A adolescente Tainara Novais, 14, começou a apresentar sintomas estranhos quando ainda tinha 12 anos. Sentia uma coceira forte, febre e tosse. “Mesmo tomando remédio, na mesma hora, já estava com febre de novo. Em menos de um mês, perdi mais de 10 quilos. Não tinha energia para nada”, lembra.

Após a peregrinação por médicos e exames, ela e a mãe, a agricultora Auricélia Novais, 42, saíram de Irecê, onde moram, para o Hospital Martagão Gesteira. Em janeiro de 2019, foi diagnosticada com linfoma de Hodgkin. Tainara deve ser submetida a um transplante de medula (Foto: Betto Jr./CORREIO) “No começo, eu não sabia o que era, por isso, fiquei tranquila. Depois, quando chegou o povo falando que eu ia passar por quimioterapia, que o cabelo ia cair, que levei o baque”. Desde janeiro do ano passado, Tainara e a mãe não voltam a Irecê. Têm ficado em Salvador direto para o tratamento. E, por quatro meses, tudo parecia bem. Mas, no São João, outro susto. No início, parecia ser uma pneumonia. Só que os exames mostraram que não apenas o linfoma tinha voltado como tinha avançado – agora, chegava ao pulmão. 

Tainara espera, agora, pela consulta para o transplante de medula óssea, que deve acontecer nos próximos dias. “Foi angustiante porque estamos aqui há um ano longe da família e, quando ela parecia estar boa, o mundo desabou de novo. Mas estou otimista. Desde o começo, creio que ela vai sair daqui curada”, diz a mãe, Auricélia. 

O câncer infantojuvenil é uma doença completamente diferente do câncer adulto, de acordo com a oncopediatra Juliana Costa, médica do Hospital Martagão Gesteira. "Na infância, geralmente são erros genéticos, má formação no próprio nascimento. O tratamento é diferente, comportamento é diferente. O de adulto tem relações ambientais, alguns você consegue prevenir", diz a oncopediatra. No Brasil, o câncer infantil mais comum é a leucemia linfoide aguda - só ela responde por cerca de 30% dos casos. A chance de cura chega a 70% no país. Mas, quando o tratamento chega ao fim, a chance de recidir é de até 20% - ainda que não tenham muitos dados brasileiros. 

"A gente sabe que alguns defeitos genéticos são piores que outros. Por isso, esses pacientes recebem um tratamento mais pesado do que outros, com mais drogas, por mais tempo. Mas aquele pacient que já chega com estágio mais avançado da doença tem mais chance de recidivar", completa.

No futuro, câncer será tratado como doença crônica e individualizada

Uma coisa é certa: o câncer não pode ser tratado de forma homogênea. Não há nem mesmo apenas um tipo de câncer possível de atingir cada órgão - pelo contrário. Diante de uma doença com tantas nuances, é possível falar em uma cura para o câncer? 

Segundo a hematologista Marianna Vieira Lima, da clínica AMO, a ciência trabalha hoje para fazer com que o câncer se torne uma doença crônica - como aconteceu com tantas outras, inclusive a AIDS. "Com o avanço das terapias, a medicina e a ciência estão debruçadas em controlá-lo. Assim, ainda que seja recidivado ou uma doença metástica, a ciência tem fornecido medicamentos para que o câncer se torne uma doença com a qual o paciente conviva", explica. É por isso que tanto tem se debatido sobre a chamada oncologia de precisão, com as terapias alvo, como a imunoterapia. 

"Assim, a pessoa vai ter um tumor, mas vai ter uma cura mais eficaz, porque a gente vai conseguir identificar a medicação mais precisa para aquele caso individual mais ativo", diz o urologista Breno Dauster, especialista em urologia oncológica e professor do curso de Medicina do Centro Universitário UniFTC. 

Tratamentos como a imunoterapia já estão disponíveis nos convênios particulares. No Sistema Único de Saúde (SUS), devem chegar aos poucos. 

Algumas instituições já têm iniciativas próprias. No ano passado, o CORREIO contou a história de Alexnsandro Gonçalves, a primeira criança baiana a tratar leucemia com ácido arsênico. 

"A leucemia tratada com arsênico (Leucemia Promielocítica Aguda - LPA) é causada por um erro entre os cromossomos. Isso é oncologia de precisão, assim como a imunoterapia, que usa a própria imunidade do paciente", diz a oncopediatra Juliana Costa, do Martagão Gesteira.