Única motorista de ambulância do Samu de Salvador conta como é lutar contra a covid

Série do CORREIO em homenagem ao Dia da Mulher traz três relatos

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  • Hilza Cordeiro

Publicado em 8 de março de 2021 às 05:10

- Atualizado há um ano

. Crédito: Nara Gentil/CORREIO

A crise sanitária mundial destacou o protagonismo das mulheres. Maioria na linha de frente do combate à covid-19, elas são a principal força de trabalho da saúde em todo o mundo. Diante das condições extenuantes do cenário atual, precisam ser lembradas como verdadeiras heroínas, com nomes marcados na guerra biológica que entra como um dos mais duros capítulos da história da humanidade. Elas representam mais de 70% dos profissionais da área de saúde e serviços sociais, segundo o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). Esta liderança, no entanto, vem acompanhada ainda de preconceitos e fardos desproporcionais que, culturalmente, as mulheres carregam muitas vezes sozinhas. 

Elas são enfermeiras, técnicas e auxiliares, fisioterapeutas, farmacêuticas, psicólogas, assistentes sociais, nutricionistas, biomédicas, médicas, motoristas de ambulância, profissionais da limpeza, gestoras e desempenham uma série de outras funções.

É preciso homenageá-las sem esquecer que, neste cenário pandêmico, várias mulheres estão enfrentando dramas como o aumento da violência doméstica, maior carga de tarefas não-remuneradas — sobretudo de cuidado com crianças e parentes doentes ou idosos — além de desemprego e pobreza. Nesta segunda-feira, 8 de março, o CORREIO traz depoimentos de três mulheres que estão na batalha contra o vírus, em diferentes profissões, para homenageá-las e lembrar a luta que é ser mulher todos os dias no caminho em direção à igualdade de gênero. A seguir, conheça a história de Ivis Belens, 38 anos, a primeira e única mulher condutora de ambulância do Samu em Salvador.

Disputada pelas colegas

O dia a dia de Ivis: Antes de iniciar a rotina de trabalho, a motorista confere as condições do carro, esse objeto que foi tão construído como símbolo da figura masculina. Ivis checa também se está tudo ok com os equipamentos de socorro que precisa levar e vê quem é sua equipe naquele dia. Os desafios que vão enfrentar são muitos e imprevisíveis, que incluem lidar com traficantes para entrar nas favelas. Além de dirigir, ela tem que auxiliar no suporte à vida. Precisa fazer imobilizações, ajudar a reanimar pacientes com parada cardiorrespiratória, dar palavras de conforto a todos até conseguir vaga para as vítimas em alguma unidade hospitalar. Agora, tudo isso é somado a mais uma árdua tarefa: atender os difíceis casos de covid-19. 

Confira o depoimento de Ivis Belens:“As pessoas acham que o trabalho da gente é simples, mas não é como imaginam. E ficou ainda pior. A gente sofre agressão verbal, claro, porque o ser humano é difícil, mas também vivemos num cenário triste rodeado de favela. Eu e uma técnica já fomos abordadas por um traficante, ele se aproximou, tirou a arma da sacolinha e, quando viu que no interior do carro eram duas mulheres, ele guardou a arma, deu bom dia, perguntou se precisávamos de algo e nos ensinou o local da vítima do atendimento. Colocamos o paciente na unidade e fomos embora.

Apesar de tudo, foi com muita educação. Eles têm os motivos deles. E acho que eles costumam se sentir muito menos ameaçados quando a equipe é composta por duas mulheres. Tenho colegas homens que já foram abordados para que abrissem a ambulância para que pudessem ver quem estava dentro. Nunca aconteceu comigo.

Quando entrei no SAMU, muitas colegas técnicas ficaram com medo de ir comigo como condutora. Pensavam: “Poxa, tenho medo de entrar numa favela com ela. E se a gente for abordada por traficantes? Se eles fizerem algo? A realidade mostrou o contrário. Teve esse preconceito, mas elas foram rodando comigo e, hoje, brigam para rodar comigo. Até trocam de unidade para rodar comigo! Quando conto sobre a minha história é engraçado. Eu não sabia que dava orgulho, que eu causava essas coisas. Antes, eu sentia uma certa vergonha em ter que responder que era motorista. Diziam: “Nossa, você é motorista? Nunca vi mulher dirigindo ambulância”. Eu ficava sem jeito.

A única dificuldade que eu enfrento é na questão do peso. Tem pacientes que consigo levar sozinha, tem outros que não, como também tem homens no SAMU que não têm essa força toda e não levam sozinhos um paciente até a ambulância. Por ser mulher, reconheço que preciso um pouco mais de ajuda nesse requisito, mas sempre encontrei apoio na grande maioria das vezes, assim como outros colegas. No fim das contas, não tenho assim tanta dificuldade no atendimento por ser mulher, não. Às vezes, a equipe da minha ambulância básica é toda feminina e garanto que a gente dá mais conta do que uma equipe de quatro homens numa ambulância avançada. Tem homens no SAMU que não me engolem, acham que roubei o espaço deles. São casos bem específicos. Na maior parte do tempo, fazemos nosso trabalho sem ouvir essas coisas. 

Acredito que sou mais cuidadosa. Quando pego paciente vítima de trauma, eu não procuro sair correndo para levar ele logo e estar livre. Me preocupo com buraco, com quebra-mola, me preocupo com quem tá dentro do carro. Não posso dar um tombo no paciente. Uma vez, um paciente disse que eu era muito lenta dirigindo. Perguntei para ele se ele preferia que eu dirigisse rápido como um homem. Ele respondeu que sim. Quando passei no primeiro quebra-mola, ele sentiu o impacto, sentiu aquela levantada, e mudou de opinião. Pediu para que eu dirigisse como mulher. 

Eu me irrito, perco a paciência quando me xingam por besteira, mas entendo que tem muita gente sem informação que precisa de atenção, do cuidado. O que posso fazer, faço. Busco dar conforto aos pacientes, amo o que faço. Posso realmente lhe afirmar que não escolhi o SAMU, fui escolhida, sei lá, por Deus. Eu tinha pavor a sangue, eu não enxergava o SAMU como enxergo hoje. Quero me aposentar nele.

Mas nossa situação, de todo mundo, ficou ainda mais complicada na pandemia porque tem os pacientes com as ocorrências clínicas rotineiras e, ao mesmo tempo, eles ainda podem ser infectados por covid-19. Temos que fazer tudo o que a gente fazia só que paramentado. Antes, a gente cuidava muito de pacientes de AVC, dores, acidente automobilístico, facada, espancamento. Agora é tudo. Então, às vezes, chega lá e pode ser as duas coisas, a gente tem que estar vestido com roupa especial e é muito difícil de vestir. Às vezes, a família não quer saber, não entende. Indo para outra ocorrência, já aconteceu de sermos abordados na rua por uma família que nos parou porque um paciente não estava conseguindo respirar. Quase fomos agredidos porque a família não quis esperar, não quis saber se a gente tem que se proteger para pegar o paciente.

O que mais me chamou atenção aconteceu na primeira onda. Foi mesmo essa coisa de ver pacientes morrendo o tempo todo. Morrendo na ambulância. A gente tentava reanimar e não conseguia. O que mais me abalou foi um senhor, bastante forte, de 50 e poucos anos. Ele buscou atendimento médico tarde demais. Foi agonizante de ver. É diferente de você ver um paciente de acidente que está sangrando. O paciente de covid-19 é alguém que está procurando ar o tempo todo e não consegue. Ele te olha com os olhos arregalados e você não tem o que fazer. É como um peixe fora d' água. Ele foi o meu primeiro paciente, faleceu na minha frente. Então, imagine você vendo isso, pessoas morrendo pelo mesmo motivo, todos os dias, choca demais, deixa a gente arrasado. Sempre me perguntam como eu consigo. Respondo brincando que, além da força que vem de Deus, um batom vermelho muda muita coisa".