Vai dar branco: costa de Salvador a Abrolhos será mais exposta a branqueamento de corais

Estudo de cientistas da UFRN aponta que aquecimento global e dos oceanos vai impactar na vida desses animais em 30 anos

Publicado em 27 de junho de 2021 às 06:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Natalia Roos/Divulgação

Não são só os banhistas que gostam das águas mais quentes do litoral baiano. Por aqui, submersas, vivem cerca de 20 espécies de corais entre a costa de Salvador e o banco dos Abrolhos, no litoral sul da Bahia. Águas mais quentinhas, entre 18ºC e 28°C, costumam agradar a essas espécies que atraem pela diversidade de cores e formatos e abrigam cerca de 25% de toda a biodiversidade marinha. Mas, eles podem perder a cor com mais frequência por aqui nos próximos 30 anos. Um estudo publicado nesta sexta-feira (25) na revista Scientific Reports, do grupo Nature, por cientistas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) aponta que a costa da Bahia, de Salvador até o bancos dos Abrolhos – que abriga os mais importantes e mais diversos recifes de corais do Atlântico Sul –, será a região brasileira mais atingida pelo branqueamento de corais até 2050.

A explicação para isso está no aquecimento global e, consequentemente, no aumento da temperatura das águas dos oceanos. Nos próximos anos, a temperatura no Atlântico Sul Ocidental deve aumentar em até 3°C, segundo projeções do Painel Intergovernamental para Mudança de Clima (IPCC), e isso vai ser demais até para os corais, que gostam de águas mais quentes para se desenvolver. O estudo, antecipado pela Agência Bori, mostra que, embora os recifes de corais brasileiros sofram um processo de mortalidade mais lento do que no Caribe e no Oceano Pacífico, as áreas menos vulneráveis ao branqueamento de corais na costa brasileira devem reduzir em 50% nas próximas três décadas.

Mestre em Ecologia pela UFRN, a bióloga Jéssica Bleuel, autora da dissertação de mestrado que deu origem ao estudo publicado na revista britânica, explica que o aquecimento das águas está diretamente ligado ao branqueamento dos corais.“O coral vive em simbiose com microalgas que estão no entorno de seu tecido, e é a partir dessa relação mútua que a microalga faz a fotossíntese – que dá a cor do coral – e fornece vários nutrientes. Essas microalgas são a principal fonte de alimento do coral que, em troca, oferece abrigo”, explica Jéssica.O problema é que, quando a temperatura da água fica muito elevada, o metabolismo dessas microalgas acelera e, em vez de oferecer benefícios, elas começam a ser tóxicas para o coral. É nesse processo que elas são expulsas e, sem alimento, o animal vai perdendo a cor e ficando debilitado. O branco pálido visto em muitos deles sobretudo no verão e no período do El Niño, é o esqueleto do coral, que ainda não está morto, mas doente. Pode ser que ele se recupere – ou não.

“A gente compara muito o branqueamento de corais com uma febre. Se ele tá branco, ele não tá bem, ele expulsou as algas que estavam sendo tóxicas com a alta temperatura e tá ali esperando a relação melhorar. Se a temperatura baixar, elas voltam. Mas isso depende de o estresse agudo passar ou se não tem outras coisas. Por exemplo, ele já está doente, e aí vem esgoto, vem fome, ou alguém pisa em cima, é mais difícil que ele se recupere”, destaca o também biólogo Guilherme Longo, do Laboratório de Ecologia Marinha, Departamento de Oceanografia e Limnologia da UFRN. Ele assina o trabalho junto com Jéssica e Maria Pennino, do Instituto Español de Oceanografía. Coral branqueado em Rio do Fogo, no litoral do Rio Grande do Norte (Foto: Natalia Roos/Divulgação) Projeções Nos últimos 23 anos, houve quatro grandes ondas de branqueamento de corais em nível global – 1997-1998; 2010; 2015-2017; e 2019-2020. O que os estudiosos queriam saber era, com base nessas e em outras informações sobre ocorrência e cobertura de corais no Brasil, o que iria acontecer no futuro por aqui.

“A gente fez uma modelagem matemática para saber como essa comunidade de corais ia ser no futuro e chegou nessas áreas mais vulneráveis na costa da Bahia, desde Salvador até o banco dos Abrolhos, pegando um pouco do começo do litoral do Espírito Santo. E isso tanto para agora como para os próximos 20 ou 30 anos. É preocupante porque é uma região com alta cobertura de coral, principalmente nos Abrolhos”, destaca Jéssica Bleuel.  Coral branqueado na região de Recife de Fora, em Porto Seguro, no litoral Sul da Bahia (Foto: Kely Salvi/Instituto Coral Vivo) Para se ter uma ideia da importância dos corais da Bahia, vivem por lá pelo menos 18 espécies diferentes, enquanto o litoral de São Paulo tem três e do Rio de Janeiro, sete. “Tem uma série de fatores que faz com que aquela região, principalmente de Abrolhos, seja propensa a ter muito coral: tem a ver com a localização, é uma região tropical, quente, e é uma plataforma extensa e rasa e com muitos corais endêmicos, ou seja, que só ocorrem ali”, afirma Jéssica.

A plataforma extensa a que ela se refere se chama plataforma continental e é o tamanho do espaço de mar “raso” até haver uma quebra no talude e se chegar ao alto mar.“Aqui no Rio Grande do Norte, você anda uns 40 quilômetros e tem uma quebra. Na Bahia, você anda muitos quilômetros. Essa área, quando subia e descia o nível do mar, tinha muita concentração e recifes. Há 500 anos, essa área da Baía de Todos-os-Santos tinha muito bicho. É um centro de diversidade de corais e um lugar de muita abundância. É uma zona quentinha, tranquila e essas condições são bem boas para corais”, completa Guilherme.Habitat natural O branqueamento dos corais não é um problema só aos olhos de quem admira essas espécies. Se eles não se recuperam do branqueamento, toda uma biodiversidade marinha também é afetada. “Os recifes de coral, como um todo, são como se fossem florestas. A biodiversidade de organismos é de suma importância. Quando eu tenho perda dessa material, quando eu tenho morte, eu tenho perda de biodiversidade”, afirma o oceanógrafo Rogério Lapa, pesquisador do Laboratório de Recifes de Corais e Mudanças Globais da Universidade Federal da Bahia (Ufba).

Se eles morrem, sofrem as espécies que o têm como habitat, mas também o pescador, que deixa de encontrar pescado, os donos de pousadas, que perdem um atrativo para visitantes, os operadores de empresas de mergulho. “O recife de corais tem valor para a vida das pessoas e esse é um recado para que elas preservem”, diz o também pesquisador Miguel Mies, PhD em Oceanografia pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenador de pesquisas do Instituto Coral Vivo. Ele traduz toda essa importância em números.“Eles abrigam uma biodiversidade elevadíssima: 25% da biodiversidade marinha vive nos recifes de corais e eles ocupam menos de 1% de área dos oceanos. É muita vida num espaço muito pequeno. É de grande importância biológica, mas eles têm uma importância socioeconômica também, porque tem uma série de atividades que dependem do coral vivo, como pesca, turismo, fármacos”, cita Miguel. Recifes de corais são habitat natural para 25% de toda a biodiversidade marinha (Foto: Allan Hoffmann/Instituto Coral Vivo) Já foram encontradas nos corais substâncias com poder antibiótico e eles também são fundamentais para a proteção costeira de tempestades, por exemplo – quando elas batem na barreira de corais, chegam mais fracas. “Se você soma todos esses serviços, você tem 500 milhões de pessoas no mundo inteira dependendo de corais, gerando 10 trilhões de dólares por ano. Só que tudo isso só funciona se o recife estiver vivo. Precisa ser feito de maneira sustentável para que o recife fique vivo e continue a operar”, aponta Miguel.

O que pode e deve ser feito, apontam os estudiosos, é adotar medidas em escala local e global para evitar que o branqueamento aconteça e para impedir que outras questões acabem impedindo a recuperações dos corais e os levando à morte. “O que está no nosso alcance é minimizar os impactos locais que o ser humano causa: pesca excessiva, poluição, turismo desordenado. Mas, algumas atitudes têm consequências globais, como o desmatamento. É preciso tentar formas de reduzir emissões de carbono”, diz Jéssica. “Claro que todo mundo pode e deve fazer sua parte, mas a gente precisa de um esforço coletivo para resolver, porque além de parar de emitir carbono, a gente tem que tirar o que tá na atmosfera”, completa Guilherme.

Resiliência As ações citadas pelos pesquisadores ajudam a reduzir mais impactos sobre os corais e permitem que, mesmo após o branqueamento que os deixa debilitados, eles consigam se recuperar. A boa notícia é que os corais do litoral baiano costumam ser resilientes, mas isso não significa que estejam imunes ao processo e nem à mortalidade – pelo contrário, ela vem aumentando. Quem primeiro observou esse caráter mais resistente dos corais brasileiros foi a pesquisadora Zelinda Leão, PhD em Geologia Marinha e líder do Laboratório de Recifes de Corais e Mudanças Globais da Ufba.

“O branqueamento sempre ocorreu na época de El Niño, de maior aquecimento das águas. A gente monitorou o branqueamento uns 15 anos, até 2016, mas a Bahia é menos suscetível do que o restante do Nordeste. Nós temos dados de mortalidade e eles mostram que na costa da Baía de Todos-os-Santos, Boipeba e Abrolhos, os corais recuperam”, explica a pesquisadora. Coral massivos, ou arredondados, são muito comuns na costa brasileira, e esse formato os deixa mais resilientes às mudanças climáticas (Foto: Kely Salvi/Instituto Coral Vivo) Segundo Zelinda, seis meses após a observação da onda de branqueamento de 2016, os corais branqueados já estavam recuperados. A mortalidade, contudo, não tem a ver só com o branqueamento. “Tem outros fatores, principalmente o uso dos recifes pela ação humana: é lixo, é poluição, esgoto, sedimentos, sobrepesca, turismo desordenado. Na Baía de Todos-os-Santos ainda se pesca com bomba, e quando você joga uma bomba, você mata tudo”, explica.

E ainda há os corais invasores, trazidas até em plataformas de petróleo.“Aqui no Farol da Barra, nesse parque municipal, tem uma invasão de um coral azul. Geralmente, espécies invasoras são resistentes, elas começam a tomar o lugar das espécies nativas e vão substituindo. Ele ocupa mais substrato artificial, como casco de navio, mas ele está invadindo os recifes da Baía de Todos-os-Santos. Não chegaram em Abrolhos ainda, pelo menos não encontramos”, pontua Zelinda.Miguel Mies, do Instituto Coral Vivo, publicou recentemente uma pesquisa junto com Guilherme Longo que testou cinco razões pelas quais os corais daqui são mais resilientes (veja abaixo). Mas, para ele, o importante é não tratar essa resiliência como uma espécie de imunidade. “Isso é cientificamente comprovado. Tem gente que entende isso como se nós fossemos imunes. Nós temos branqueamento, está aumentando a mortalidade, mas numa velocidade e intensidade menor do que no restante do mundo”, diz. No Pacífico e no Caribe, a mortalidade atinge centenas de espécie. Por aqui, apenas duas.

O estudo publicado por Jéssica Bleuel, Guilherme Longe e Maria Pennino também chegou a outras duas conclusões: apesar do aumento do branqueamento – e também da mortalidade de corais – em toda a costa brasileira, a ocorrência e a cobertura de corais também vai aumentar, até mais do que o branqueamento. Isso vai acontecer principalmente no litoral sul e sudeste do país, já que as águas de lá, menos quentes do que as da Bahia, também vão aquecer e, agora, ficarão mais convidativas a espécies de corais.

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Óleo derramado ainda impacta biodiversidade

Quase dois anos após o derramamento de óleo que afetou o litoral, sobretudo, do Nordeste brasileiro, o problema ainda tem potencial para afetar a biodiversidade marinha. Líder da equipe do e pesquisadores que identificou a origem do óleo derramado como sendo de origem venezuelana, a professora Olívia Oliveira, diretora do Instituto de Geociências da Universidade Federal da Bahia (Ufba), afirma que ainda é possível existir grande quantidade de óleo soterrado no assoalho marinho.“A biodiversidade costeira e marinha na zona litorânea atingida pelo óleo derramado em 2019 tem sido consideravelmente afetada e esse é um fator muito preocupante, uma vez que se trata de subsistência para a população pesqueira dessa região. Infelizmente é possível existir ainda grande quantidade de óleo soterrado no assoalho marinho, em função de processos sedimentológicos e correntes oceânicas, fatores os quais também podem provocar o revolvimento do assoalho e deslocamento de óleo para o litoral”, explica Olívia, que é pesquisadora nas temáticas de geoquímica do petróleo e geoquímica forense. Óleo atingiu praias do litoral do Nordeste no segundo semestre de 2019 (Foto: Marina Silva/Arquivo CORREIO) Para o biólogo Guilherme Longo, do Laboratório de Ecologia Marinha, Departamento de Oceanografia e Limnologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), o óleo pode causas muitos impactos em corais, não necessariamente ligados ao branqueamento, mas à saúde desses animais. “Tem um impacto direto de uma mancha em cima do bicho porque isso impede a alimentação, é uma espécie de sufocamento mesmo. E tem muito desse óleo meio que foi pro sedimento, então pode ter essa toxicidade ainda atuando sobre os corais. Não tem uma relação direta com o branqueamento, mas dificulta a recuperação. Em 2019, a gente teve o óleo e em 2020 teve uma grande onda de branqueamento. Talvez, os corais já não estivessem bem”, diz Guilherme.Miguel Mies, do Instituto Coral Vivo, explica que o fato de o óleo ter se derramado longe da costa foi bom, porque a fração do óleo que gera um dano mais mecânico não chegou com força aos corais. Mas ele concorda que, se o óleo causou qualquer tipo de estresse aos animais, isso pode tê-los deixado mais fracos para enfrentar uma onde de calor e branqueamento.

Os impactos do derramamento de óleo continua sendo estudados. Um deles é a Rede Cooperativa de Desenvolvimento de Protocolos para Avaliação de Zonas Costeiras Impactadas por Derramamento de Óleo e Aplicação de Biotecnologias para Remediação (Rebicop), coordenada pela Ufba através do Instituto de Geociências e com pesquisadores de outras unidades da própria Ufba e de Instituições Científicas, Tecnológicas e de Inovação (ICTs) no Brasil e no exterior.

A Rebicop foi iniciada em dezembro de 2020 com financiamento do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações e da Marinha e “visa desenvolver um trabalho integrado direcionado para o estabelecimento de protocolos de monitoramento e de biorremediação, visando contribuir com a redução de danos ambientais na região litorânea brasileira afetada pelo problema em tela, onde os manguezais ocupam um lugar de destaque”. Além disso, a equipe de pesquisadores do Igeo/Ufba vem atuando junto ao projeto “Bioação Garapuá”, apoiado pela Uber, com fins de caracterização de Área com Potencial de Contaminação.

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Por que os nossos corais são resilientes?

Ainda na década de 1990, a pesquisadora Zelinda Leão, da Ufba, sugeriu que os corais brasileiros eram mais resilientes. Recentemente, Miguel Mies e Guilherme Longo testaram e encontraram cinco razões para isso: Coral 'casca de jaca', em Recife de Fora, Porto Seguro (Foto: Kely Salvi/Instituto Coral Vivo) 1.    Formato - Corais mais arredondados são muito mais resilientes às mudanças climáticas, e aqui no Brasil há predomínio dessas espécies chamadas massivas. No Pacífico, predominam os ramificados.2.    Profundidade – Corais que ficam em camadas mais profundas estão mais protegidos do aquecimento da superfície da água. Os brasileiros conseguem habitar em profundidade.3.    Turbidez – Se há partículas na água, o que acontece no Brasil, elas absorvem o calor antes que ele chegue com força nos corais.4.    Nutrientes – Recifes de corais não gostam de água rica em nutrientes, mas aqui no Brasil a água já tem muitos nutrientes e os recifes já estão acostumados. Quando aumenta o calor e os nutrientes, eles não sofrem um efeito dobrado.5.    Pau pra toda obra – Há corais especialistas, que só se aliam a um ou poucos tipos de algas, e os generalistas, que se associam a vários. Os brasileiros são generalistas e, tendo uma variedade de algas para ‘acolher’, podem se recuperar melhor do branqueamento.