'Vi meu filho morrer sem poder fazer nada', diz mãe de uma das vítimas da chacina do Cabula

Durante o protesto, houve tensão quando PMs tiraram fotos do local

  • Foto do(a) author(a) Bruno Wendel
  • Bruno Wendel

Publicado em 6 de fevereiro de 2020 às 17:05

- Atualizado há um ano

. Crédito: Betto Jr./ CORREIO

Dentro da visão africana, o homem só morre quando é esquecido. Partindo deste ponto, as 12 vítimas da chacina do Cabula estiveram presentes na manhã desta quinta-feira (06).  No dia em que completam cinco anos das mortes, 12 árvores foram plantadas no local das execuções para homenagear os mortos.

Apesar do ato solene, para alguns parentes, retornar à Vila Moisés é reviver lembranças que não desejariam a ninguém. “Vi meu filho morrer sem poder fazer nada. Se saísse de casa, morreria também. É uma dor intensa e constante. Não desejo isso ao meu inimigo”, declarou a mãe de uma das vítimas. 

Ela, que por uma questão de segurança preferiu não mostrar o rosto e não revelar o nome, disse que está devastada. “A minha vida não é mais a mesma. A ordem natural das coisas são os pais enterrarem os filhos e não o contrário. É muita dor”, disse ela ao CORREIO. Foto: Betto Jr / CORREIO Em 6 de fevereiro de 2015, as vítimas foram mortas durante uma operação das Rondas Especiais (Rondesp) na região, motivada, segundo informações do Ministério Público Estadual (MP-BA), por vingança. Na época, as primeiras informações chegaram a afirmar que as mortes teriam ocorrido após um confronto entre policiais e suspeitos. As vítimas tinham entre 16 e 27 anos. A irmã de um dos rapazes mortos também participou do ato.“É doloroso reviver tudo isso. Nada é como antes, a gente não é mais feliz. Tudo me lembra ele. E é muito revoltante saber que diariamente a polícia faz isso. Toda vez que a polícia mata alguém na comunidade, a gente revive tudo. A gente tenta esquecer, mas é impossível. A gente vive triste sabendo que a justiça não pode fazer nada. Quando vejo a Rondesp na rua, passo mal, porque acabo revivendo tudo”, desabafa.  Irmã de vítima chora ao lembrar da chacina e diz que família está arrasada (Foto: Betto Jr./ CORREIO) A prima de um outro rapaz morto pelos policiais disse que retornar ao local da chacina após cinco anos é reviver "uma covardia de uma suposta operação". “É recordar todo o momento de dor que minha família vive constantemente. Aquela dor que sangrou em 2015 e continua sangrando. Eles agem com a certeza da impunidade. Doze famílias foram dilaceradas, sonhos forma dilacerados por pura maldade”, disse. 

Ela disse que a morte foi planejada pela polícia. “Foi uma armação o que aconteceu aqui, pegaram os meninos de surpresa, na surdina. Se fosse uma doença, a gente aceitava. Meu primo não era bandido, não era assaltante de banco. Cadê as provas? A polícia chega hoje nas comunidades com o kit flagrante. Hoje para mim é buscar por resposta e não fazem nada, tudo pelo preconceito racial. Eles (policiais) entram nas comunidades para nos matar. Até quando jovens negros vão morrer?”, declarou a prima de uma das vítimas. 

Processo  Segundo informações do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), houve recurso para anular a sentença que absolveu os réus envolvidos no caso. Acolhido o recurso, o processo voltou para a 2ª Vara do Tribunal do Júri para continuidade da instrução processual, com produção de provas e audiência, que ainda estão em curso. As 12 mudas foram plantadas no local indicado com placas com os nomes das vítimas (Foto: Betto Jr. /CORREIO)  No ano passado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou a federalização do caso. "O impacto disso pra gente é que vai ter leniência, vão procrastinar cada vez mais e vão passar 20, 21 anos, e os réus ficarão livres para matar, extorquir comerciantes. Mas nós vamos continuar lutando”, declarou Hamilton Borges, do Grupo Reaja, idealizador do ato desta quinta (6). 

Tensão A homenagem foi iniciada por volta das 9h. Parentes, amigos e integrantes do Grupo Reaja plantaram as 12 mudas – cada local havia uma placa com o nome de uma vítima. Além dos parentes e integrantes da comunidade, outras mães que perderam seus filhos pela truculência da polícia também participaram da solenidade, como foi o caso da professora Ana Maria dos Santos Cruz, 54.

O filho dela, o artesão e tatuador Pedro Henrique Santos Cruz Souza, 31, foi assassinado por três PMs na cidade de Tucano, no dia 22 de dezembro de 2018. O rapaz denunciava os excessos da Polícia Militar na região.  "Ela era ligado aos movimentos negros e fazia militância na cidade, denuncando a truculência de policiais. No dia, invadiram a casa dele e o mataram. Dos três acusados, dois PMs foram indiciados pelo crime. E por isso estou aqui, para prestar minha solidariedade às famílias e continuar a luta do meu filho", contou ela, após ajudar no plantio das mudas. 

Durante o ato, houve um momento de tensão. Equipes de policiais militares começaram a circular no entorno. Num determinado instante, alguns policiais desceram das viaturas e se aproximaram com celulares a postos filmando todos – o que deixou parentes e amigos apreensivos. Quando perceberam que eram também filmados pelos presentes, inclusive pela imprensa, foram embora. O momento ficou tenso com a chegada de policiais militares (Foto: Betto Jr./ CORREIO) Histórico Os nove policiais foram absolvidos em primeira instância pela juíza Marivalda Almeida Moutinho, em setembro de 2015. A decisão de Marivalda foi dada quando o juiz Vilebaldo José de Freitas Pereira, da 2ª Vara do Júri, que aceitou a denúncia do MP-BA, entrou de férias. Ela substituiu o juíz e inocentou os policiais, “após analisar as provas técnicas do processo”, conforme informou o TJ-BA na época.

Em setembro deste ano, no entanto, à pedido do Ministério Público da Bahia (MP-BA), que recorreu da decisão da juíza Marivalda, o julgamento que inocentou os PMs foi anulado pela Primeira Turma da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA).

Nomes Foram denunciados pelo MP-BA o subtenente Júlio César Lopes Pitta, identificado como o mentor da alegada chacina, assim como os soldados Robemar Campos de Oliveira, Antônio Correia Mendes, Sandoval Soares Silva, Marcelo Pereira dos Santos, Lázaro Alexandre Pereira de Andrade, Isac Eber Costa Carvalho de Jesus e Lucio Ferreira de Jesus, assim como o sargento Dick Rocha de Jesus.

Na ação da PM, morreram: Adriano de Souza Guimarães, 21 anos; Jeferson Pereira dos Santos, 22, João Luís Pereira Rodrigues, 21, Bruno Pires do Nascimento, 19, Vitor Amorim de Araújo, 19; Tiago Gomes das Virgens, 18, e Caique Bastos dos Santos, 16; Evson Pereira dos Santos, 27, e Agenor Vitalino dos Santos Neto, 19; Natanael de Jesus Costa, 17, e Ricardo Vilas Boas Silva, 27; e Rodrigo Martins Oliveira, 17.

O inquérito do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) sobre a operação policial da Rondesp concluiu que houve confronto com os suspeitos e os policiais militares agiram em legítima defesa.