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Donaldson Gomes
Publicado em 29 de março de 2016 às 10:14
- Atualizado há 2 anos
Num dá pra passar o dia inteiro na rede, como a gente até gostaria. Essa história de "meu rei" também não rola. Mas, se ligue, tem coisas que só se vê na Bahia mesmo. Na sexta, é comida baiana e roupa branca. O cara vai pegar o baba no sábado e tomar uma depois. Tomar uma? É comer água. Água dura. Domingo é dia de bater um feijão na casa da veia, ou onde estiver rolando. E pra o dia ficar perfeito é só ter um Ba-Vi no fim de tarde.Por aqui se sabe que atum pode ser um peixe, mas pode ser também um doce. Que roupa velha é comida, que existe azeite doce e queimado é bala. Chumbinho vai bem panela e você pode comer a frigideira. Que a terra do acarajé inventou o pãozinho delícia. Na praia, a pedida, quase tão comum quanto a cerveja, é o picolé Capelinha. Todo mundo opina sobre o melhor acarajé. E que, como já dizia Jorge Amado, bolinho de estudante por aqui é conhecido como "punheta".De bike, Arygil vai largando baianidade por Salvador (Foto: Mauro Akin Nassor)O músico Arygil Cerqueira, 55 anos “que nem parecem”, como faz questão de ressaltar aos risos, não abre mão do branco às segundas e sextas-feiras. No fim de semana, as cores variam. Se tem jogo do Bahia na Fonte Nova, é certo encontrá-lo por lá enfeitado com o azul, vermelho e branco. No sábado, depois do babinha, a cerveja é garantida. “Velho, se o cara não pega o baba no sábado de manhã e vai tomar uma depois, não foi baba”, brinca.Arygil espalha pra todo mundo que é baiano nato, nativo de Salvador. O nome artístico é uma homenagem a outro baiano, Gilberto Gil. E não adianta insistir pra descobrir como Arygil foi registrado, que ele não abre o jogo. “Pouca gente sabe que o nome de Gal Costa é Maria da Graça Costa Penna Burgos. Sabe o de Brown? Antônio Carlos Freitas”, diz, se pocando na risada. “Ninguém sabe o nome do artista. O de Naná Vasconcelos, que Deus o tenha em um bom lugar, era Juvenal de Hollanda. Olha o nome do cara! Ninguém vai saber quem é uma praga dessas, pensa que é político. O nome é de guerra, que todo mundo conhece”, argumenta. Deixa o Arygil aí, então.>
Rapare, todas as reportagens deste especial de aniversário têm um tchan a mais no ESPECIAL DE ANIVERSÁRIO DE SALVADORHá quase 20 anos, Arygil adotou o hábito de andar pela cidade de bicicleta, o que, segundo ele, trabalha em duas frentes. “Tem gente que diz que eu sou mais conhecido que o Elevador Lacerda e eu costumo dizer que sou o anônimo mais conhecido da cidade”, afirma.Muita gente já o viu passando de bike, mas a maioria não sabe quem é. No meio artístico, porém, ele é bem conhecido. “Todo mundo me vê passando. Ivete Sangalo passa nos carrões dela, Daniella Mercury... Elas abrem os vidros pra falar comigo. Outro dia Caetano Veloso quase me atropela. Eu digo, 'porra, até você, Caetano, vai me atropelar, é?'. Aí ele riu”, conta.Pedalando, Arygil conseguiu se dar conta de belezas de salvador que às vezes passam despercebidas. “Como Gilberto Gil fala, 'a refavela como é tão bela, como é tão bela'. Isso é verdade. Eu vejo os mercadinhos, barzinhos, as pessoas sentadas na beira da casa, coisas que não se percebe de carro ou de buzu”.“Eu sou assim. É o meu jeito alegre de ser, o tempo todo batucando, contando piadas, fazendo as pessoas sorrirem, recebendo bem as pessoas, acolhendo bem quem vem de fora. Eu sou festivo, carnavalesco, músico. Todo baiano é artista, a gente não nasce, como dizem, estreia. Esse formato, esse jeito meu. 'Porra, aquele maluco é mais baiano que todo mundo', eu já ouvi isso”, resume, falando da própria baianidade.Um lugar especial por onde gosta de passar passeando é a ladeira de São Caetano, onde pode ver a Igreja do Nosso Senhor do Bonfim, símbolo de uma terra que reuniu diferentes povos, culturas e expressões religiosas. “Eu sempre me emociono com a descida de São Caetano. Me emociono vendo a Igreja do Bonfim dali, com os Alagados”, diz.O jornalista José de Jesus Barreto, o ZédeJesusBarreto, como gosta de se apresentar, é um estudioso das coisas da baianidade. Capoeirista dos bons, define-se como um cara que respeita todos os deuses, “inclusive o único”. Recentemente comprou um carro zero bala e levou primeiro para receber a benção no terreiro do qual é adepto. Depois foi à Colina Sagrada do Bonfim deixar veículo ainda mais protegido. “É benção, estou dentro. Não me importo se é do candomblé, da Igreja, do Espiritismo, do que for. Se passar alguém por mim agora querendo me abençoar, por que eu iria recusar, bicho? A gente vive um tempo tão difícil que o que for pra dar segurança, estou aceitando”, diz. “Eu visto branco, mas não fico preso apenas a isso. Eu respeito todas as coisas da nossa terra”, afirma.ZédeJesusBarreto tem a sua definição do que é baianidade. “Um jeito de ser, de viver, de falar, de ver o mundo, de fazer as coisas, que é diferente, ou pelo menos era, sobretudo aqui na capital e no Recôncavo, onde a influência dos terreiros, das senzalas e do existir africano foi muito forte”, diz. Para ele, tudo isso se expressa através da capoeira, candomblé, samba de roda, sincretismos, no jeito de andar, “está nas ladeiras, na comida, em tudo o que fazemos”.“Isso tudo foi musicado por Caymmi, foi escrito por Jorge (Amado), fotografado por (Pierre) Verger, desenhado por Carybé... Saáa em O Cruzeiro e ganhou a boca do mundo”, lembra.Quando chegou à Cidade da Bahia, em 1991, o empresário espanhol Miro Vidal, 45 anos, se encantou. Nasceu de novo, poderia se dizer. E nesse novo nascimento, veio baiano. É um baiano “adotado”. Tem amigos aqui na terra que brincam com ele, dizendo que “se acha o negão”, tal a sua paixão pela terra. “Eu amo esta terra, véi”, diz. O “véi” sai quase um vêi, mas tá valendo.Na arrumação da viagem para o Brasil já cogitava se estabelecer no país. O plano se tornou certeza quando conheceu Salvador. “Me identifiquei com o jeito das pessoas”, lembra. Com o jeito das pessoas e com a comida. Ele adora a culinária baiana. Só não come caruru. “O quiabo não desce”, explica. Mas o resto, da maniçoba ao sarapatel, passando pelo mocotó, não dispensa nada.Hoje, ele já arrisca até palpites sobre os costumes da terra. “Lá fora, o povo pensa que a gente usa fitinha do Bonfim no braço. A gente usa pra dar proteção, coloca em objetos. Eu tenho no meu carro. Esse negócio de fitinha no braço é mais pra turista mesmo. A gente que é da terra dificilmente usa assim, né não?”. Oxe, num é o que.A socióloga Ângela Guimarães diz que há um jeito típico do Nordeste brasileiro, que se acentua na Bahia, percebido na forma de tratar as outras pessoas. “O baiano é hospitaleiro e simpático”, diz. “Essa coisa da alegria, o jeito de tratar as pessoas com familiaridade, de ter um coração muito grande, são características do baiano e se destacam até internacionalmente. Tem um jeito diferente de se tratar. Na Bahia, a sociabilidade passa pelo afeto, por uma busca por proximidade e acolhimento”, aponta.Para ela, essas características foram herdadas das culturas africana. “E essas culturas são muito gregárias, acolhedoras, com um sentimento de família muito presentes”, explica.O alerta que Ângela faz é em relação ao folclore que existe em relação à baianidade. “Eu acho importante que a gente retire da discussão da baianidade aquela coisa mais folclorizada, do tipo 'sou baiano, sorriso aberto', a coisa da baiana do acarajé para tirar foto, essas coisas são instrumentalizadas para desconstruir a nossa cultura. A nossa relação como sociedade é mais profunda”, destaca. “Eu nunca me preocupei muito com baianidade, não faço o maior esforço para ser baiano. Eu sou, adoro ser, adoro a Bahia, acho que tem características próprias, mas eu acredito que em matéria de política cultural, quem não tem o que dizer fala em identidade”, diz o antropólogo Ordep Serra, professor aposentado da Universidade Federal da Bahia (Ufba).Para ele, é preciso evitar a criação de estereótipos. “As minhas objeções estão no fato de se partir para o estereótipo, então a gente cria um tipo baiano etc e acaba cercando por dois lados. Todo o estereótipo tem uma contraface negativa. De um lado se diz 'o baiano é alegre e cordial'. Do outro, 'é relaxado e preguiçoso', não é? 'Meio malandro', 'ah, tem o pinto grande', que todo mundo gosta, mas tem também o 'não gosta de trabalhar'. Isso me preocupa”, afirma.A “cisma” dele com o estereótipo é por acreditar que isso destrói a diversidade. “Eu começo a imaginar todos os baianos com um estilo próximo ao meu. Eu sou do Recôncavo, mas já andei pelo estado inteiro e sei que há uma rica diversidade. Mesmo aqui dentro de Salvador, que é uma cidade, nem todos são iguais”, destaca.Apesar das ressalvas, o professor lembra que há um “tesouro de novidades” que a Bahia deu de presente ao mundo.GlossárioÁgua dura: beber muitoBaba: partida de futebolBater um feijão: fazer uma refeição, que pode inclusive ser feijãoBuzu: ÔnibusComer água: beber muitoMeu rei: expressão de afeto utilizada para se referir a outra pessoa, supostamente falada na BahiaRolar: acontecerTomar umas: mesmo que comer águaVéi: referência à pessoa com se conversaVeia: jeito carinhoso de falar da mãe>