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Escrevendo a própria história: as estratégias de Manuel Querino na Bahia pós-escravidão

Candomblé, gastronomia e arte foram temas pesquisados pelo intelectual para mostrar contribuição negra

  • Foto do(a) author(a) Ana Pereira
  • Ana Pereira

Publicado em 29 de março de 2021 às 11:00

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: Foto: Nara Gentil

Estudiosos de diferentes áreas têm mostrado a contribuição negra para o Brasil. Mas no início do século XX, apenas alguns anos após a abolição da escravidão no país e em pleno contexto de afirmação de teorias científicas racistas, encontrar intelectuais que nadassem contra a corrente era uma raridade. Ainda mais se fosse negro.

O baiano Manuel Querino (1821-1923) foi um deles e deve ter causado estranheza quando apresentou, no 5º Congresso Brasileiro de Geografia, realizado em 1916 em  Salvador, o trabalho A Raça Africana e Seus Costumes na Bahia. 

De acordo com o Dicionário de Belas Artes da Ufba, este foi o único estudo de conteúdo racial em meio aos trabalhos de geografia e história natural apresentados. E com ele, Manuel Querino intensificou, nos últimos anos de sua vida agitada, o objetivo de mostrar a importância da presença e da herança africana na Bahia. E também, numa ousadia à época, de defender que, com educação e mais possibilidades, a situação do negro seria outra.

Pesquisadora da obra de Querino, a inglesa Sabrina Gledhill  destaca os pontos que acha importantes no pensamento do baiano: “Sua visão da cultura e história africana e afro-brasileira foi de encontro com a ideologia que o negro fosse naturalmente inferior, que sua prole fosse infértil, sua cultura e religião (chamado de ‘culto feiticista’) nefastas e que, enfim, a raça negra no Brasil constituísse ‘sempre um dos fatores de nossa inferioridade como povo’, citando Nina Rodrigues”, explica Sabrina, autora do livro Travessia no Atlântico Negro – Reflexões sobre Booker T.Washington e Manuel R. Querino (Edufba/ 2020).

Sabrina, que conheceu o trabalho de Querino nos anos 80, afirma que ele “foi o primeiro intelectual afro-brasileiro a rejeitar e contestar essa ideologia através da publicação de livros baseados em trabalhos apresentados em dois congressos de geografia”.

Os trabalhos versavam sobre o Candomblé, os artistas negros, gastronomia, costumes e tradições. E foram publicados em artigos de jornais ou nas publicações do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia (IGHB), do qual Quirino foi um dos fundadores. 

Além dos estudos e pesquisas, as convicções de Querino vinham de sua própria história. Ele nasceu em Santo Amaro da Purificação, em 29 de julho de 1851, durante o Império,  e morreu em 14 de fevereiro de 1923 na Salvador republicana. Teve a vida atravessada pela epidemia de cólera, que matou seus pais, mudando o rumo de sua vida, já que ele foi criado e educado em Salvador pelo tutor Manuel Correia Garcia, um homem influente e de posses.  Manuel Querino, em retrato de 1933, pintado Hyppolito João Almeida para o Instituto Histórico e Geográfico da Bahia (Foto: Nara Gentil) Baianidade

Apesar do relativo prestígio em vida, a obra de Querino ainda segue pouco estudada e divulgada. Entre os trabalhos mais recentes sobre ele estão os livros de Sabrina e o da dupla dos pesquisadores Jeferson Bacelar e Carlos Alberto Dórea, que fazem uma análise de A Arte Culinária na Bahia, ambos lançados no ano passado. Publicado em 1928, cinco anos após a morte do autor, o manual de gastronomia se tornou sua obra mais conhecida.

Para o professor Jeferson, além de dar “visibilidade à importância do negro na formação da sociedade brasileira”, precedendo os estudos do sociólogo Gilberto Freyre em uma década, o pioneirismo de Querino “foi tornar o estudo da cozinha popular baiana um item básico da compreensão da nossa regionalidade”.

O manual reúne 21 receitas com alimentos “puramente africanos” e 30 com pratos integrados ao “sistema alimentar baiano”, segundo a divisão do autor.  Enquanto no primeiro estavam iguarias com arroz-de-huaça, acarajé, efó e caruru, por exemplo,  o segundo abria o leque para as moquecas, mocotó, sarapatel, feijoada, vatapá, maniçoba e afins.

“Querino tornou sua cozinha um componente fundamental do ‘mito da baianidade’, com suas baianas de acarajé, um dos seus pratos icônicos, junto com o vatapá e as moquecas fumegando de azeite”, reflete Jeferson, acrescentando que só não  passou pela cabeça dele que acabaria servindo para a mercantilização, pelo turismo, da cultura negra.  

Outra questão levantada por Querino, destaca Bacelar, é chamar atenção para  uma cozinha que se opunha aos produtos e ingredientes globais que já naquela época invadia a cidade e indignava o pesquisador – que puxava mesmo a brasa para nossa sardinha.

“É notório, pois, que a Bahia encerra a superioridade, a excelência, a primazia na arte culinária do país, pois que o elemento africano, com a sua condimentação requintada de exóticos adubos, alterou profundamente as iguarias portuguesas, resultando daí um produto todo nacional, saboroso, agradável ao paladar mais exigente”, anotou.  Homenagem do Esporte Clube Bahia incluiu Manuel Querino na lista de personalidades negras (Foto: divulgação) 170 anos 

Um dos estudiosos que têm feito um esforço para divulgar a obra de Manuel Quirino é o historiador Jaime Nascimento. Ele se define mais como fã do baiano do que como pesquisador. Jaime conta que chegou aos textos de Quirino nos anos 90, quando fazia sua monografia em História sobre o Teatro São João e encontrou um texto dele sobre o Pano de Boca (a cortina que escondia o palco) do então mais importante teatro da cidade.

De lá pra cá, vem fazendo articulações, organizando seminários, cursos e publicações de e sobre Querino. Em 2009, através do Instituto Histórico e Geográfico, coordenou a publicação de uma coletânea com textos dele publicados em diferentes edições da Revista do IHGB e que pode ser consultado no site da instituição. 

Para este ano, quando o santoamarense completa 170 anos de nascimento, a expectativa é conseguir apoios e parcerias para reeditar os 11 livros deixados por ele, com sua variada produção.   “Querino fez uma grande contribuição para a sociedade. Era negro, nasceu livre, mas sofreu todo tipo de preconceito. Foi salvo, literalmente, pela educação”, diz Jaime, referindo-se à passagem na vida do baiano, aos 17 anos, no Rio de Janeiro, quando ele foi forçado a se alistar e ia ser mandado à Guerra do Paraguai. Foi poupado quando descobriram que ele era um preto letrado. “Depois disso ele deu muito mais valor à educação, que passa a ser um fio condutor em sua  vida, ao lado da valorização do negro”.

De volta a Salvador, Querino esteve ligado à educação no Liceu de Artes e Ofícios e na Escola de Belas Artes, entrou para os movimentos abolicionista e operário, foi Ogã da Casa Branca, membro Sociedade da Protetora dos Desvalidos, Conselheiro Municipal (o equivalente ao vereador dos nossos dias), e ainda presidiu o afoxé carnavalesco Pândegos da D'África. “Ele tinha uma aflição muito grande, precisava falar sobre todas estas coisas”, resume Jaime.  

Não por acaso, Jorge Amado, com olhar apurado, se inspirou em Querino para criar Pedro Archanjo, um de seus heróis mais cativantes, do livro Tenda dos Milagres (1969). No romance, vemos Archanjo circulando entre a elite da Faculdade de Medicina, enfrentando os teóricos do racismo científico, apoiando as manifestações populares ou todo reverente dentro do Candomblé.

Não é difícil imaginar Querino neste mesmo roteiro e lutando para escrever, de próprio punho, sua versão da história negra na Bahia e no Brasil.

  Capa da nova edição do manual grantronômico de Manuel Querino, assinada pela artista visual Ju Rabinovich (Foto: divulgação) Livro A Arte Culinária na Bahia será lançado em e-book gratuito

Em 2002, através do selo do Theatro XVIII, a dramaturga e pesquisadora Aninha Franco publicou uma edição a preço popular de A Arte Culinária na Bahia, o precioso guia de Manuel Quirino pelas delícias da culinária baiana.

Apesar da fama e de ser “o primeiro registro baiano de  gastronomia”, o livro estava fora de catálogo há 50 anos. “As pessoas estavam fazendo loucuras com as receitas, muitas estavam em extinção e outras só eram encontradas nos terreiros de Candomblé. Precisamos urgentemente resgatá-las”, diz Aninha.

Ela mesma, conta orgulhosa, depois de descobri-lo, já não usa mais leite de coco em nenhum dos famosos pratos da culinária baiana. “Nem no vatapá nem na moqueca”, exemplifica. Para o leitor que está todo se bulindo e achando que sem leite de coco não dá, vale conferir o modo de fazer anotado com capricho por Querino em suas andanças pela Velha Bahia, muito antes de modernidades como liquidificador e fogão a gás na cozinha.

E a boa notícia é que a República–AF vai lançar, no próximo mês, por seu novo selo, o Nação Fulejo, o e-book gratuito de A Arte Culinária na Bahia. A publicação, explica Aninha, integra a coleção Auto Conhecimento e faz parte de um projeto que vai trazer de volta dez títulos que já estão em domínio público - a maioria do Brasil Colônia -  disponibilizados na Amazon. Todos gratuitos.

Alguns livros são de outros períodos, como o manual gastronômico de Querino e O Teatro na Bahia Através da Imprensa – resultado de detalhada pesquisa realizada por  Aninha Franco.

PARA LER QUERINO Livro: A Raça Africana e Seus Costumes na Bahia (2013)Autor: Manuel Querino Editora: P55 (100 páginas, R$ 20)/ p55.com.br

Apresentado em 1916, no 5 º Congresso Brasileiro de Geografia, em Salvador, o artigo foi o único estudo de conteúdo racial do encontro. Manuel Querino descreveu os costumes africanos no candomblé, nas festividades, na vida cotidiana, como funerais e casamentos, e em eventos históricos como a Revolta de dos Males (1835), mostrando a importância do trabalhador negro na formação da sociedade brasileira.

Livro: Manuel Querino – Criador da Culinária Popular BaianaAutores: Jeferson Bacelar e Carlos Alberto DóreaEditora: P55 (252 páginas, R$ 25)/ p55.com.br

Os autores fazem uma análise sobre o clássico A Arte Culinária na Bahia, livro póstumo de Manuel Querino, publicado em 1928, cinco após sua morte. E traz todas as 51 receitas reunidas por Querino, considerado o pioneiro nos estudos da antropologia culinária no país. A Frente Negra baiana já na década de 30 do século XX prestava homenagens a Manuel Querino. Hoje, já mais conhecido, sobretudo pelo trabalho de Jaime Nascimento e Sabrina Gledhill, que levou seu nome a plagas internacionais, indica a importância de homenageá-lo. Se o interesse é na vida cultural baiana, nos finais do século XIX, eu indicaria A Bahia de Outrora; se na questão do negro: A Raça Africana e seus Costumes na Bahia; na comida popular baiana: A Arte Culinária na Bahia.  Jeferson Bacelar  Livro: Travessias no Atlântico Negro – Reflexões Sobre Booker T.Washington e Manuel R. Querino (2020)Autora: Sabrina GledhillEditora: Edufba (300 páginas, R$ 45)/ www.estantevirtual.com.br/editora-universitaria

O livro analisa as trajetórias e estratégias do americano Booker T. Washington e de Manuel Querino para enfrentar o racismo, dentro do contexto do Atlântico Negro. Depois de apresentar e traçar as interconexões entre suas realidades, a obra apresenta seus percursos durante a vida e após a morte.   A obra de Querino é uma fonte valiosa para pesquisadores e interessados pela história e cultura da Bahia - abrange a história da arte, biografias de negros ilustres, o Quilombo dos Palmares, a culinária baiana, vários costumes e tradições, como as festas do Bonfim e Yemanjá, capoeira, bailes pastoris, até o desenho geométrico (ele era professor de desenho geométrico formado pela Escola de Belas Artes e escreveu dois livros didáticos sobre essa disciplina). Eu começaria com Manuel R. Querino: Seus artigos na Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, organizado por Jaime Nascimento e Hugo Gama (Salvador: IGHB, 2009). É um livro que abrange todos os aspectos do trabalho de Querino. Depois, o leitor pode escolher e seguir o caminho que mais lhe interessa (ou todos, porque não?) Sabrina GledhillO Aniversário de Salvador é uma realização do jornal Correio com o patrocínio da Wilson Sons, Jotagê e CF Refrigeração e o apoio da Sotero, Salvador Shopping, Salvador Norte Shopping, JVF e AJL.