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Da Redação
Publicado em 4 de agosto de 2013 às 10:20
- Atualizado há 2 anos
Doris [email protected]>
Parecia praticamente impossível naqueles atrasados anos de 1950 alguém querer modernizar a Bahia. Bater de frente contra o pensamento dominante das elites conservadoras? O Visconde de Cayru (1756-1835) e sua patota até já tinham tentado nas primeiras décadas do século XIX. Mas foi Edgard Santos (1894-1962), esse senhor alinhado abaixo, quem conseguiu, enfim, ajustar o relógio baiano pelos ponteiros do mundo depois de uma série de feitos empreendedores em Salvador. Médico de formação, Edgard Santos dedicou sua trajetória à educação e à cultura com a implantação da Ufba>
“Edgard, com todos os seus erros e todos os seus acertos (muito mais acertos que erros), nunca teve medo da ousadia nem da grandeza. Pelo contrário: dispôs-se a cultivá-las. E esta é uma lição de que muito precisamos hoje”, avalia o pesquisador Antonio Risério, 60 anos, no prefácio do seu novo livro, Edgard Santos e a Reinvenção da Bahia (Versal/R$ 55), que será lançado nesta quinta-feira, às 20h, no Museu de Arte Sacra, no Centro.>
Não é, de forma alguma, uma biografia convencional, como se espera, cobrindo infância, juventude, maturidade e velhice. Não por falta de interesse nos períodos obscuros do início da vida de Edgard, mas por ausência de informações disponíveis, Risério construiu, isso sim, uma obra em que os feitos de seu personagem prevalecem. E não foram poucos.>
Ufba O primeiro de todos e, certamente, o mais importante por facilitar o movimento de atualização econômica, técnica e cultural que viria a seguir no estado, foi a criação da Universidade Federal da Bahia (Ufba), em 2 de julho de 1946, dia em que se deu o ato inaugural no Salão Nobre da Faculdade de Medicina.>
“Ninguém vai entender esse processo, se não entender uma coisa elementar, central no pensamento do reitor: para ele, a universidade era, naquele momento, a via de afirmação por excelência da Bahia no horizonte nacional. Edgard estava fazendo uma obra política. Participando da construção de uma nova realidade baiana”, explica o autor, que também escreveu Caymmi: Uma Utopia de Lugar (1993), Oriki Orixá (1996) e Uma História da Cidade da Bahia (2004).>
Risério já tinha pesquisado essa época específica antes, para a realização da tese de mestrado em sociologia, na qual investigava o período de brilhantismo pelo qual passou a Bahia durante a gestão do primeiro reitor da Ufba. O resultado está no livro Avant-Garde na Bahia (1995), amplamente citado nesta biografia. >
Nascido em família de advogados ilustres e conservadores (ele próprio incluído no conceito), Edgard preferiu ser médico. Mais do que isso, optou em ser um reformador. Não um ‘criador’ puro simples. Como o cirurgião-geral que era, conferia organicidade a suas ações. Não à toa, a universidade, em seus tempos áureos, interagia com a cidade de forma tão natural.>
brilhantismo O que se queria afinal? Quem definiu bem foi Glauber Rocha (1939-1981), um tanto mais à frente desse tempo: a questão era “derrotar a província na própria província”. Assim, Edgard Santos reuniu um time de excelência, que poderia contribuir na prática para a tal reinvenção da Bahia, entre eles os seminais Koellreutter (1915-2005), Martim Gonçalves (1919-1973), Yanka Rudzka (1916-2008) e Lina Bo Bardi (1914-1992), que tocaram, respectivamente, as escolas de Música, de Teatro e Dança da Ufba, e o Museu de Arte Moderna (MAM-BA). >
Outras feras meteram o dedo naquele rico caldo, é claro, e também deixaram sua marca: Ernst Widmer (1927-1990), Carybé (1911-1997), Pierre Verger (1902-1996), Mario Cravo Jr., Milton Santos (1926-2001), Walter da Silveira (1915-1970), Anton Smetak (1913-1984), Clarival do Prado Valladares (1918-1983) e Vivaldo Costa Lima (1925-2010).>
Todos preparando terreno para a geração posterior, que transformaria para sempre o cenário vigente, composta por Rubem Valentim (1922-1991), Elsimar Coutinho, Glauber Rocha (1939-1981), Tom Zé, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Wally Salomão (1943-2003), João Ubaldo Ribeiro, Rogério Duarte e Capinan. A intenção era clara: educar culturalmente a população. >
“Quando Edgard entrou em ação, para criar a universidade, a Bahia se achava inteiramente paralisada. Sua ação se inscreve em cheio no horizonte getulista. Nacionalismo, progresso cultural e modernização tecnológica são peças fundamentais do seu discurso”, explica Risério.>
Visionário, precursor, vanguardista, futurista, criador. São inúmeros os adjetivos creditados a Edgard Santos. Outros tantos saltam à ponta da língua quando se visualiza a imensa lista de seus feitos. Do Hospital das Clínicas à Ufba, incorporando aí suas diversas unidades, do Museu de Arte Sacra à Orquestra Sinfônica da Bahia. De tudo fez este mecenas controverso, espécie de príncipe renascentista que trouxe um tanto mais de luz para onde só havia sombras.>
‘Já fomos bem mais cultos, mais chiques’>
Sua vida era seu projeto. É assim, mesclando o fazer com o ser de seu objeto de estudo, que o pesquisador Antonio Risério, 60, explica não ter se amarrado numa biografia convencional de Edgard Santos. Nas quase 500 páginas que compõem o livro sobre o baiano revolucionário, ele traça, isso sim, um articulado painel sobre seu espírito empreendedor. Em entrevista, Risério defende que Edgard “cultivou abertamente a grandeza e a inovação”. Confira a seguir.Antonio Risério se debruçou sobre o período de implantação da Ufba para produzir biografia de Edgard Santos>
Muito se fala que a cultura da Bahia tem dois tempos: um antes de Edgard Santos e outro posterior. Em que sentido ele reinventou a Bahia, pode explicar para as novas gerações? >
Ele promoveu uma reinvenção da Bahia num sentido ao mesmo tempo abrangente e preciso. Sua geração – com destaque para Anísio Teixeira, Rômulo Almeida e Clemente Mariani – não aceitava o atraso em que vivíamos. Era uma elite estratégica, modernizante. Edgard investiu então na dupla educação/cultura. Na retomada de uma tradição de originalidade, que nos vinha de Gregório de Mattos e Antonio Vieira, dos tempos do barroco, linguagem internacional de ponta em nossos dias coloniais.>
Como você enxerga a Bahia hoje? >
Já fomos bem mais cultos, informados, chiques, ousados e criativos. Hoje, Salvador é principalmente um lugar provinciano e muito mal-educado. Volto a falar de Edgard Santos porque, como sempre digo, ele cultivou abertamente a grandeza e a inovação. Devemos nos alimentar de seu exemplo.>
Enquanto reitor da Ufba, Edgard trouxe para a universidade grandes cabeças de fora, como Koellreuter, Agostinho da Silva e Martim Gonçalves. Os novos estudantes ainda percebem e vivenciam este legado?>
O legado de Edgard é, no essencial, o da informação de ponta e da invenção estético-cultural. Não sei como os estudantes de hoje, quase tão desinformados quanto seus professores, o percebem. Mas isso não é importante, já que muitos que o aplaudem hoje o teriam vaiado em sua época. Temos de pensar essa herança em termos sempre subversivos e transgressores.>
Caetano Veloso diz que o que aconteceu na Bahia do final dos anos 50 ao início dos 60 ainda é pouco conhecido, embora determinante para a recente história da cultura brasileira. E que a universidade tão presente na vida da cidade proporcionava um certo deslumbramento – nele próprio, inclusive. Você acha que é possível resgatar esse espírito vanguardista?>
Espero que sim. Ao mesmo tempo, toda cidade e toda cultura têm seus próprios ritmos. O fato é que praticamente deixamos de ser a terra de Glauber Rocha e Caetano Veloso para ser a terra de Nizan Guanaes e Ivete Sangalo. >
Edgard Santos, porém, não atuou somente como reitor. Poderia falar também sobre o Edgard Santos político? Em que eixo se enquadrava naquele Brasil das décadas de 50/60?>
Edgard foi filho de sua época, claro. Do tenentismo, da Revolução de 1930, do getulismo. Integrou um movimento de modernização do Brasil, da perspectiva do nacionalismo autoritário. Ele chegou a ser ministro no governo de Getúlio. Era da linha de frente dos que queriam que a gente desse um salto de modernidade. Mas nunca teve nada a ver com a esquerda, a não ser no terreno das amizades e de algumas admirações pessoais.>
Você acha que ACM, mesmo guardando suas raízes conservadoras, também foi influenciado por essa capacidade de reinventar a Bahia?>
Antonio Carlos foi cria de Edgard, que sempre gostou muito dele. É interessante, porque Edgard produziu rebentos que conduziram a Bahia durante muito tempo: Antonio Carlos e Roberto Santos. Quando Antonio Carlos dizia que o governador da Bahia não precisava ser um intelectual, mas tinha de colocar a cultura em primeiro lugar, falava como cria de Edgard. Enfatizando, aliás, uma lição que hoje está esquecida, desde que temos atualmente um governo que não tem a menor noção do que é cultura.>
Houve uma certa resistência da Salvador provinciana à mentalidade inovadora de Edgard?>
Muita, muita resistência. Teve gente que fez de tudo para tentar bloquear a nossa construção universitária original, porque sentia que perderia prestígio e cargos. Eram os mandarins culturais da província combatendo Agostinho da Silva, Lina Bo Bardi, Martim Gonçalves, etc. Mesmo os estudantes esquerdistas foram tremendamente reacionários, colocando-se contra Edgard com o argumento de que ele favorecia demais as criações no campo da cultura.>
O que acha do processo de carnavalização da cultura baiana, implementado há cerca de três décadas? >
De alguns anos para cá, sempre que me falam de Carnaval, prefiro ler e reler os pensadores pré-socráticos...>