Noite de terror: moradores de Sussuarana relatam pânico em madrugada de tiroteio

Bairro foi palco de uma briga de facções; em suas casas, inocentes ficaram deitados no chão

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  • Bruno Wendel

Publicado em 30 de junho de 2020 às 18:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Marina Silva/CORREIO

Os assobios das balas de fuzil perfuravam o silêncio no céu do bairro de Sussuarana. Ao mesmo tempo, outros projéteis encontravam carros, janelas e portas por volta das 3h30 desta terça-feira (30). Temendo que as paredes não suportassem o arsenal de duas facções que disputam o controle do tráfico de drogas no Parque Jocélia, cada uma com cerca de pelo menos 20 homens, moradores permaneceram deitados no chão por quase uma hora. Foi uma madrugada de terror. A certeza de que o perigo havia passado só veio com o raiar do dia. “As pessoas só saíram de suas casas meia hora depois que um dos grupos disse: ‘joga a granada pra poder se retirar que o dia está amanhecendo’. Estamos aterrorizados. Tem gente aqui que está abandonado sua casa e indo às pressas morar com parentes ou indo pagar aluguel. Suplicamos por ajuda”, disse um morador entrevistado pelo CORREIO.

O retrato da madrugada de terror vai além dos traumas psicológicos. Segundo os moradores, pelo menos 10 carros foram atingidos pelos disparos – em um deles, há marcas de 15 perfurações.

Sobre as declarações dos moradores, o coronel Paulo Coutinho, comandante do Policiamento da Região Central da Polícia Militar, diz que o que ocorreu no Parque Jocélia foi uma “situação pontual” entre as fações Bonde do Maluco (BDM e a Tropa do A.

“Foram muitas ações da PM no local. Houve uma situação pontual na madrugada. O policiamento estava no bairro, mas eles (criminosos) aproveitaram um momento em que as viaturas precisaram sair do Parque Jocélia. Eles têm informantes. Houve um conflito do BDM com a Tropa A. Mas a PM está para fazer a mediação e o enfrentamento, se necessário, para dar a paz à sociedade”, declarou o coronel.  Marcas do BDM estão espalhadas pelo bairro (Foto: Marina Silva/CORREIO) Em nota, a Polícia Militar informou que o policiamento na região do Parque Jocélia, em Sussuarana, está intensificado pela 48ª Companhia Independente da PM (CIPM/Sussuarana) e pela Companhia Independente de Policiamento Tático (CIPT)/Rondesp Central, após a unidade ter sido acionada por volta das 3h30 da madrugada desta terça-feira (30) com a informação de troca de tiros entre traficantes na localidade. "Guarnições da 48ª e da Rondesp Central foram encaminhadas imediatamente para o local onde foram recebidas a tiros e houve confronto, mas nenhum criminoso foi preso, devido à localidade de mata", disse por meio de nota.

Essa não é só uma realidade de Sussuarana. No último domingo, o bairro do Engenho Velho da Federação também viveu uma noite de terror por disputa de território entre traficantes.

“Isso está acontecendo por causa da saída do pessoal do presídio nessa pademia. Muitos que estavam presos e foram soltos agora querem recuperar o cenário perdido. É a briga para domínio do território. Prepara um grupo para retomar o espaço.  A gente não é onipresente e esses caras aproveitam meia hora que a polícia não está no local e fazem isso”, declarou o coronel Humberto Sturaro, comandante de Operações da PM.  Carros amanheceram cheios de marcas de tiro (Foto: Marina Silva/CORREIO) Tiroteiro O tráfico no local era comandado por um homem conhecido pelo apelido de Picolé – ele é sobrinho do antigo dono da boca-de-fumo do Parque Jocélia, o Fantasma (veja história abaixo). Ao assumir a liderança, Picolé rompeu com traficantes que forneciam droga para a boca. “Ele tinha que vender a droga dele e dos outros. Então, ele rompeu há quatro meses com esses caras e se associou ao BDM. Ele não tinha equipe para enfrentar os grupos que forneciam droga da Mata Escura e foi, aos poucos, matando os rivais no Parque Jocélia. Teve uma época que eram duas mortes por dia”, contou um morador.  

Na madrugada deste domingo, Picolé e aliados tomaram o Parque Jocélia, mas a comemoração não durou muito. Por volta das 17h do mesmo dia, a Tropa do A voltou em número maior de 'soldados' e expulsou Picolé e o BDM da área.  Moradores relataram que a Tropa do A não esperava um novo ataque e, por isso, não reforçou a defesa no local.

Ciente da fragilidade do grupo rival, Picolé, que é nascido e criado na região, não hesitou e levou um grupo de mais de 20 integrantes do BDM para a Rua Botafogo, a principal que dá acesso à boca-de-fumo no Parque Jocélia. “Estavam lá desde 20h de ontem, com mais de 20 homens armados, com coletes a prova de balas, desses usados pela Polícia Civil. Eles estavam todos padronizados, com calças, botas e armas pesadas”, detalhou o morador. 

A Tropa do A, que logo tomou ciência dos invasores, também se fortaleceu de armas e soldados e seguiu com o seu bonde para Sussuarana. O tiroteio começou por volta das 3h30. Picolé e o BDM permaneceram na Rua do Botafogo, enquanto a Tropa do A se estabeleceu na Rua da Independência, que é a principal do bairro. Os grupos não se cruzaram, mas demostraram o que eram capazes.

“Foi aproximadamente uma hora de tiro, de terror. Todo mundo deitado no chão porque as paredes, portas e janelas, podiam ser atravessadas pelas balas de fuzil. Dez carros tiveram vidros estourados por causas dos tiros e tiveram que ser cobertos com plásticos para que a água da chuva não piorasse ainda mais a situação dos donos. Tem gente aqui está tão apavorada que nem quer sair de casa, porque acha que eles vão atacar a qualquer momento”, disse um morador ao CORREIO.

Fantasma Os conflitos no Parque Jocélia começaram no Carnaval do ano passado, com a morte do então dono da boca Luís Henrique, o Fantasma. Indo na contramão de outras regiões de Salvador dominadas por facções, ele agia de forma independente. Comprava drogas de organizações criminosas, mas não se aliava a elas. Tinha total controle da boca que lhe rendeu muito dinheiro, inclusive para comprar um apartamento de luxuoso no bairro da Barra. 

A rentabilidade chamou também a atenção de policiais. “Semanas antes do Carnaval ele foi baleado por PMs que tentaram, como sempre, extorquí-lo. Ele pagava à polícia para não circularem no Parque. Assim, não havia operações e as pessoas podiam comprar as drogas sem correr o risco de serem abordadas. Sequestros de parentes dele eram forjados por PMs para tirar mais dinheiro. Quando ele descobriu tudo, parou de dar dinheiro e acabou sendo baleado pelos policiais”, contou um morador do bairro ao CORREIO. 

Ferido, Fantasma foi para o seu apartamento na Barra. De lá, não saia para nada, até receber uma ligação de seus comparsas para um encontro na BR-324, na altura da Jaqueira do Carneiro. O que ele não contava é que havia sido atraído para uma emboscada.

“As pessoas em quem ele confiava já estavam de olho na boca e se juntaram para matá-lo. Foram três que atiraram nele, entre eles um que passava todas as informações da família de Fantasma para os policiais forjarem os sequestros”, contou a fonte.   No dia seguinte, o trio que matou Fantasma foi morto pelo sobrinho dele, Picolé, que assumia, na ocasião, o controle de tudo.