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A prefeitura demoliu parte de obra de cinco andares que ameaça o local
Da Redação
Publicado em 3 de abril de 2023 às 09:48
- Atualizado há um ano
O Ilê Axé Iyá Nassô Oká, mais conhecido como Terreiro da Casa Branca, já soma 40 denúncias de invasões ao seu território nos últimos 23 anos. Situado no Engenho Velho da Federação, o terreiro têm séculos de história e é a casa de candomblé mais antiga do Brasil. A Casa Branca, que é também o primeiro terreiro de candomblé tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional como Patrimônio Cultural Brasileiro, teve lavrados pelo próprio Iphan, 33 autos de infração pelas invasões, do ano 2000 para cá.
“Desde o ano 2000, a casa oficia ao Iphan a existência de obras irregulares no entorno do terreno. Ao longo desse tempo, o órgão confeccionou 33 autos de infração constatando os fatos”, enfatiza a advogada Isaura Genoveva, que é também ekedi do terreiro. Ekedi é o nome que se dá, nos terreiros de nação Ketu (iorubas) para as ‘zeladoras dos orixás’, ou seja, para as mulheres que cuidam dos orixás quando incorporados.
Isaura participou de uma entrevista coletiva, ontem, para expor a situação. Na última sexta-feira (31), a prefeitura de Salvador embargou uma obra irregular vizinha, de um imóvel de cinco andares que estava invadindo o território onde os filhos e filhas da Casa Branca cultuam os seus deuses e deusas.
"Já está com cinco andares, desafiando autoridades. Construção segue sem qualquer acompanhamento técnico e isso só aumenta os riscos. Ao desabar, e os riscos de isso acontecer são óbvios, destruirá a Casa Sagrada do Orixá Omolu e matará filhas e filhos de santo da Casa Branca", diz o texto publicado no Instagram do terreiro.
A reportagem tentou, sem sucesso, ter acesso à descrição dos casos citados pela advogada e ekedi Isaura Genoveva, porém, antes mesmo desses episódios, aconteceu uma invasão da parte frontal do território do terreiro por um posto de gasolina. Na época, a Casa Branca não possuía a escritura do local e precisou entrar com uma ação na Justiça.
“Houve, no passado, um posto de gasolina que invadia a área frontal e a comunidade conseguiu retirá-lo e implantar a Praça de Oxum, que está preservada até hoje”, contou Genovena sobre o espaço inaugurado em 1993 e que foi projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, um dos criadores do plano piloto da capital federal, Brasília.
A assinatura ilustre no projeto se justifica na própria importância da Casa Branca, ainda o primeiro terreiro de candomblé a ser inscrito nos livros do Tombo Histórico e Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, em 1984. Além disso, é considerado um exemplar típico do modelo básico jeje-nagô e foi fundado na primeira metade do século XIX, em1830, sendo mantido pela Associação São Jorge do Engenho Velho.
Aguardando providências
Após o embargo da obra, a Casa Branca aguarda os encaminhamentos jurídicos resultantes da ocorrência, afirmou Isaura Genoveva. Segundo a advogada, a comunidade tem acompanhado a situação pelas redes sociais, porém não recebeu notificação formal por parte da prefeitura. “Nós acompanhamos pelas redes sociais que a prefeitura embargou a obra novamente e que foi demolido o último pavimento e recolhido o material, mas a Casa não recebeu nenhuma notificação oficial sobre isso, nem do Iphan e nem da prefeitura”, queixou-se Genoveva.
“A Casa aguarda o retorno para saber se tem risco ou não de desabamento e de invadir o espaço sagrado do território. Os órgãos públicos, como o Iphan, é que dizem o que está acontecendo e o que põe em risco a comunidade”, acrescentou ela, que espera “a melhor solução possível para a Casa Branca e para toda a comunidade”.
Ainda de acordo com a ekedi do terreiro, o Ministério Público estadual (MP-BA) foi acionado formalmente em 2021. Com isso, um inquérito civil público chegou a ser instaurado para investigar o caso, mas não há informações sobre seu andamento.
Procurado pela reportagem, o MP, assim como o Iphan, não deu retorno até a publicação dessa reportagem.
Visita do Crea Diante da repercussão, o presidente do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia da Bahia (Crea-BA), Joseval Carqueija, resolveu visitar o centro religioso na sexta-feira, acompanhado pelo coordenador de fiscalização Marcos Bezerra e pelo supervisor Marcelo Gomes. Durante a visita, foi confirmada a inexistência de profissional responsável pela execução da obra. “Viemos verificar de perto a situação, pois, embora o Crea seja responsável por fiscalização do exercício profissional, podemos e devemos atuar em parceria aos demais órgãos públicos em situações como essa. Enviaremos as informações ao Ministério Público, para que as devidas providências sejam tomadas”, declarou o presidente.
Perdas sem dimensão Sem ter dimensão da área total perdida pela Casa Branca em decorrência de invasões, Isaura Genoveva disse que seria necessária a atuação do Iphan. “A gente tem um registro da planta, da época do tombamento, e precisa, agora, que o Iphan elabore um laudo técnico que dimensione quanto a gente perdeu território, para saber o que é possível fazer para reintegrar essa área ao terreiro”, justificou.
Presente na entrevista coletiva, o padre Lázaro Muniz, da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e membro do Conselho Inter-religioso da Bahia reiterou a necessidade de proteger os espaços pertencentes a religiões de matriz africana. “O Terreiro da Casa Branca é um desses espaços sagrados de grande importância para a Bahia e o Brasil e deve ser preservado. Não só porque é tombado mas também por, antes de tudo, ser um espaço onde uma comunidade religiosa se congrega”, observou Muniz.
O doutor em Antropologia Ordep Serra, que é também ogã da Casa Branca, classificou o episódio mais recente como ‘agressão monstruosa’. “Só tem um jeito: demolição total, já!”, exclamou ele. “O Iphan precisa tomar medidas judiciais sérias, porque esse é o primeiro monumento negro tombado no Brasil. Ele antecedeu o tombamento da Serra da Barriga”, enfatizou.