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As escolhas que definem uma época

Leia coluna de Paulo Sales

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 17 de junho de 2025 às 11:13

Numa crônica escrita em 1968, Natalia Ginzburg escreveu: “Agora estamos nos tornando o que jamais quisemos nos tornar, isto é, velhos. O mundo que gira e se transforma ao nosso redor conserva apenas alguns pálidos traços daquele que foi o nosso mundo. O mundo que temos diante de nós e que nos parece inabitável será, contudo, habitado e talvez amado por algumas das criaturas que amamos. E uma coisa que ainda nos surpreende, nós que agora somos cada vez mais raramente tomados de espanto: ver como os nossos filhos conseguem habitar e decifrar o presente.”

Natalia tinha 52 anos quando escreveu essa crônica. Distante, portanto, do que poderia representar uma idade provecta. É possível que estivesse vivendo o processo de “envelhescência”, como bem definiu certa vez Mario Prata. Há, evidentemente, uma questão geracional aí. No final da década de 60, os cinquentões deviam se sentir beirando a senilidade. O mundo, naquele momento, tinha sido tomado de assalto pelos valores juvenis: o rock, o sexo livre, a era hippie, as revoltas estudantis, os cabelos grandes nos homens e curtos nas mulheres. Hoje, aturamos a baboseira de que os 50 são os novos 40.

Mas há algo a ser levado em conta quando se trata de Natalia Ginzburg e de pessoas que, como ela, tiveram a infância e a juventude confiscadas pela Grande História. Nascida em 1916, dois anos após o fim da Primeira Guerra, a autora italiana cresceu sob o signo do fascismo. Testemunhou a ascensão e a derrocada de Mussolini e, acima de tudo, o horror da guerra, a mais brutal de todas. Na condição de judia, precisou se esconder e fugir em diversos momentos com seus filhos. Em suma, ela viveu muitas vidas em uma só. Ninguém chega incólume aos 52 anos sob essas condições.

Pouco mais velho que Natalia Ginzburg quando escreveu sua crônica, comungo com ela a perplexidade diante do que contemplo hoje: o regressar a passos largos ao mundo de ontem. Um mundo que não consigo decifrar. Eu, que cresci acompanhando a redemocratização do meu país e a consolidação das democracias liberais, me espanto com a ressurreição do que parecia sepultado. O histrionismo, o despudor, a ausência de escrúpulos, o apreço à mentira, tudo parece tão velho e ao mesmo tempo tão atual, como se passado e presente habitassem um mesmo espaço-tempo.

Retirei o trecho da crônica de Natalia Ginzburg do livro A Melhor Época da Nossa Vida, escrito por outro italiano, Antonio Scurati. É um portento de realização memorialística, que mostra cidadãos em tese livres e donos do próprio destino como títeres de um Leviatã impiedoso que os estrangula, deglute e descarta. Nele, Scurati reconstitui a vida breve e intensa de Leone Ginzburg, marido de Natalia e pai de três dos seus filhos. Dotado de uma integridade moral e um estoicismo renitentes, Leone se foi aos 34 anos, em 1943, depois de ser torturado numa prisão na Alemanha nazista.

É provável que o destino de Leone tenha sido selado uma década antes, em consequência de um ato heroico de desobediência civil. Em 1934, ele perdeu o cargo de professor de literatura na Universidade de Turim por se recusar a jurar fidelidade ao regime fascista. Essa decisão o colocou no caminho do ostracismo e da resistência ao totalitarismo. Não era um homem de ação, apto a pegar em armas, mas sim um homem de letras, intelectual refinado, cuja obsessão era se tornar um propagador da alta literatura mundial na Itália.

A questão fundamental que se coloca é: de que lhe valeram essas convicções? Até que ponto um homem pode abdicar da própria vida em nome do que pensa ser certo? Leone Ginzburg enfrentou com destemor e impetuosidade os infortúnios de um tempo muito mais áspero que o nosso. Essas escolhas morais definem uma vida e uma época, embora talvez não houvesse alternativa, a não ser a pusilanimidade e a covardia. Mesmo estas são compreensíveis quando se está à mercê do pavor ou de um fuzil. As guerras apequenam as pessoas. Mas nelas surgem os heróis, anônimos ou não. Leone foi um deles. Natalia também.