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Paulo Sales
Publicado em 18 de maio de 2025 às 05:00
Nunca fiquei tanto tempo sem dar as caras por aqui. São 40 dias desde a última crônica até esta noite, quando volto a escrever – e provavelmente ninguém deu por minha falta. Durante esse período, cheguei a rascunhar trechos para possíveis artigos, mas o correr exaustivo dos dias acabou por transformá-los em entulho: palavras imprestáveis, frases desbotadas, reflexões emboloradas. Os temas se aproximavam e escapavam feito andorinhas, sem que eu esboçasse disposição para aprisioná-los. >
Houve momentos nas últimas semanas em que me senti como um touro vencido pelas estocadas de um toureiro imaginário. Muitas manhãs acompanhando minha mãe em mais uma internação. No quarto do hospital fazia sempre 21º e o sol não entrava. Numa dessas manhãs, o excelente infectologista que atendeu minha mãe me confessou sua perplexidade diante de pessoas que largavam familiares no hospital e não apareciam mais lá. Ele se referia a um senhor com demência, desorientado e assustado, num quarto próximo. “O que esse pai fez para merecer esse tratamento?”, indagava.>
Em outra manhã, conversei com uma técnica de enfermagem que relembrou os tempos de pandemia, quando ela esteve na linha de frente. Viu gente intubada, gente morrendo por falta de vacina, pessoas sozinhas sem poder se despedir dos parentes, caos e medo disseminados nos corredores e nas UTIs. Era uma moça doce e simpática, que saiu do inferno mantendo a leveza e se tornou amiga de quem ajudou a salvar.>
Os dias no hospital tiveram a companhia silenciosa do livro O Retalho, escrito pelo jornalista francês Philippe Lançon. Em janeiro de 2015, ele teve a mandíbula arrancada por uma bala de fuzil no atentado terrorista ao jornal satírico Charlie Hebdo. A partir daí, seguiram-se meses até que pudesse reconstituir em parte a boca e o queixo dilacerados e levar uma vida minimamente normal. Esse processo é narrado sem qualquer autocomplacência, descrevendo cada etapa da recuperação. Um relato duro e destemido, que me ajudou a enfrentar eventuais picos de desesperança.>
No breve hiato em que minhas crônicas estiveram fora de combate, acompanhei com enorme fastio o festival de besteira que assola o país e o mundo: da tal camisa vermelha da seleção aos bebês de brinquedo hiper-realistas. Tudo vira notícia, todos se sentem no direito de opinar e polemizar. Eu prefiro o silêncio. Também nesse intervalo o Brasil perdeu Nana, os católicos perderam o papa e a humanidade perdeu Pepe. Um homem fora do seu tempo, com ideais que desvelavam uma alteridade genuína e sem afetação. Guardarei dele, entre tantas outras, a frase: “A vida não é só trabalhar. Tem que deixar um bom capítulo para as loucuras que cada um tem.”>
Agora estou na varanda de casa. Relaxo com goles de vinho, contemplo a lua minguante e escuto Clifford Brown, meu trompetista preferido. Mais do que Miles, mais do que Morgan. Um rapaz negro que deixou o mundo aos 25 anos num acidente de automóvel. Ouço seu fraseado elegante e imagino o quanto ele ficaria surpreso se soubesse que em 2025, quase 70 anos após seu fim, um homem no Brasil estaria se comovendo com a nobreza e a sofisticação da sua música. Dizem que era um sujeito generoso e boa praça, o que não duvido. Seu jeito de tocar era de quem estava de bem com a vida. Pena que a vida não estava de bem com ele.>
A noite avança e me pergunto se ainda tenho (se é que um dia tive) algo de relevante a dizer nestas crônicas que escrevo para o jornal há quase 6 anos. É provável que não. Sinto que me repito, que minhas obsessões viraram um leitmotiv enfadonho a aborrecer leitores acidentais. Mas o que fazer? Esta é a minha trincheira, meu armarinho de miudezas existenciais. É assim que consigo expressar e reverberar as minhas inquietações, pequenos nós de marinheiro que insistem em se acomodar na garganta. Afinal, à maneira de Sylvia Plath, sou habitado por gritos. E de tempos em tempos eles precisam ser expelidos.>