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Paulo Sales
Publicado em 8 de dezembro de 2025 às 05:00
Há, em Ronda, um pequeno monumento em homenagem a Ernest Hemingway. Ele fica na entrada do Paseo Blas Infante, alameda arborizada ao lado da arena de touros e debruçada sobre o abismo que cinde em dois o belo pueblo andaluz. Na placa ao lado da imagem do autor, esculpida em pedra, lê-se a seguinte inscrição: “Aspirava a escrever como se toureia em Ronda: sóbrio, de repertório limitado, simples, clássico e trágico”. Talvez seja uma frase do próprio Hemingway, que visitou a cidade em 1923 e se encantou com suas paisagens abissais. >
Ronda está presente em obras do escritor norte-americano, casos de Morte à Tarde, que evoca sua paixão pela tauromaquia, e também do clássico Por Quem os Sinos Dobram. Este último, um testemunho romanceado da guerra civil, página infeliz da história espanhola que ele acompanhou in loco como correspondente. Sem ser citada, a cidade aparece num dos trechos mais dramáticos do livro, quando os fascistas ordenam que simpatizantes da República e mesmo pobres moradores do lugar sejam lançados despenhadeiro abaixo. >
Hemingway dizia que a Espanha era o melhor país do mundo depois do seu. Chamado de Don Ernesto por toureiros que se tornaram seus amigos e garçons que costumavam lhe servir um jerez envelhecido, o escritor apreciava o embate viril entre homem e touro, algo que considero deplorável e covarde. Esse embate está no cerne de O Sol Também se Levanta, sua obra maior, que retirei há pouco da estante para reler as páginas finais. Que livro estupendo: a atmosfera mundana, o amor impossível de Jake Barnes por Lady Brett, a festa móvel de uma geração perdida. >
Mas a Espanha que Hemingway amou, ainda agrária, um tanto atrasada e profundamente católica, era um país bem diferente do atual: moderno, vibrante e liberto do espectro hostil das décadas de franquismo. Uma ferida que parece enfim cicatrizada – embora por vezes dê as caras em filmes de Pedro Almodóvar ou romances de Javier Cercas, e tenha suas vísceras para sempre expostas na Guernica de Pablo Picasso. Pensando bem, talvez ainda leve algum tempo para que essa ferida sare de vez. Afinal, um fantasma ronda a Europa: o fantasma do fascismo.>
O país que visitei pela segunda vez há pouco mais de um mês é uma nação de bem com a vida, sem amargura aparente, entregue a um hedonismo salutar, com seus bares lotados e gente de todas as idades caminhando pelas ruas, que nem se vê na cena final de Carne Trêmula. Há uma informalidade no trato que me agrada, como me agradam as tapas e os vinhos espanhóis. Claro que se trata de uma visão superficial de quem esteve um par de semanas por lá. Mas já na primeira vez tinha percebido essas características. >
Numa jornada idílica pela Andaluzia, me deixei levar não só pelos cenários naturais, de enternecer o mais rude dos corações, mas também por seu caráter milenar e pelas civilizações que a moldaram. O passado mouro presente na Alhambra, em Granada, e no Real Alcázar, em Sevilha. A antiguidade praieira de Cádiz, fundada pelos fenícios por volta de 1100 a.C, e o charme medieval de Zahara de La Sierra e Frigiliana. Acima de tudo, a Ronda que há um século fascinou Hemingway. Lugares capazes de nos fisgar pela fé, pelos alumbramentos em série ou, o mais provável, pela boca.>
Os dias por lá comprovaram o que já havia sentido outras vezes: habita em mim uma nostalgia do continente que ficou para trás em algum período da linhagem a qual pertenço. Sou parte do imigrante que deixou a Europa há mais de 100 anos para se estabelecer no Brasil. Mal sei o seu nome (Jacinto, talvez?), mas sei que veio de Portugal, ponta peninsular do Velho Mundo, pista de decolagem para o desconhecido. Como esse bisavô, carrego uma espécie de saudade. >
Ao flanar por aquelas ruas antiquíssimas, vislumbrei naqueles rostos ensimesmados, naqueles prédios seculares, naquela forma serena de levar a vida, algo de muito familiar. Essa percepção permanece feito uma sombra quente ou o espectro de alguém querido. Pode ser meu pai, meu avô, meu bisavô, meus ancestrais sentados num banco de praça espiando as tardes. Trago comigo um oceano de reminiscências que não me pertencem. Sou um europeu temporão que encontrou abrigo numa jovem cidade antiga da América do Sul. Uma alma velha vivendo num tempo que não é o seu. >