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Hilza Cordeiro
Publicado em 8 de novembro de 2021 às 13:15
- Atualizado há 2 anos
O maior evento climático do mundo começou nesta semana, reunindo lideranças de quase 200 países, e, entre elas, ecoam também vozes ativistas da Bahia. A Conferência da ONU sobre o Clima, a COP26, ocorre até 12 de novembro na cidade de Glasgow, na Escócia, para discutir como evitar catástrofes ambientais e ao menos três baianos estão sob olhos os globais nestes debates: a jovem comunicadora indígena Alice Pataxó, o advogado Dinaman Tuxá, da Aliança dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), e o cientista social Iago Hairon.>
A COP26 é uma janela de oportunidade para garantir o futuro das próximas gerações, com ideias para acelerar a ação do Acordo de Paris e da Convenção das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, adotada em 1992, e que tem como um dos seus objetivos a redução da emissão de carbono para conter o aquecimento global. >
Linha de frente nas mobilizações de proteção às florestas, os povos indígenas levaram à Europa seu ativismo e conhecimento sobre como barrar a emergência global.>
A Bahia tem 60 mil pessoas indígenas, dos quais um terço são de etnia Pataxó, segundo dados da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí), e eles estiveram representados por Alice Maciel Pataxó, 19, aluna do projeto Cunhataí Ikhã (Meninas na Luta), financiado pelo Fundo Malala, da paquistanesa Malala Yousafzai, pessoa mais nova a receber um prémio Nobel. >
Diretor da Anaí, José Augusto Sampaio diz que a presença da jovem no evento é resultado deste projeto, que treina meninas indígenas para defender seus direitos à educação e lhes dá a oportunidade de se manifestar em eventos políticos de impacto. “Alice reúne quatro coisas importantes nessa experiência internacional: é jovem, mulher, indígena e nordestina. Não é comum termos indígenas não-amazônicos na Europa. Eles costumam pensar que só existe floresta e indígenas na Amazônia. O povo Pataxó, da etnia dela, que é a mais populosa da Bahia, é o maior guardião da área de Mata Atlântica do Nordeste do Brasil. É bom Alice estar na Europa dizendo isso”, diz Sampaio.A coordenadora do Meninas na Lua, Ana Paula Lima, também da Anaí, conta que a baiana entrou no projeto no começo de 2020, quando ainda estava terminando o ensino médio. As aulas de formação nesta iniciativa incentivaram o ativismo digital e Alice já sabia muito bem como usar as redes sociais. Um dos vídeos dela, ensinando como higienizar mãos contra a covid-19, foi parar no Jornal Nacional. >
“A comunicação é uma habilidade que você pode desenvolver, mas Alice tem isso muito natural nela, é uma comunicadora, e ela soube abrir essas possibilidades de uso das redes para falar de assuntos sérios e sobreviver disso como um trabalho”, conta Lima.>
A jovem foi ao evento a convite da Associação Jiboiana, entidade civil de preservação da natureza, e foi indicada por Malala numa publicação no Instagram, na qual a paquistanesa pediu aos seus mais de 2 milhões de seguidores para seguirem Alice a fim de aprender com seu ativismo e ampliar seu trabalho.>
Em discurso na COY16, a conferência realizada por jovens dentro da COP26, a garota fez um pedido de socorro aos povos indígenas e às florestas, questionou o tipo de futuro que as sociedades estão criando e citou a felicidade em se juntar a outros jovens em busca de justiça climática. >
“Estou honrada de estar aqui unida a outros jovens para propor formas de garantir o futuro. Mas de que futuro falamos, afinal? Essa é a primeira vez que saio do meu território, em um momento em que o Brasil vive uma forte decisão sobre as terras indígenas, mas entendo a necessidade de me unir à juventude do mundo para discutir e criar soluções juntos. Estou orgulhosa de poder voltar para casa e dizer ao meu povo que não estamos sozinhos”, disse.>
Participando da sua sexta COP, o ativista baiano Iago Hairon, 27, diz que há uma fala recorrente de que esta seria a COP mais importante de todas, mas em sua avaliação, não é. Para ele, trata-se apenas de uma continuidade das negociações em torno do Acordo de Paris. >
Nesta edição, a principal pressão dos países pobres, que são menos responsáveis pela crise climática, é de que os países ricos cumpram o acordo, feito em 2009, de doar 100 bilhões de dólares ao ano para tornar as suas economias mais sustentáveis. Mais impactados pelas consequências das emergências ambientais, como a ocorrência de ciclones e incêndios florestais, os países pobres têm menos condições financeiras de se adaptarem às mudanças climáticas.>
Ainda segundo Hairon, a sociedade civil brasileira se movimentou para ir em bom número à COP26 para fazer um contraponto ao governo brasileiro de Jair Bolsonaro. Segundo ele, pela primeira vez desde que frequenta o evento, o governo alugou um pavilhão inteiro "para mostrar mentiras sobre nosso país, de que somos uma maravilha tropical e de que nada está acontecendo", disse.>
Conheça os ativistas baianos que estão na Conferência da ONU: (Foto: Reprodução/Instagram) Alice Pataxó - @alice_pataxo>
Estudante do Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades da Universidade Federal do Sudoeste da Bahia (UFSB), Alice Maciel Pataxó tem 19 anos e é da etnia Pataxó, da Aldeia Craveiro, na cidade de Prado, mas atualmente mora em Porto Seguro devido aos estudos. A jovem é aluna do projeto Cunhataí Ikhã (Meninas na Luta), que conscientiza garotas para a luta por direitos. A iniciativa é financiada pela Malala Foundation, instituição da ativista paquistanesa Malala Yousafzai, pessoa mais nova a ser laureada com um prémio Nobel. >
Filha de professora indígena, Alice pretende seguir a carreira de Direito para defender a demarcação de terra dos povos originários da Bahia. Fluente em patxohã, a língua pataxó, ela fala sobre a preservação da sua cultura para mais de 100 mil seguidores no Instagram, além de 6,6 mil inscritos no seu canal Nuhé, no Youtube, e escreve para os portais Yahoo e Projeto Colabora. (Foto: Reprodução/Instagram) Iago Hairon - @iagohairon>
Estudante egresso da rede pública estadual da cidade de Governador Mangabeira e ativista desde os 13 anos, Iago é cientista social formado pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), tem 27 anos e é oficial do programa de Justiça Climática para a América Latina e Caribe da Open Society Foundations, rede internacional de filantropia fundada pelo bilionário húngaro-estadunidense George Soros. Morando atualmente em São Paulo, Iago coordena o portfólio de ações do programa, selecionando, conectando e criando oportunidades para que outras organizações e jovens pautem mudanças climáticas como o maior problema desta geração.>
O baiano é, ainda, vice-presidente da Plant-for-The-Planet Brasil, iniciativa que incentiva o plantio de árvores. Antes, foi diretor da Engajamundo, a maior organização jovem de enfrentamento aos problemas climáticos no Brasil, e atuou também como promotor nacional do clima e energia no Greenpeace. (Foto: Greenpeace/Divulgação) Dinamam Tuxá - @dinamam_tuxa>
Nascido no município de Rodelas, no sertão da Bahia, Antônio Fernandes de Jesus Vieira é Dinamam Tuxá, da etnia Tuxá, e tem 35 anos, dos quais boa parte foram dedicados à luta pelos direitos de povos indígenas. Dinaman atua como advogado, assessor jurídico e coordenador executivo da Aliança dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). É bacharel em Direito pela Universidade Vale do Rio Doce (Univale), tem mestrado em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília (UnB) e é doutorando em Direito na mesma instituição. O advogado ingressou na faculdade de Direito por insistência das lideranças de seu povo, que sofre consequências territoriais desde os anos 1980, quando foi iniciada a construção da Usina Hidrelétrica de Itaparica, que inundou parte do território de sua aldeia. >
Depoimento: Tamikuã Pataxó, mãe de Alice Pataxó, pedagoga, licenciada em Ciências da Natureza pela UFMG e diretora da Escola Indígena Aksa Pataxó, da Aldeia Craveiro, em Prado, na região Sul da Bahia>
Minha família vem do povo Pataxó-hã-hã-hãe, só que fomos expulsos do nosso território há muitos anos. Na época em que nasci, meus pais não estavam mais aldeados, tinham sido expulsos. Meu território estava na mão dos brancos. O meu pai sempre nos orientou dentro da nossa cultura, fui alfabetizada dentro dos costumes e da educação escolar indígena. Quando Alice nasceu, eu vivia na cidade e só depois, quando ela estava em torno de seis anos, é que retornei para morar na Aldeia de Mata Medonha e ela foi comigo.>
Eu já era professora, a gente tinha uma vida civil normal na cidade, mas o meu casamento não deu mais certo e me separei do pai dela. Por este motivo, fomos morar na comunidade indígena. Eu queria que as minhas filhas fossem criadas na cultura de origem, via que meu filho já estava bem distante de tudo isso.>
Houve momentos que tive medo de estar errando com a educação das minhas filhas. Fui muito criticada quando tirei as duas de uma escola particular na cidade para levá-las para a aldeia, mas eu não me arrependo. Faria tudo novamente.>
A sensação de estar de volta à vida em comunidade foi uma coisa mágica porque era como se eu nunca tivesse saído dela. Quando tive o apoio da Aldeia de Mata Medonha foi quando a gente veio conhecer, de fato, a luta do nosso povo. A escola foi um tanto diferente para minhas filhas porque elas passaram a ter o contato direto com a língua materna. >
Sempre fiz parte do movimento de luta indígena e Alice, desde pequena, me acompanhava. Mesmo eu não morando em aldeia, ainda na adolescência eu acompanhava meu tio, que era cacique da Aldeia de Mata Medonha, quando ele vinha à cidade resolver demandas na Funai ou qualquer outro órgão. Como a leitura dele era pouca, ele pedia que eu fosse junto para fazer as atas. >
Com 12 anos, Alice entrou para o movimento estudantil, pegou gosto pela coisa e seguiu em frente. Quando eu vi, ela já era liderança. Acho que já nasceu liderança. Minha avó foi parteira, não se declarava liderança porque nem existia essa coisa, mas ela se destacava entre as mulheres. Hoje a gente diria que ela era uma liderança e acho que de alguma forma devemos ter herdado isso.>
Alice foi uma menina que vivenciou momentos muito difíceis na vida dela, assim como as demais crianças da aldeia onde vivemos depois que saímos de Mata Medonha. Vivemos uma situação de reintegração de posse de forma muito violenta. Isso marcou a vida dela. Depois de um ano da reintegração de posse, ela começou a dar sinais de ansiedade e teve que passar por um longo tratamento psicológico.>
Numa época, fomos viver em outra aldeia chamada Araticum, da qual fomos expulsos de forma violenta. Éramos uma aldeia pequena, de 46 pessoas, maioria idosos e crianças, e chegaram mais de 80 policiais que nos deram duas horas para sair. Foram simplesmente passando por cima das nossas casas. O que sobrou das nossas coisas colocaram numa caçamba e jogaram na beira da pista. >
Foi de uma hora para outra. Sabe o que é acordar de manhã e dar de cara com alguém dizendo que você tem que desocupar a sua casa? E eu estava doente, de muletas, sem conseguir tirar nada da minha casa. Foram momentos muito tensos e eu só lembro de pedir para tirarem as minhas filhas e os meus livros.>
As demais aldeias vizinhas, assim que souberam do que estava acontecendo, vieram, mas já era tarde, já tinham nos expulsado e destruído, mas isso não nos impediu de fazermos protestos, de brigar, de lutar, tanto é que boa parte das famílias retornaram para área em questão, mas só que durante 42 dias nós ficamos às margens da estrada, sofrendo e não tivemos ajuda de ninguém além de alguns poucos amigos. Foi só então que a gente veio morar na Aldeia Craveiro, onde ela concluiu o ensino médio.>
Se hoje Alice está onde está é porque ela conquistou. Antes de tudo isso acontecer, [de ela denunciar a situação dos povos indígenas na COP26], muita coisa lhe foi negada, inclusive o direito de conhecer a sua cultura e de viver e morar num lugar digno. O nosso território nos foi retirado para ser entregue a um estrangeiro, o que nunca aceitamos. Tenho certeza de que Alice e todos os parentes que lá estão nos representam muito bem.>
Penso muito no coletivo e o futuro que eu espero para as minhas filhas, e para todas as crianças indígenas, é que elas tenham o direito à uma educação de qualidade, coisa que nós não estamos tendo. Não existe futuro sem educação. As minhas filhas receberam educação de qualidade dentro das minhas possibilidades e creio que elas estão preparadas para voar bem alto e o atual momento que a Alice está vivendo é a prova disso. >
O principal direito que desejamos, não só pros nossos filhos, mas para todas as pessoas indígenas, é o direito ao território. A partir do território garantido, todo o resto conseguimos. A falta de terra, de um lugar para morar, nos impede de garantir os demais direitos. Alice e Tamikuã Pataxó (Foto: Reprodução/Instagram) >