Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Roberto Midlej
Publicado em 2 de novembro de 2016 às 08:21
- Atualizado há 2 anos
Tiganá em Cabo Verde, África, onde ele foi em abrilpara se apresentar. As imagens do país integram vídeoque será apresentado no espetáculo(Foto: Divulgação)Enquanto a vida contemporânea impõe um ritmo apressado, em que tudo se torna urgente, o músico baiano Tiganá Santana, 33 anos, parece viver em um tempo próprio. Se uns se atropelam para falar, Tiganá está sempre com voz mansa e olhar sereno, em busca da palavra certa para se expressar.A nova experiência artística dele é um convite ao ouvinte/espectador para mergulhar nesse mundo que parece particular. No dia 10, ele apresenta, no Teatro Gregório de Mattos, seu mais recente espetáculo, Não se Traduzem os Feitiços, que não é só um show, mas um experimento audiovisual, criado em parceria com a artista visual baiana Clara Domingas.Juntos, Clara e Tiganá passaram por três cenários - Cabo Verde e os litorais Norte e Sul da Bahia -, onde capturaram as imagens que resultaram no vídeo que será apresentado no palco. Nas viagens a esses lugares, Tiganá também se inspirou para compor o tema musical que será executado na apresentação no teatro da Barroquinha.>
O espetáculo, que venceu o Natura Musical 2015, dura 40 minutos e tem só uma faixa musical. “Essa ideia de ter apenas um tema musical, sem interrupção, é para quebrar essa expectativa que a pessoa tem ao perguntar: ‘qual será a próxima faixa?’ Hoje, todos ficam perguntando qual será a próxima novidade. Atualmente, temos as coisas esgarçadas, fragmentadas. E essa fragmentação não propõe nada”, afirma o músico.E quando ele diz que é somente um tema, é realmente isso: “Não se trata de várias faixas emendadas uma na outra. Não é uma suíte, mas um tema, com algumas camadas. Mas, se for para trazer uma imagem, é como se fosse um espiral e não um círculo fechado”, compara Tiganá.No palco, os músicos estarão atrás da tela que projeta o vídeo. “É uma instalação-performance, onde somos entrevistos. Então, a ideia é que fiquemos atrás da tela e essa imagem seja projetada panoramicamente, com mais evidência que a nossa presença. Nosso corpos se diluem nessas imagens”, explica o músico, aliviado de não aparecer. Tiganá é daqueles artistas, cada vez mais raros, que fazem questão que sua obra apareça mais que ele próprio.ImersãoSegundo o músico, Não se Traduzem os Feitiços é um convite a uma imersão, em que as imagens dialogam com a música: “É uma experiência que leva o público a lugares diversos, em que dois elementos, o musical e o visual, se comunicam”. Mas Tiganá faz um alerta: “A ansiedade e a pressa não são aliadas na imersão que esse projeto propõe. Mas é por isso que se faz arte. A matéria- prima da arte é o tempo”.Clara e o performer Jaguaray Santana, na Casa da Torre Garcia D’Ávila (Foto: Divulgação)As primeiras imagens do vídeo são registros realizados em Cabo Verde, onde Tiganá esteve em abril deste ano para se apresentar, como lembra o músico: “Grande parte dessa viagem foi dedicada a capturar imagens, sons e emoções relativos ao projeto. Mas as idas aos litorais Norte e Sul da Bahia foram exclusivamente direcionadas para o Não se Traduzem os Feitiços”.No Litoral Norte, Tiganá e Clara foram à Casa da Torre de Garcia D'Ávila, na Praia do Forte. O local foi escolhido devido à importância que tem para os índios tupinambás. O músico lembra a história sangrenta do local, onde Garcia D'Ávila (1528-1609), grande latifundiário, promoveu um etnocídio contra os indígenas. “Ele era representante do pensamento colonialista e matou muito índio. Foi uma peça-chave para se compreender a crueldade que era dirigida a nossos indígenas”.Tiganá Santana e Clara Domingas: parceria para criar show e experimento audiovisual Não se Traduzem Feitiços (Foto: Evandro Veiga/ CORREIO)Clara lembra a conversa que Tiganá teve com um indígena, que relatou uma experiência marcante vivida ali na Casa da Torre e que reflete a energia do lugar: “Ele disse que numa ocasião foi convocado para uma ‘missão turística’ em que deveria receber alguns portugueses. Ele aceitou o convite e, junto com outros representantes de sua aldeia, realizou o poranci (ritual indígena) em torno de uma gameleira ali e equilibraram as armas deles no centro. De repente, as armas voaram com força. E ele chorou contando isso a Tiganá”, recorda.ItapuãO bairro de Itapuã, em Salvador, onde Tiganá e Clara foram criados, também aparece no vídeo. Junto com pescadores locais, os dois artistas foram até a pedra que batiza a região (em tupi-guarani, Itapuã significa “pedra que ronca”). “A pedra fica um pouco antes do farol. Foi num barquinho e foi uma experiência inesquecível, mas não tivemos ‘estrutura’ para subir na pedra”, ri Clara. “Foi muito rápido e o mar estava bem agitado. A gente entrou meio em pânico. Os dois pescadores estavam supertranquilos, Tiganá um pouco mais silencioso, mas eu não. Ficamos uns 20 minutos e filmamos algumas coisas que aparecem no vídeo”.>
Além do bairro de Itapuã, Tiganá e Clara foram, por coincidência, a uma aldeia em Olivença que leva o mesmo nome. Estiveram ali por duas vezes e, com as crianças, fizeram uma dinâmica em grupo. Na segunda ida, já com mais intimidade, Clara pediu que os meninos e meninas desenhassem sobre papel, com urucum. A experiência, inédita para eles, já que nunca haviam trabalhado com papel, rendeu belas imagens, também registradas no vídeo.Crianças da aldeia Itapuã, na cidade de Olivença, no Sul da Bahia (Foto: Divulgação)Nas visitas às aldeias, Tiganá teve oportunidade de ouvir alguns cantos indígenas, mas diz que isso não interferiu diretamente em suas criações: “Eu já tinha composto muita coisa antes de ir às aldeias. Lá, ouvi músicas, conheci instrumentos, mas eu não destacaria isso. Isso faz parte de uma vivência, que é que mais importa. Conversei com eles sobre a vida, a terra, a retomada das terras... Para mim, a música é uma maneira de expressar experiências que não vêm da própria música. Portanto, não é uma metalinguagem”.>