A perseguida: uma novela anatômica e comportamental

Flavia Azevedo é produtora e mãe de Leo

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 11 de novembro de 2017 às 16:50

- Atualizado há um ano

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Gosta de namorar? Vagabunda, piranha, rodada. É mais quietinha? Encalhada, Esquisita, ninguém quer. Prefere mulher? Traumatizada, só pode ser. Ou então, nunca foi "bem comida". É eclética? Indecisa, isso sim. Não quer transar quando o homem quer? Oxente, maluca. E você tem querer?

Não importa qual seja o estilo: vida sexual de mulher é das coisas mais vigiadas do mundo. Fosse essa vigilância - espontânea, coletiva e tão popular - direcionada ao controle de fronteiras, não passava nem bombinha de asma sem a devida documentação. Todo mundo toma conta. Todo mundo quer saber.

Falta assunto pro povo. Desde os primórdios, parece. Porque nenhum tema jamais suscitou tanto julgamento, tanta discussão. O uso que fazemos das nossas vaginas ( e dos seus arredores, claro) sempre foi top five nas conversas de homens, nos encontros familiares e mesmo entre mulheres, vamos assumir. Fato: a vida da passarinha alheia é assunto de interesse nacional. Pode rir. É de uma banalidade inacreditável. Mas é.

Uma menina? Que gracinha! Papai agora é "fornecedor". "Ninguém toca nela", retruca o genitor, dono absoluto da pepeca que vai nascer. "Sogrão!", dizem os amigos, sempre muito engraçadinhos. E a florzinha já é assunto dentro do útero, quando ainda nem parece com o que um dia vai ser.

Já engatinha? "Fecha as pernas, menina! Isso é jeito de sentar?". Guarda essa periquita, todos parecem dizer. "Tira a mão daí!". Menina não se toca. Isso não é normal. E a precheca começa a vida sendo de todos, menos da dona, de quem deveria ser. 

Menstruou? Pronto, anuncia pra geral. Corre pro ginecologista (Pra que? Tá doente? Nunca entendi), avisa para toda a família. Não importa a idade, "já é mocinha". Se a xereca não é da menina, privacidade pra que? Pombinha na mesa, na piada dos adultos. "Tá de boi?" Nada nela pode ser apenas natural, como, de fato, é.

Cresceu? Quer namorar? Papai deixa? Se deixar, ele escolhe com quem. Não tente contrariar. Moça insubordinada leva surra pra aprender: perereca se divertindo é falha grave, pecado capital. Filhinha tem que entender: papai pode! Faz parte da proposta educacional. 

Camisinha, autoestima, ser dona do próprio nariz, métodos anticoncepcionais? Pra que facilitar? Se entender que a bendita é dela, corre o risco de ficar esquerdista, feminista, comunista, marxista, pacifista, naturalista, progressista e não depilar o sovaco nunca mais. Aí, lascou-se: não presta mais pra casar. Melhor não. Daqui a pouco, papai entrega e acabou a confusão.

Casou. Pronto. Problema resolvido. Aranha domesticada não incomoda mais ninguém. Agora é só do marido e do médico, na hora que for parir. Se for cesárea melhor, pra não "estragar" o material. Parto normal? Doutor corta a chavasca que ele não tem tempo a perder.

Depois costura, chuleia e arremata: "ponto do marido", pro dono não reclamar. Ficou ruim de transar? Bobagem, minha filha, bobagem. Bruschetta tá nova em folha e quem perde é você, se não quiser dar. Marido que trai agora tem motivo. Todo mundo concorda: pra que presta uma mulher que não "satisfaz"? 

Separou, o alerta é vermelho. Ameaça mundial. Quem suporta uma vulva libre?Consequências incalculáveis. Ninguém sabe no que pode dar. Melhor deixar longe dos maridos, não convidar para perto dos casais. E prepara a língua que lá vem assunto: dando pouco ou muito, gostando de homem ou mulher, qualquer situação interessa. É fofoca boa de fazer, é tema pra se comentar. 

O negócio é o seguinte: não tem como escapar. Em nenhuma fase da vida, com qualquer postura adotada, a perseguida fica em paz. E isso não muda tão cedo. Precisa de um avanço coletivo que não parece estar a caminho. Vai mudar - assim espero - mas não vou estar viva pra ver. Não no Brasil. Tô falando daqui. Essa pentelhação não é em todo lugar.

Por enquanto, pequenas vitórias e muita risada pra dar. De mim, já desistiram. Nesse aspecto, faz tempo que vivo em paz. Precisamente, desde que me questionaram: "com quantos homens você já transou?". Respondi: "com mais de 200, talvez". Foi a primeira resposta fofa de muitas que mando na lata, só pra me divertir. Dane-se. Ninguém mandou perguntar. 

Podia ser (questão íntima, particular), mas o número nem era real. Só que foi uma delícia dizer. Morri de rir da cara dele que ficou ainda mais engraçada quando devolvi a pergunta:"e você? Com quantas mulheres? Não gosto de homem usado demais". Ele só fez gaguejar e eu gargalhando alto. Porque só o humor salva. Alma, corpo -e a dita cuja- dessa fiscalização eterna, dessa caretice, da vida pública involuntária, dessa mania que o povo tem de cuidar do que é apenas meu. E ninguém tasca.

(Cala a boca já morreu, quem manda na minha sou eu)

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