O desafio de vencer o medo

Eduardo Rocha é jornalista

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Publicado em 21 de agosto de 2017 às 06:02

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Algo se quebra dentro de nós sempre que o terror fere de morte a liberdade. Mais que as vítimas, atentados atingem o que nos resta de dignidade em meio à intolerância. Aquele caco de humanidade perdido no mosaico da vida deixa um vazio sem reparo, espaço para que medo e dor se convertam em ódio. Pode parecer passivo, mas o caminho é outro. Barcelona já demonstrou que o sentimento das grandes tragédias é a solidariedade, aquilo que pulsa quando enxergamos no outro a desventura banal que poderia ser nossa.

O convite à Chapecoense para um encontro improvável é a prova de que o respeito à perda pode encurtar distâncias, aproximar pessoas, minimizar diferenças. O oeste catarinense e a capital catalã unidos pelas lágrimas de Ruschel, Follmann e Neto no grande coração verde e branco que se revelou no centro do Camp Nou pouco antes de a bola rolar.

É impossível dizer quando e se os dois se enfrentariam em condições normais, impostas apenas pelas regras do jogo. É provável que Elias nunca tivesse entabulado um diálogo mínimo com Messi, muito menos ganhado um aperto de mãos do camisa 10 argentino. Os dois chapéus de Apodi em Jordi Alba parecem mentira cabeluda contada sem pudor para a gargalhada dos amigos, mas está tudo registrado – em foto, vídeo e memes dos mais variados.

O gesto generoso de um dos maiores clubes do mundo diante da ferida aberta do ainda pouco conhecido time de Chapecó transformou dor em sonho. É um dom. Ser solidário é ver no outro um pouco de si mesmo. E é simples compreender que aquela dor também é sua quando se perambulava pela mesma Rambla como alvo fácil na semana anterior ao ataque. Na via mais multifacetada da cidade, doía só a saída de Neymar do Barcelona. Duas camisas 11 pelo preço de uma e o boneco com a plaquinha no pescoço, em francês: “Torcedores do PSG, 222 milhões de euros nos parece muito caro. Aproveitem! Aqui, Neymar Júnior a 22 euros, ou a 20 se nos derem Verratti em troca”.O convite à Chape é a prova de que o respeito à perda pode encurtar distânciasA única provocação possível no calor do verão europeu. Barcelona vivia muito mais que as 34 nacionalidades dos atingidos pela van na última quinta-feira. Em Barceloneta, a moça de origem árabe tomava sol em traje de banho mulçumano ao lado de outra bem menos coberta em seu topless. Chineses fotografavam repetidas vezes cada lasca das obras de Gaudí, italianos barulhentos discutiam de futebol a relacionamento no meio da rua, enquanto os catalães exibiam orgulhosos bandeiras da Catalunha nas sacadas dos prédios.

Barcelona parecia bem mais à vontade que Roma, por exemplo. Na capital italiana, tanques, blindados e soldados com fuzis chamavam tanto a atenção quanto os monumentos que protegiam. O exército vigiava cada grande entrada e saída do Coliseu, Fórum Romano, Pantheon, Piazza Navona, Vaticano, Fontana de Trevi. Raio-x e detector de metais em cada igreja, das mais badaladas às que guardam, quase em segredo, obras de Caravaggio.

Vivia o que passei a chamar de terror preventivo, o golpe mais violento à humanidade. Viver à espera do próximo ataque ou na expectativa vã de evitá-lo é aceitar a derrota. O terrorismo vence não só quando mata, mas principalmente quando impõe o medo. Medo de si e do outro. Medo de não enxergar em qualquer um o terrorista em potencial e passar a enxergá-lo em todos. Hoje, meu medo é que aquela moça árabe não possa mais ir a Barceloneta tomar sol em sua roupa de banho. Que a solidariedade ceda terreno ao ódio. Que a intolerância nos impeça de perambular sem destino pela Rambla à espera de mais um Barcelona e Chapecoense.