O espaço de Santa Bárbara

Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às sextas-feiras

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  • Nelson Cadena

Publicado em 1 de dezembro de 2017 às 04:36

- Atualizado há um ano

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 A festa em homenagem a Iansã, Santa Bárbara, ao longo da história e por motivos os mais variados foi um evento itinerante em Salvador, com dois espaços geográficos de convergência, mais ou menos, delimitados: o antigo Morgado de Santa Bárbara, hoje a área que compreende a Praça da Inglaterra com a subida da Ladeira da Montanha, e o Mercado de Santa Bárbara na Baixa dos Sapateiros. Vale ressaltar que o incêndio da capela do Morgado, em homenagem à santa, em 1898, significou a decadência do espaço e a sua ocupação definitiva por um mercado popular, também vítima de um incêndio na primeira década do século XX.

Para os dois mercados de Santa Bárbara convergiam os simpatizantes de Iansã, enquanto o culto católico era realizado ora na capela da santa, mais tarde na igreja do Corpo Santo, ora na Igreja do Paço, no Carmo, depois  na Igreja do Rosário dos Pretos. O culto a Iansã escandalizava, em 1910, a educadora Amélia Rodrigues, católica fervorosa, que assim resumia sua indignação: “Que os pobres e boçais filhos da África prossigam no seu culto primitivo... que em seus ritos de dileção, pelos gêmeos e pela trovoada, metam os grandes santos mártires Cosme e Damião e Santa Bárbara, compreende-se; porém, que gente mais esclarecida... se resolva a acompanhá-los em tal mistifório, não se pode tolerar”.

Percepções e opiniões à parte, a de Amélia publicada na revista Paladina do Lar, o certo é que a Festa de Santa Bárbara migrou da Cidade Baixa para a Baixa dos Sapateiros e o motivo principal foi a destruição do decadente Morgado e do “imundo” mercado, o adjetivo é de vários veículos de imprensa da época. Quem melhor descreveu o incêndio foi o escritor Xavier Marques no seu clássico romance O Feiticeiro, publicado em 1915, na minha opinião de crítico sem lastro, uma obra-prima da literatura brasileira, pelo seu valor referencial de cultura popular.

“Fogo em Santa Bárbara! Gritaram no largo” descreve o romancista: “Em menos de um quarto de hora, o lojista chegara esbaforido ao Morgado e via com horror as labaredas crepitantes a pulular como vagalhões de um mar de fogo... O povo quase imponente esforçava-se com o auxílio dos guardas urbanos para isolar o incêndio. Os negociantes, em confusão extrema, não faziam senão instigar com brados inúteis os poucos homens destemidos que arriscavam a vida, trepando aos altos telhados para cortar as madeiras ardidas”. E prossegue: “Beto era dos que mais clamavam.... o seu negócio... não estava no seguro e não havia bombeiros na cidade. Duraram duas longas horas suas angústias”.

“Quando o fogo...atingiu a cumeeira, lá encima, nada mais restava além de umas paredes negras e fendidas. Nesse abismo de fumo se desmoronavam... traves queimadas e telhas despedaçadas”. E após o sinistro: “A boca pequena diziam, alguns, ter sido o fogo posto...Quem seria capaz, perguntou outro: os incendiários, respondeu um desconhecido”. E continua: “O grosso da multidão censurava o governo e os vereadores... Urgiam providências... Não era só impor tributos, esfolar o comércio e abandoná-lo sem defesa à fúria do fogo, ou, ao capricho dos perversos”.

No romance, um dos personagens atribui o incêndio aos Republicanos como represália por terem sofrido, na mesma noite, um ataque na sua sede da Rua da Lama. Paulo Boto, filho de santo do terreiro de Elesbão, foi um dos poucos, que não deram ouvido a essa conjuntura. O Morgado, que apenas mantinha o nome, pois não mais era morgado, desapareceu e o mercado também, como todos os mercados da cidade (São João, Modelo, Agua de Meninos, Santa Bárbara da J.J Seabra, do Ouro, Sete Portas), em algum momento de nossa história, devorados pelas chamas do descuido, ou da encomenda.