Os ministros escravizados

Malu Fontes é jornalista e professora de jornalismo da Facom/UFBA

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Publicado em 6 de novembro de 2017 às 08:18

- Atualizado há um ano

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Volta e meia denúncias de trabalho escravo ou análogo à escravidão são objeto de ampla repercussão na imprensa brasileira e geram campanhas de boicote às marcas e produtos que se valem disso. Quem, em sã consciência, é capaz de defender o uso da mão de obra escrava? Pois o governo brasileiro foi capaz dessa defesa ao, recentemente, baixar uma portaria segundo a qual os fiscais do Ministério do Trabalho ficariam impedidos de registrar casos de trabalho escravo, a não ser quando houvesse impedimento, por parte do empregador, do deslocamento físico do trabalhador.

Falta de salário, jornadas desumanas, instalações insalubres, tudo isso deixaria de configurar analogia ao trabalho escravo. A portaria impedia ainda que qualquer lista de empresários e empresas acusadas de escravizar pessoas fosse divulgada sem a autorização pessoal do próprio ministro do Trabalho. Vamos combinar que se a Procuradoria Geral da República não tivesse derrubado essa portaria torta, nunca mais nenhum empresário desonesto e perverso teria seu nome publicizado nas chamadas listas sujas.

ESCRAVO GILMAR - Como todo mundo sabe, essa deformidade foi um dos itens negociados entre o presidente Temer e a bancada ruralista em troca da derrubada, no plenário da Câmara, da segunda denúncia contra ele. Desde então, mesmo com a portaria tendo caído, o tema se manteve nas manchetes. Primeiro foi o ministro Gilmar Mendes, do STF, cujo perfil dispensa maiores apresentações, quem deu uma contribuição e tanto para a manutenção do assunto nas primeiras páginas.

Diante da portaria, e para dizer que concordava com ela, Gilmar Mendes argumentou: se jornadas extenuantes, excesso de trabalho e condições adversas fossem sinônimo de trabalho análogo à escravidão, então ele poderia se dizer vítima disso. Segundo ele, pela natureza da função, ministros do STF trabalham muito, ficam até muito tarde em atividade e, por excesso de processos, são obrigados a levar trabalho para casa, o que se configura como jornadas extenuantes.

COMO COMER - De analogia torta em analogia torta chegou-se à fritura e à autodestruição biográfica de Luislinda Valois, que, embora muita gente considere a informação controversa, sempre empunhou o vanguardismo de ter sido a primeira desembargadora negra do Brasil. Na última semana, Luislinda, hoje aposentada pelo Tribunal de Justiça da Bahia, por onde recebe cerca de R$ 30.400 mensais de benefício, e atual ministra de Direitos Humanos do Governo Temer, caiu na boca do povo pelo fato de ter vindo à tona, na imprensa, seu pedido oficial para acumular a esse valor o salário integral de ministro de estado no Brasil, R$ 31.000.

Caso o pedido da ministra fosse atendido, ela somaria uma renda mensal, paga pelo poder público, de mais de R$ 61.000, quando o teto de remuneração no país é de R$ 33.700. Há quem defenda a razoabilidade da reivindicação de Luislinda, argumentando que uma coisa é seu benefício de aposentadoria e, portanto, direito conquistado, e que outra, bem diferente, seria seu salário de ministra.

O que pegou muito feio, no entanto, foi o argumento usado por ela. Sem constrangimento, constrangeu, defendeu-se dizendo que trabalhar como ministra sem o salário equivalente ao cargo seria como um trabalho escravo. “Como é que eu vou comer, como é que eu vou beber, como se vai calçar?” Com a resposta, os milhões de brasileiros que comem, bebem e calçam recebendo apenas um salário mínimo ou os desempregados, sem renda regular alguma.