Parto normal, cesariana, coragens e covardias

Por Flavia Azevedo*

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Publicado em 28 de outubro de 2017 às 10:01

- Atualizado há um ano

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Se você acha que mulher briga por causa de religião, política, último pedaço de bolo, derradeira Coca-cola no deserto ou qualquer outro tema potencialmente belicoso é porque nunca viu uma discussão feminina sobre parto normal X cesariana. FLA x FLU? Brasil X Argentina? BA X VI? Esqueça isso. Ninguém nos vence em vibração.

O tema é tenso. Delicado. Faz filha desconhecer mãe. Separa amigas. De um lado, "eu tenho o direito de escolher cesariana, ninguém tem nada com isso". Do outro, "tem que proibir cesariana por conveniência da mulher". No muro, "o que importa é que mãe e bebê fiquem bem".

(Mas o que é "ficar bem", nesse caso? Outra ampla discussão)

Muitas vezes, tudo se resume a desqualificar a experiência da outra. Se marcou uma cesariana, a mulher é desinformada, covarde, superficial. Se foi parto normal (principalmente natural, em casa, sem anestesia), a criatura correu riscos desnecessários, tentou matar a criança, pariu assim por "modinha". 

Transbordando, por todos os lados, o desejo de (auto)afirmar, sempre que possível: "eu sou melhor que você" e "não há escolha melhor que a minha". Muito holofote em umbigos próprios, pouca visão do todo, rarissima empatia. Algum sadismo quando a outra, a que escolheu uma opção diferente, se dá mal. Humano, demasiadamente humano. Mas até nisso, minha gente? Sim. Até.

Mais uma vez, desperdiçamos energia: a briga não é entre mulheres. Ou não deveria ser. Essa relação conflituosa com o que deveria ser natural é fruto de um processo que atinge a todas nós. Estamos, como sempre, no mesmo barco. Mesmo que, às vezes, a gente não consiga perceber. Fato é que precisamos, com urgência, corrigir a mira desse canhão.

Parir é um grande poder. Exclusivamente feminino. E se a gente não tá conseguindo gozar, se muitas mulheres não conseguem relaxar para, simplesmente, sentir prazer, como seria fácil abrir as pernas e deixar uma pessoa sair? Procure saber da coincidência de hormônios, em ambas as situações. Procure saber do estado mental parecido que precisamos alcançar para ter um orgasmo ou parir. Não é viagem minha, não. Parir é o feminino exacerbado, em estado bruto, natural. Indigesto, pra muita gente. Não seria diferente para a medicina que temos: sem tempo, sem saco, sem competência para lidar com subjetividades. Parir é parte da nossa vida sexual. Parte não obrigatória. Mas, se parimos, é. Pensando assim, faz sentido que nos mandem "parar de gritar", que repitam "na hora de fazer você achou bom", que nos convençam de que o certo é parir quietinha, seja por autocontrole ninja ou uso de medicação? Faz sentido que prefiram abrir nossas barrigas e acabar com a "presepada"? E que façam disso regra, em todas as situações? Pra mim, faz. Quem aguenta uma mulher em ebulição?

(Violência obstétrica. Já ouviu falar?)

Parir é o feminino exacerbado, em estado bruto, natural. Indigesto, pra muita gente. Não seria diferente para a medicina que temos: sem tempo, sem saco, sem competência para lidar com subjetividades. Há uns meses, a mulher entrou no hospital com uma arma na bolsa. Ia parir. Se fosse tratada como foi no parto anterior, preferia se matar. "Louca", muitos disseram. Mas pense no que essa mulher deve ter vivido pra tomar essa decisão. Louca? Ela? Será?

Parir virou um medo. Fato. Que certamente não veio do corpo, das sensações naturais. É um medo construído, com histórias catastróficas, por uma narrativa que nos deixou assustadas diante de níveis de líquido aminiótico e nós de cordões umbilicais. E a medicina oferecendo soluções. Para incidentes reais e complicações inventadas. Muitas vezes, o doutor cria o problema pra ele mesmo resolver. Por incompetência, desconhecimento ou má fé. 

Mas como peitar isso aí? Avental branco tem poder. E há toda um hierarquia que começamos a subverter com a busca de informações. Tem médico que não gosta de paciente que lê, sabia? Que desencoraja pesquisas pessoais. Sem o costume de ser contestado, já tem doutor estrebuchando porque, agora, precisa explicar. 

Por enquanto, a guerra é quente. "O bebê é grande demais", "você não teve dilatação", "ele vai se enforcar no cordão umbilical", "perdeu líquido, bora operar" e toda a pressão pela cesárea. Do outro lado, "toda mulher consegue parir", "nada impede um parto normal", "basta você relaxar" e outras generalizações que ignoram o processo de "adoecimento" do parto pelas quais todas passamos. Há limites físicos. E, não menos importantes, impedimentos emocionais. Há sequelas de diversas profundidades.

Muita merda, dos dois lados. Perigos e ofensas a qualquer cabeça pensante. No meio disso, uma minoria de profissionais com quem dá pra conversar. Felizmente, alguma literatura. E nós, com toda a nossa coragem, assumindo decisões, fazendo as nossas escolhas, enfrentando a covardia de quem manipula informações, de quem nos ignora, com a maior tranquilidade. Porque repetem modelos - antigos ou recém inventados -, porque visam o próprio conforto, porque têm seus interesses e deles, sim, não abrem mão. 

(Tá vendo? A briga não é entre nós)

*Flavia Azevedo é produtora e mãe de Leo  

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