Inteligência artificial, um remédio para quantos males?

IAs têm sido exploradas na Medicina, e já são capazes de acelerar diagnósticos e promover maior precisão em procedimentos

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  • Carolina Cerqueira

Publicado em 12 de agosto de 2023 às 05:00

Hospital Mater Dei utiliza IA para cirurgias robóticas e organização de escala
Hospital Mater Dei utiliza IA para cirurgias robóticas e organização de escala Crédito: Ulisses Dumas/Divulgação Mater Dei

Não parem as máquinas! O clássico bordão da imprensa, no entanto, ganha ‘licença poética’ nesta reportagem para se aproximar da saúde. Isto porque a área vem se aproximando da chamada Inteligência Artificial (IA), que nada mais é do que o uso de máquinas capazes de executar tarefas antes exclusivas dos seres humanos. A IA, portanto, ao contrário do que muita gente pensa, não se limita ao ChatGPT e é vista como ‘a galinha dos ovos de ouro’ para áreas como a medicina, acelerando e conferindo maior precisão a diagnósticos.

Uma das grandes apostas é a de visão computacional, capaz de segmentar imagens de órgãos, lesões e tumores. “Existem vários casos em que a leitura feita pelas máquinas, consegue fazer relações que vão além das possibilidades da visão humana, detectando elementos muito sutis. Para a oncologia, por exemplo, é um grande benefício”, pontua o médico Manoel Barral Netto, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O Hospital Português está em fase de implementação da tecnologia. O novo sistema possui ferramentas avançadas de IA capazes de identificar, delimitar e demarcar lesões ou massas em imagens de tomografia e ressonância magnética.

Manoel Barral Netto
Manoel Barral Netto Crédito: Ricardo Prado/Divulgação

Outras aplicações

A clínica Image, de diagnóstico por imagem, que pertence à rede Dasa, adotou uma ferramenta de IA para encurtar o tempo entre o diagnóstico de uma doença e o início do tratamento. No caso do câncer de mama, segundo o diretor médico César Araújo Neto, esse tempo costuma ser de 60 dias e, com a ferramenta, está sendo reduzido para 15 dias.

“A ferramenta permite o rastreamento dos laudos dos exames, identificando palavras-chave que indiquem doenças críticas ou suspeitas. A partir desse processo muito mais rápido do que se estivesse sendo feito por um humano, conseguimos entrar em contato com os médicos que solicitaram os exames e possibilitar a inserção do paciente na nossa linha de cuidados, o que significa que ele passa a ter um tutor e consegue fazer todo o processo de diagnóstico dentro da rede Dasa, da qual a Image faz parte juntamente com a clínica AMO, o laboratório Leme e o Hospital da Bahia”, explica.

Já o Hospital Mater Dei conta com o serviço de cirurgia robótica, feito pelo robô Da Vinci Xi. Segundo o coordenador do serviço, Nilo Jorge Leão, a urologia e ginecologia são as especialidades que mais utilizam a tecnologia. “O médico é quem comanda o robô. Ele não permite, por exemplo, movimentos bruscos, filtra o tremor do cirurgião, permite visão tridimensional e a plataforma ainda se comunica com o cirurgião informando possíveis colisões de pinças e ajustes necessários para uma cirurgia melhor”, descreve Leão.

Hospital Mater Dei
Hospital Mater Dei Crédito: Ulisses Dumas/Divulgação Mater Dei

Ainda no Hospital Mater Dei, a gestão de escalas passou a ser feita por uma plataforma que funciona com base nos dados de ocupação e registro de ponto. “Atualizada em tempo real, ela mostra onde os colaboradores estão, suas disponibilidades e se há necessidade de contratação”, explica Rodrigo Pereira, CEO da A3 Data, empresa de Inteligência Artificial que desenvolveu o projeto. A solução resultou em um aumento de produtividade e uma redução de 85% nas horas extras, proporcionando um retorno sobre o investimento de 22,5% em 10 meses.

Também na área dos ‘bastidores’, o Hospital Português já utiliza IA para otimizar os campos de cibersegurança e reposição de estoque. Uma plataforma de Machine Learning e IA generativa detecta e responde a riscos cibernéticos. No âmbito de suprimentos e gestão de estoque, o hospital adotou ferramentas avançadas de IA especializadas em planejamento de demanda, que têm proporcionado maior racionalização das compras e estoque enxuto e eficiente.

Ponderações

Felipe Kitamura, diretor de Inovação Aplicada e IA na Dasa, chama a atenção para a importância da atualização e proteção dos dados utilizados. “O bom funcionamento de um algoritmo depende da qualidade dos dados utilizados, que não podem perder a acurácia ao longo do tempo”, coloca. “Na Dasa, temos um time de engenheiros e arquitetos de dados para garantir a privacidade de todas as informações geradas pelos pacientes. Todos os nossos processos envolvendo IA seguem rigorosamente a LGPD [Lei Geral de Proteção de Dados]”, finaliza Kitamura.

O médico e pesquisador da Fiocruz, Manoel Barral Netto, pondera que a IA não é uma ferramenta totalmente pronta. “Não tem sentido recusar o uso dessa tecnologia que pode ser fantástica se bem utilizada. O que é preciso é pesar riscos e benefícios e aplicar um controle social para que ela não caia no interesse dos grandes empresários e seja utilizada para outros fins que não o benefício da população”, destaca.

O pesquisador Leonardo Nascimento, coordenador do Laboratório de Humanidades Digitais da Universidade Federal da Bahia (Ufba), concorda. Ele ainda demonstra preocupação com o fato dos grandes bancos de dados, bases das IAs, estão em inglês e foram construídos nos Estados Unidos ou países da Europa. “Cada país tem suas peculiaridades. Será que uma IA está preparada para lidar com corpos diversos, de pessoas de diferentes cores e raças ao redor do mundo?”, questiona Nascimento.

"Eu acho que essas tecnologias são bem-vindas, mas é preciso ter um olhar crítico e nunca abraçar o solucionismo tecnológico, ou seja, achar que essas tecnologias vão resolver todos os nossos problemas, porque não vão"

Leonardo Nascimento
Pesquisador da Ufba

Manoel Barral Netto acrescenta que é fundamental que os avanços tecnológicos não fiquem fora da rede pública de saúde. “O Brasil é um dos países que mais tem dados de saúde e maior potencial de explorá-los. Precisamos capacitar as pessoas para usá-los”, coloca.

No início de 2023, o Ministério da Saúde criou a Secretaria de Saúde Digital e agora planeja o projeto SUS Digital, que quer implementar novas tecnologias, incorporando, inclusive, a Inteligência Artificial. O objetivo é expandir o acesso da população a uma saúde pública cada vez mais universal, ágil e de qualidade. Procurado pela reportagem para comentar o projeto, o Ministério não retornou. A Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab) também foi procurada, mas não respondeu.

IA e o mercado de trabalho

Segundo o médico Ademar Paes Junior, CEO da LifesHub, primeira plataforma de Inteligência Artificial aplicada à saúde do Brasil, além de melhores resultados e modernidade, as empresas da área buscam também, ao adquirirem soluções de IA, redução de custos. “O nosso foco é utilizar tecnologia para obter ganhos tanto para o paciente como para a sustentabilidade do setor”, reitera o diretor de Inovação Aplicada e IA na Dasa. Segundo ele, o investimento feito no primeiro trimestre de 2023 foi de 50 milhões de reais e todo o dinheiro gasto tem trazido compensações.

Para o especialista em ESG e mercado de trabalho, Augusto Cruz, ainda não é possível dizer se a IA em larga escala vai gerar desemprego, mas esta incerteza é comum em contextos de surgimento de novas tecnologias. “Por enquanto, as análises indicam que a tendência é de perda de postos de trabalho de uma forma geral. Estima-se que, nos próximos cinco anos, teremos uma redução de 2% das vagas de trabalho no mundo. Na saúde, no entanto, acredito que isso seja mais em relação à área administrativa, área de limpeza dos hospitais, por exemplo, do que substituição de médicos de fato”.

O médico Donizetti Giamberardino, do Conselho Federal de Medicina (CFM), acredita que “todo ato repetitivo tem mais risco de ser substituído por uma IA”, mas que a relação não é completamente direta. Ele destaca que, mesmo as cirurgias robóticas demandam profissionais para comandar os robôs e estarem aptos para intervir caso necessário. “É uma técnica para gerar mais rapidez e precisão, não para substituir humanos por máquinas”.

Donizetti Giamberardino
Donizetti Giamberardino Crédito: Divulgação

O ortopedista Marcelo Silveira Teixeira Filho, concorda. “Como qualquer aparelho, ferramenta ou tecnologia que surgiu ao longo da história humana, temos a capacidade de nos adaptar para que isso nos auxilie, ou seja, novos papéis e responsabilidades podem surgir. Embora a tecnologia possa automatizar certas tarefas, muitos aspectos da medicina requerem julgamento clínico, empatia e habilidades de tomada de decisão que são intrinsecamente humanas”, opina.

O nutricionista João Paulo Mendes diz perceber um movimento de pacientes recorrendo ao ChatGPT, por exemplo, para obter dietas, mas ressalta que a prática já acontecia através de outras ferramentas e não acredita que isso irá gerar desemprego de nutricionistas. Ele ainda acrescenta que os próprios profissionais fazem uso das ferramentas, mas que elas servem como auxílio e não substituem seus trabalhos.

"Eu já utilizei IA não diretamente para prescrição, mas para pesquisas, estruturação de processos educativos com nutrição, tem muita utilidade. Um grande exemplo disso é o desenvolvimento de softwares nutricionais. Antigamente as dietas eram calculadas e prescritas à mão, aí a internet chegou e hoje tem softwares que ajudam os profissionais na prescrição, mas não substituíram os profissionais e acho que assim será com as demais IAs"

João Paulo Mendes
Nutricionista

IA em sala de aula

Com a grande disseminação das ferramentas de IA no mercado, surge também a possibilidade de utilização delas em salas de aula, como parte do processo de formação dos estudantes das áreas de saúde. Foi tendo isto em mente que o ortopedista baiano Marcelo Silveira Teixeira Filho encabeçou no Brasil a introdução da realidade virtual na dinâmica do aprendizado em cirurgia ortopédica. O trabalho nasceu nas salas cirúrgicas do Hospital Irmã Dulce, em Salvador.

A técnica utiliza óculos de realidade virtual, simulando uma efetiva cirurgia óssea, de tal forma que o aprendizado científico aproxima-se ao máximo da prática cirúrgica real, sem riscos ao paciente. De acordo com o cirurgião, a novidade extrapola o campo do ensino quando também é introduzida no pré-planejamento das cirurgias.

Realidade virtual é utilizada no treinamento de cirurgias
Realidade virtual é utilizada no treinamento de cirurgias Crédito: Arquivo Pessoal

Na Universidade Unex, o fonoaudiólogo e assessor da coordenação do curso de medicina, Rodolfo Prado, conta que há utilização de IA para simulação de casos clínicos, como obstrução cardíaca e fraturas, em processos de treinamento antes dos estudantes atenderem pacientes reais. “Nas disciplinas que utilizamos IA, a gente consegue preparar o aluno no direcionamento da melhor decisão clínica, tendo isso tanto no ensino de anatomia, quanto fisiologia, neurologia, assim como em práticas médicas e propedêuticas médicas”, explica.

O estudante do quinto ano de medicina da Ufba Matheus Piza, no entanto, diz sentir falta de abordagens direcionadas à IA na sala de aula, mas afirma que há diversas pesquisas e até trabalhos de conclusão de curso que exploram as novas ferramentas tecnológicas.

Matheus faz parte do grupo de pesquisa WLCS, do Laboratório de Patologia Estrutural e Molecular (Lapem), da Fiocruz. O grupo trabalha com o PathoSpotter, um sistema baseado em IA voltado para a análise e diagnóstico automático de lâminas de biópsia dos rins. Como explica o estudante, o trabalho conta com parcerias de grupos de pesquisa de outros cursos, como ciências da computação e matemática, por exemplo.

"Nas disciplinas, o contato é quase nulo. Uma ou outra cita que existem ferramentas de IA sendo utilizadas e tratam isso como uma nova tecnologia e descoberta, mas sem aprofundamento ou treinamento. Mas não esperava algo diferente porque isso exigiria um conhecimento técnico de outras áreas porque por enquanto foge da formação médica. Então o que vejo são iniciativas de professores ou alunos interessados que acabam contando com a ajuda de outras áreas, numa interdisciplinaridade"

Matheus Piza
Estudante de medicina da Ufba

O professor do curso de medicina da faculdade Bahiana Luis Cláudio Correia, reconhece que não há protagonismo da IA nas salas de aula. “É preciso destacar que as ferramentas devem fazer parte do aprendizado, mas não devem ser o foco porque o domínio delas não é suficiente. É muito mais importante, por exemplo, treinar habilidade de decisão, que é algo multifatorial. A IA faz a predição, mas a decisão vem depois da predição. Para mim, o foco deve ser melhorar a abordagem do treinamento das habilidades do pensamento dos alunos”, diz.

A reportagem tentou contato com a Comissão de Ensino Médico do Conselho Federal de Medicina, mas não houve retorno até o fechamento da reportagem. 

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