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Conheça o maior desejo de quem faz 4 mil doces por dia na fábrica de Periperi e abastece os ambulantes que vendem no transporte coletivo de Salvador
Priscila Natividade
Publicado em 24 de agosto de 2024 às 05:00
É no bairro de Periperi onde mora o sonho de quem faz o doce sucesso nas paradas de ônibus de Salvador. Por trás da receita guardada a sete chaves, daquele que tem o ‘tamanho de um coco, com um quilo de goiabada dentro’, está a doceira e criadora da Fábrica de Sonho de Periperi, Cida Araújo (@fabricadesonhoperiperi). É ela quem comanda o tacho, cuida do ponto da massa, atende diretamente quem chega e ainda gerencia a produção de mais de 4 mil sonhos por dia.
“Logo quando comecei há 13 anos, quando fazia 10 sonhos, vendia cinco e perdia os outros cinco. Era uma coisa muito, muito pequena. E daí, quem comia, gostava. E voltava. Quando vi que estava acertando, decidi deixar a vitrine bem cheia para chamar a atenção”.
Se não experimentou ainda, o cheiro, pelo menos, já deve ter despertado sua curiosidade ao circular pelo transporte coletivo, do subúrbio ao centro da cidade até a Estação da Lapa. Naquela rua que todo mundo pensa que é da Glória – mas, que, na verdade, a gente precisa dizer que é da Antártica – Cida começou a ver a porta da sua casa formar fila, depois que uma amiga saiu de lá com uma vasilha cheia de sonhos vendendo pelo bairro.
Não demorou muito, ela voltou para repor o estoque e vender mais. Que nem fofoca, a notícia foi se espalhando e chegou até os ambulantes que chegavam de madrugada para comprar o sonho. “Ela não guardou só para ela, foi dizendo ao pessoal que era eu que fazia. Uma lojinha de roupa já me procurou e colocou uma vitrine. Depois, um rapaz veio e me pediu 300 sonhos para vender na porta de uma faculdade. Um belo dia veio um moço num coletinho verde, que vendia no ônibus e pegou 100 sonhos. Ele retornou no dia seguinte: ‘tia, vende feito água’. Hoje eu já atendo mais de 100 pessoas. Só pensava se conseguiria dar conta”.
Até aí todo mundo conhece a história da Fábrica de Sonhos de Periperi, que acaba de completar 12 anos nesse mês de agosto. Não por um acaso, é ela quem abastece até hoje os vendedores ambulantes que circulam pelo transporte coletivo de Salvador. Mas qual será o sonho de quem faz o sonho? Até aqui, ninguém tinha feito essa pergunta a Cida.
“Eu assistia muito Ana Maria Braga, mas não sabia cozinhar direito. Fui aprendendo umas receitas e comecei a fazer alguma coisa, tomando um pouquinho mais de experiência e comecei a desenvolver o sonho. Testei muito, foram inúmeras receitas que eu tentava adaptar até chegar ao sonho que faço hoje. Tenho um sonho - meio bobo, né? - que é fazer a minha receita com Ana Maria no programa dela”, confessa a doceira.
Bom, Cida (ainda) não foi no Programa de Ana Maria Braga, mas já realizou vários outros sonhos até agora, que custaram muito mais que os R$ 0,75 do valor do doce, quando o pedido vem em quantidade. “Sou mãe solo, tive que trabalhar dobrado, mas consegui que meu filho entrasse na faculdade. Ele fez engenharia civil na Universidade Federal da Bahia, está se formando agora e tive um custo muito grande com cursos e essas coisas todas. Estou acabando de construir minha casa também”.
E Cida realiza não só os próprios sonhos mas também, de alguma maneira, contribui para que outras pessoas possam conquistar o que desejam. “A gente acaba ajudando a realizar o sonho de muitos vendedores. Eu fico muito feliz quando alguém chega aqui e me diz: ‘tia, consegui bater minha laje’. ‘Tia, comprei minha moto’. Vejo que era nisso mesmo que eu precisava trabalhar. Também não tinha nada no bolso quando comecei a fazer sonho. Peguei um quilo de farinha de trigo e uma latinha de goiabada. Quero ver os vendedores crescendo e realizando seus sonhos”.
Cida trabalhava como técnica de contabilidade e era mais ligada nas planilhas do que na culinária. Saiu do emprego e precisava buscar uma alternativa de trabalho. No começo, vendeu salgados. O caminho não foi muito fácil até chegar ao sonho perfeito.
“A base da receita aprendi no programa mesmo: via como Ana Maria batia a massa e assava. Só que todo mundo pré-assava e fritava. Aí uma vizinha sugeriu que eu deixasse a massa inchar e depois fritasse porque ia ser um custo a menos com gás. Testei e deu certo. Fui aprimorando e fazendo com mais segurança. Tinha que achar o ponto da massa para fritar, a temperatura do óleo e deixar o sonho bem assadinho por dentro, fazer com que ele ficasse com aquele cheirinho que conquista logo os clientes”.
Cida guarda outros segredos sobre a receita e o valor que fatura atualmente, mas afirma que a fábrica vem investindo em inovação, passou a aceitar encomendas via WhatsApp e Instagram, além de desenvolver novos recheios - não só de goiabada e doce de leite.
“Tem um recheio muito bom que eu faço. A receita do creme que eu uso – acho que fica até melhor do que o de goiabada – porém, tem que ser uma coisa bem elaborada, antes de colocar na rua. Penso em variar mais. É um recheio que venho fazendo e testando nas encomendas. Não vou dizer o que é esse recheio, só que é secreto e que não é a base de baunilha”, faz mistério.
Moradora de Periperi há 40 anos, a rotina da doceira começa às 3h40 da manhã quando chega na fábrica, que fica bem ao lado de sua casa. Depois, ela só sai de lá às 19h. Junto com ela, são 10 pessoas que trabalham no lugar. Tem ambulantes que retiram por dia de 100 a 500 sonhos. Na pandemia, Cida perdeu a mãe, precisou demitir e acumulou dívidas.
“Vinha trabalhar chorando, errei muitas vezes nas receitas. Ficamos com muitas dívidas, cheia de coisas para pagar. Mas tinha que ter força e coragem. Os clientes mais fiéis, que estavam comigo desde o início, me diziam: ‘vamos tia, vai dar certo, vamos fazer’. Foi luta. Agora que consigo respirar, investir e melhorar a produção com a compra de maquinário. Recentemente, adquirimos uma máquina boleadora. Antes o trabalho de bater a massa era todo manual. Estamos nos modernizando, um passinho de cada vez”.
Um dos clientes fiéis e mais antigos de Cida é o vendedor ambulante Jackson Conceição, de 32 anos. Ele chega a ir à fábrica duas vezes no dia. Antes de vender sonho no ônibus, Jackson trabalhava como ajudante de obras. “A galera gosta do sonho da tia. A gente faz aquela propaganda, aceita pix e cartão de crédito”.
Cada sonho sai por R$ 2, mas no fim da tarde pode ter até promoção de três por R$ 5. “O de goiabada é o carro-chefe. Rodo tanto a cidade, vendendo sonho, que, às vezes, até me perco. Cheguei a me perder um dia desses quando passei do ponto. De manhã sempre vende mais, no fim do mês é mais difícil porque está todo mundo com pouco dinheiro, mas, mesmo assim, todo mundo quer sonhar, né? Aí nem que seja um só, o pessoal compra”.
Se Salvador estiver engarrafada, o sonho acaba antes mesmo de chegar na Paralela. “Consigo tirar uns R$ 2,8 mil por mês. Varia muito, tem semanas melhores que outras. Todo dia pego 220 sonhos, metade de manhã, metade à tarde. Começo pela BR até o shopping”.
O sol nem nasceu direito, o vendedor Gilberto Leno, 41 anos, sai de Tubarão, em Paripe, e pedala com sua bicicleta até à fábrica. Ali ele fica aguardando abrir às 6h. “Tenho o sonho de ter minha casa, quero construir, tudo direitinho”.
Gilberto embarca, no mínimo, em 15 ônibus diariamente. Costuma também fazer uma parada estratégica, em frente ao Hospital Santo Antonio, das Obras Sociais Irmã Dulce. Foi ele quem criou seu próprio uniforme de vendedor de sonho com direito a camisa e tudo para garantir aquela credibilidade que o sonho que vende é mesmo o da 'Rua Da Glória de Periperi'. “Vendo sonho há 10 anos. Antes, vendia picolé no Largo do Tanque. O pessoal compra tudo antes de eu chegar na Calçada. Tem cliente que leva de uma vez, 5, 6 sonhos”, diz.
Desde cedo, às 5h, quem também já está aguardando a Fábrica de Sonhos abrir é o ambulante Edvaldo Sales, 57 anos. Com uma caixa plástica e fone no ouvido, ele vem do bairro de Pau da Lima para garantir o doce. No roteiro, a Suburbana inteira e mais os bairros da Barra e Ondina. “Mas também, o ônibus que passar, eu pego. Compro uma maior quantidade do sonho de goiabada. É o que vende mais, o tradicional”.
Fernando de Jesus, 26 anos, só começou a vender sonho depois que viu a fábrica de Cida aparecer na televisão, enquanto assistia o jornal. “Faz um ano que comecei. Foi a forma que encontrei de tirar um dinheiro. Já trabalhei em açougue, como mototáxi também, mas vendendo sonho, consigo tirar uns R$ 2 mil, mais ou menos. Tem gente que ganha até mais, viu? Trabalho de segunda a sábado e sustento meus dois filhos com o que ganho vendendo sonho”.
Para Cida, a fábrica só cresceu e se tornou uma realidade que movimenta a economia informal, devido ao boca a boca entre os vendedores ambulantes que vendem o doce por Salvador inteira. “Foram os vendedores e todo esse boca a boca que tornaram o sonho tão famoso. Eu nunca investi em propaganda ou anúncio. Eu tinha medo de expandir, não conseguir atender e de toda aquela agonia. Mas sempre tive o apoio deles, quando me diziam ‘tia, continue’. A consequência é que eu não realizo só o meu sonho, mas o de outras pessoas’”.
E nem só de sonho vivem os vendedores ambulantes que você vê no ônibus. Pode pedir que vai ter, também, a banana-real. Claro que o sonho é a majestade nas vendas, mas o movimento dos ambulantes na mesma rua que fica a Fábrica de Sonhos de Periperi chamou a atenção da empreendedora Tissiane Silva. Ali, bem em frente à casa de Cida Araújo, ela tratou logo de abrir bem cedo para aproveitar a clientela e vender banana-real.
“Antes, meu foco mesmo era só pastel. Até que vi que os meninos começavam a procurar por banana-real e vinham me perguntar se eu fazia. O movimento da fábrica acabou ajudando. Aí deixei o pastel e passei a vender só a banana mesmo”.
Tissiane vende a partir de 20 unidades. Cada banana-real sai por R$ 0,90 e a produção, que é por demanda e na hora que o cliente chega, passa de 600 unidades por dia. “Trabalhava em uma loja de festa, mas fiquei desempregada. A gente vai recomeçando com uma coisinha e outra. Os ambulantes chegam, pedem a quantidade e eu frito. Pegam o sonho lá primeiro e depois chegam aqui e levam a banana-real”.
Nem madura, nem verde demais. É só banana e massa de pastel mesmo, garante ela sobre o segredo do doce: “Se a banana estiver madura demais, não aguenta a fritura. Tem dias que eu só desligo o fogo do tacho às 16h. Também costumo fornecer banana-real para eventos, mas a maior parte dos clientes são os ambulantes”, completa.
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