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"Tive que escutar que teve 'esforço' para me manter", diz professora cotista ameaçada de ser exonerada da Ufba

Três anos após ser vítima de ação judicial contra cotas, a patologista veterinária Nathália Wicpolt foi reprovada em relatório de estágio probatório; docentes negros lançaram manifesto denunciando processo subjetivo

  • Foto do(a) author(a) Thais Borges
  • Thais Borges

Publicado em 5 de julho de 2025 às 05:00

A professora Nathália Wicpolt corre o risco de ser exonerada após processo pouco transparen
A professora Nathália Wicpolt corre o risco de ser exonerada após processo pouco transparen Crédito: Marina Silva/CORREIO

A sequência de acontecimentos do dia 5 de junho não sai da cabeça da professora Nathália dos Santos Wicpolt. Naquele dia, a docente da Escola de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade Federal da Bahia (Ufba) viu, mais uma vez, sua permanência na instituição ser ameaçada. Mulher negra e professora cotista, Nathalia foi uma das vítimas dos ataques à política de cotas nos concursos para professores nas universidades federais quando foi aprovada na Ufba, há três anos.

Agora, o cenário ficou ainda mais alarmante: no dia 5 de junho, o Departamento de Anatomia, Patologia e Clínicas Veterinária aprovou um parecer que reprova o último relatório de estágio probatório de Nathalia, referente a 30 meses. Nos documentos anteriores - de seis e 18 meses - ela teve o "ótimo desempenho" expresso nos textos da banca. Agora, contudo, corre o risco de ser exonerada em um processo marcado por aspectos subjetivos e pouco transparentes de avaliação.

"A UFBA é modelo na aplicação da política de cotas, mas falta é ser modelo na defesa das cotas", diz Nathália, em entrevista exclusiva ao CORREIO. "O que a gente vem percebendo, ao longo de todos esses processos, é que só há movimentação em relação à permanência das docentes quando levamos para a imprensa. Se a própria universidade é modelo e tem um edital claro, deveria ter realmente uma ampla defesa", reforça.

Nathália se refere aos casos de mandados de segurança impetrados contra a posse de professores cotistas negros em concursos e seleções públicas da instituição. No ano passado, além do caso da médica otorrinolaringologista Lorena Pinheiro, na Faculdade de Medicina, o CORREIO revelou que pelo menos outros três candidatos da ampla concorrência entraram na Justiça para impedir a posse dos cotistas e garantir sua nomeação - um dos casos era justamente o de Nathália, na Emevz.

O mandado de segurança do candidato da ampla concorrência do caso dela está, até hoje, na Justiça - atualmente, os dois fazem parte do quadro de docentes da Emezv. Este ano, houve pelo menos mais duas situações semelhantes: da professora substituta Irma Ferreira, da Escola de Música, e da professora Izete Celestina, do Instituto de Ciência, Tecnologia e Inovação.

Ou seja: o caso da professora Nathália não pode ser dissociado dos processos contra as políticas afirmativas. A diferença é que, agora, além da movimentação na Justiça, medidas institucionais e administrativas podem levar à exoneração dela no último momento antes de conseguir sua estabilidade no serviço federal. Na última quinta-feira (3), docentes negras e negros da Ufba lançaram um manifesto em defesa das políticas afirmativas e em solidariedade à professora Nathália. Até então, o documento tinha sido assinado por mais de 80 professores, incluindo diretores de unidades, a exemplo das Faculdades de Medicina, de Arquitetura e de Direito, do Instituto de Letras e da Escola de Administração.

Nathália Wicpolt foi aprovada no concurso da Ufba em 2022
Nathália Wicpolt foi aprovada no concurso da Ufba em 2022 Crédito: Marina Silva/CORREIO

No texto, os docentes destacam que, desde a posse, Nathália sentia "animosidade com sua presença" na unidade. O manifesto cita que o mérito de ser aprovada no concurso passou a ser chamado de "esforço da Emezv para a sua manutenção” e de uma “benevolência" do departamento. "A ideia de que a Professora Nathália dos Santos Wicpolt devia um favor aos colegas e que a política de cotas tinha gerado uma disputa, permeou todo o processo do estágio probatório (...), mas, apesar das adversidades, ela cumpriu com todas as suas obrigações como docente".

Uma exoneração após estágio probatório é coisa rara na Ufba. O último caso conhecido de uma professora - também negra - foi em 2019, com uma docente da creche em um processo também considerado tempestivo por especialistas. Mas a situação de Nathália tem chamado atenção por ter mais nuances.

"Esse é o primeiro caso em que o que está sendo questionado não são as estruturas do Poder Judiciário. O que está sendo questionado são as estruturas do próprio acolhimento ao docente negro dentro da Ufba", avalia o advogado Felipe Jacques, responsável pelo recurso da professora.

O concurso

Natural de Pelotas (RS), Nathália estava no começo de uma bolsa de pós-doutorado na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), quando soube do concurso nº 1/2021 para a Ufba. Dentre as 33 vagas disponibilizadas no processo, 20% eram reservadas a candidatos negros - ou seja, sete. Havia apenas uma na Emevz - para a disciplina de Toxicologia Veterinária.

Nathália Wicpolt foi aprovada no concurso da Ufba em 2022
Nathália Wicpolt foi aprovada no concurso da Ufba em 2022 Crédito: Marina Silva/CORREIO

Desde 2018, a Ufba reserva vagas para negros pela totalidade disponível no edital. A ideia virou referência no Brasil: em 2022, o Ministério Público Federal (MPF) em Sergipe recomendou que a UFS seguisse o modelo da Ufba. Havia o amparo no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade 41/DF, em 2017, quando o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, indicou que, em concursos como os do magistério superior, devem ser adotadas medidas alternativas para ampliar a representação racial, tal qual a aglutinação de vagas.

Começaram, assim, os ataques à política de cotas por meio de liminares na Justiça Federal. O caso de Nathália teria sido o primeiro na Ufba. Em setembro do ano passado, quando o CORREIO revelou os processos, o diretor da Escola, Rodrigo Bittencourt, foi procurado pelo jornal para que a professora fosse entrevistada. Ele disse que a unidade tinha conseguido "absorver os dois" candidatos e que o primeiro colocado da ampla concorrência também seria "PP (pessoa preta ou parda), mas acabou não se tocando em se inscrever como cotista". Essa informação não foi confirmada pela reportagem e, oficialmente, a única candidata autodeclarada negra - e, portanto, cotista - era Nathália.

Histórico

Nathália era a única candidata de seu concurso que não tinha vínculo anterior com a Ufba. O candidato aprovado na ampla concorrência - o hoje professor Múcio Fernando Ferraro de Mendonça - era ‘da casa’. Além de ser mestre e doutor pelo programa de pós-graduação da Emevz, atuava como professor substituto na disciplina de Toxicologia, com a professora Mônica Mattos.

Esta última presidiu a banca do concurso que Nathália foi aprovada; é a coordenadora da disciplina da vaga do certame (as duas a dividem) e preside a comissão de avaliação do estágio probatório da docente.

Logo pós o concurso, Nathália descobriu que estava grávida e que era uma gestação de risco por um quadro de trombofilia. Impossibilitada de viajar, fez o processo de admissão médica e de heteroidentificação na UFRPE até tomar posse, em agosto de 2022.

"Eu tinha a bolsa de pós-doutorado garantida até o ano de 2025. Meu companheiro, tinha um trabalho em regime CLT, em Recife. Ele pediu demissão do trabalho para me acompanhar, até porque eu estava gestante. Vendemos todos os móveis, fizemos o contrato de aluguel de apartamento e viemos para Salvador. Não temos nenhum parente aqui", lembra.

Mesmo com a gestação de risco, ela começou a dar aulas presenciais na Ufba. Naquele semestre de 2022.2, a instituição tinha retomado as aulas presenciais, mas ainda permitia que servidores com comorbidades ou situações específicas ministrassem aulas remotas ou adaptadas. Nathalia sempre teve disciplinas presenciais.

"Fui cumprindo com a minha carga horária, dando as minhas aulas. Quando eu tinha exames médicos ou até mesmo consulta, como era pelo SUS, oportunamente avisava os alunos e disponibilizava as aulas online. Ou seja, os alunos nunca ficaram sem aula", conta.

Em outubro de 2022, no terço final da gravidez, Nathália recebeu um email que informava sobre o mandado de segurança do candidato da ampla e quetinha 10 dias para se manifestar. A sentença da 11ª Vara da Justiça Federal determinava o cumprimento da nomeação de Múcio Ferraro em 10 dias, mas não antecipava os efeitos da tutela.

Mesmo assim, a unidade encontrou uma solução administrativa para conseguir a liberação de outra vaga para o candidato da ampla. Uma professora que estava afastada, morando em Portugal, pediu exoneração e a vaga ficou disponível.

A partir dessa solução, porém, surgia uma mesma conversa, segundo o recurso da professora e o manifesto dos docentes. "Tive que escutar que a minha unidade fez um esforço muito grande para me manter na vaga". Alguns pontuavam que os dois professores "eram prejudicados pelo edital" ou que "o edital estava errado".

Nathália Wicpolt foi aprovada no concurso da Ufba em 2022
Nathália Wicpolt foi aprovada no concurso da Ufba em 2022 Crédito: Marina Silva/CORREIO

Pressão

Em janeiro de 2023, a professora Nathália deu à luz e, na sequência, passou seis meses em licença maternidade. No período após o retorno, ela diz ter começado a se sentir pressionada. "Diziam: ‘professora, você não está sendo vista. Professora, cuidado, que tem professor que bate na porta da sua sala só para saber se você está lá’. Era essa expectativa, sendo que eu estava cumprindo minhas aulas".

Nesse período, ela foi aprovada para a residência em patologia. Publicou cinco artigos científicos e aprovou projetos de extensão. Orientou TCC, participou de banca de professor substituto e de doutorado.

E foi assim até o último dia do estágio probatório: 11 de fevereiro de 2025. Nas duas avaliações anteriores, recebeu avaliações de "ótimo desempenho" pela mesma banca composta pelos professores Mônica Mattos, Moises Dias Freitas e Paula Veloso Leal (a chefe de departamento). Os pareceres estão no Sipac, sistema da Ufba.

Naquele 11 de fevereiro, porém, dois emails foram enviados por alunas (àquela altura, uma delas já tinha se formado). Uma havia enviado em fevereiro de 2024, quando era monitora da disciplina em questão, mas da docente Mônica Mattos. No dia 11 de fevereiro deste ano, já formada, ela envia novo email cobrando atualizações. Naquele mesmo dia, a outra monitora envia um email semelhante.

Os dois textos, ao qual à reportagem teve acesso, continham críticas a Nathália. Ambos têm trechos idênticos. "A impressão que tenho é que ela age como se sua única obrigação fosse comparecer à aula, apresentar os slides e encerrar suas atividades", dizem. Os emails foram incluídos no parecer.

Naquele mesmo dia, de acordo com o recurso, a professora teve que ouvir que seu filho de dois anos "já está muito grandinho" e que ela "deveria se dedicar mais ao trabalho". O filho de Nathália é lactente.

O parecer

Para Nathália, a escrita do terceiro relatório seria a consolidação do trabalho que vinha fazendo. Ela escreveu o documento e enviou as comprovações das atividades - como manda a regra. "No estágio probatório, tudo pode ser utilizado contra a gente. Para além disso, estou até hoje sofrendo o processo do mandado de segurança. Quando saiu o resultado do concurso, ficou muito claro para mim que eu não era quem eles queriam".

No dia 5 de junho, na reunião de departamento, a comissão de avaliação do estágio probatório leu o texto e, ao fim, deu um parecer ‘desfavorável’. Citando argumentos como os emails dos alunos e dificuldade de adaptação às rotinas, condições e demandas do trabalho, os professores que assinam dizem que a colega não "demonstra aptidão para o desempenho pleno das funções docentes".

Na votação, 19 dos presentes seguiram com o relatório (ou seja, pela reprovação). Entre os votantes, estava o professor que entrou com mandado de segurança (e que seria diretamente implicado se houver a exoneração dela). Duas pessoas se abstiveram - uma delas sendo uma professora substituta, que não poderia votar.

Recurso

Nathália e sua defesa questionam os aspectos subjetivos da avaliação. "A gente não teria feito toda a nossa mudança de Recife para cá, meu marido não teria largado o trabalho dele, se esse não fosse o meu sonho. Como é que eu não queria ocupar esse cargo? ".

Nathália já tem o dobro dos pontos necessários para fazer a progressão de carreira. Na Ufba, após ter entrado como adjunta com dedicação exclusiva, ela pode progredir em categorias no até chegar à titularidade.

O recurso apresentado à Ufba pelo advogado Felipe Jacques solicita que o parecer da terceira avaliação seja declarado nulo e que ela tenha direito a uma nova avaliação. A defesa pede, ainda, que nova avaliação seja feita no Conselho Universitário, por meio da Comissão de Normas e Recurso, porque não considera o departamento em questão como um órgão isento.

"Isso leva a gente a refletir sobre como a universidade deve se portar em relação a esse acolhimento com as professoras gestantes, com os professores negros. A Ufba precisa ser cada vez mais negra, porque o aluno precisa ver aquele professor e se espelhar nele. Mas, para isso, tem que ter política de acolhimento e não cobrar a mais desse professor", diz o advogado Felipe Jacques.

Ele acredita que a professora Nathália foi mais demandada do que é esperado de outros docentes. "Nós estamos falando de uma mulher pós-doutora. Ela teve um aproveitamento extraordinário e, apesar de ser ‘mais’, ela está sendo colocada como ‘menos’", acrescenta.

Instâncias

A presidente da Apub (sindicato que representa os professores), Raquel Nery, informou que a professora Nathália recebeu acolhimento da entidade em 9 de junho. Segundo Raquel, a entidade acredita que a defesa deve considerar as condições objetivas e subjetivas na vida das mulheres em sua trajetória universitária.

"A Apub tem na defesa das ações afirmativas uma de suas principais pautas, tanto quanto a da própria universidade. Continuaremos acompanhando os desdobramentos do processo, com a expectativa de que os ritos administrativos sejam respeitados", pontuou.

Os professores que são citados nos documentos foram procurados e receberam os questionamentos por escrito. Paula Velozo, Moises Freitas e Mônica Mattos afirmaram que "a comunicação da universidade é feita pelo setor de comunicação oficial". Múcio Ferraro e Rodrigo Bittencourt não responderam aos contatos por email e Whatsapp, respectivamente.

A Ufba afirmou que "o assunto em questão está em andamento nos canais adequados. Até a sua conclusão, não há o que declarar".