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A otorrinolaringologista Lorena Pinheiro, impedida de assumir após decisão judicial, diz que vai lutar até a última instância
Thais Borges
Publicado em 14 de setembro de 2024 às 05:00
Por dez dias, a médica otorrinolaringologista Lorena Pinheiro não conseguiu falar. Tentava assimilar a notícia que chegara no último dia 21 de agosto. Naquela data, foi publicada, no Diário Oficial da União (DOU), uma portaria que revogou a homologação do concurso em que ficou em primeiro lugar para docente da Universidade Federal da Bahia (Ufba), justamente para uma vaga em otorrinolaringologia, na Faculdade de Medicina.
Negra e doutora em Ciências da Saúde pela própria Ufba, Lorena perdeu a vaga após uma decisão da Justiça Federal. Ela tinha optado por concorrer como cotista. No entanto, outra candidata, a também otorrinolaringologista Carolina Cincurá Barreto, tinha entrado com um mandado de segurança que afetava diretamente a aplicação da política afirmativa.
"Foi difícil começar a narrar essa história porque é uma história de injustiça, quando tudo parecia estar caminhando para a realização de um grande sonho", disse Lorena, em entrevista ao CORREIO, na última quarta-feira (11).
A decisão de compartilhar o caso em uma rede social, no dia 30 de agosto, levou à repercussão imediata. Em todo o país, entidades do movimento negro, médicos e professores manifestaram seu apoio a Lorena. Mas a maior surpresa talvez tenha vindo nos dias que se seguiram à publicação: ela não tinha sido a primeira a passar por isso.
Lorena só se deu conta de que se tratava de um problema ainda maior quando passou a receber mensagens e relatos de outros colegas. “Eu achava que essa lei, essa política afirmativa, estava sendo respeitada no Brasil. Eu achava que comigo aconteceu um caso isolado e que eu seria a primeira a falar sobre isso. É chocante perceber que eu não fui a primeira”, desabafou.
Só nos últimos cinco anos, a reportagem identificou ao menos sete casos de candidatos que usaram a Justiça para impedir a nomeação de candidatos negros cotistas, todos classificados em primeiro lugar após a heteroidentificação. Desses, quatro estão na própria Ufba - além de Lorena, há ocorrências na Escola de Medicina Veterinária e Zootecnia, Farmacologia (no Instituto de Ciências da Saúde, o ICS) e na Escola de Belas Artes. O concurso do ICS é o único em que, até hoje, o candidato cotista não conseguiu ser nomeado, tal qual Lorena.
Também foram identificadas tentativas de impedir a posse ou a nomeação de candidatos negros cotistas na Universidade Federal de Sergipe e na Federal de Uberlândia. Na Federal Fluminense, uma professora já tinha tomado posse havia quatro meses quando teve sua nomeação revogada.
"Foi difícil sair desse ponto em que eu estava muito triste, muito abalada para conseguir falar sobre isso. A partir do momento em que consegui, foi fundamental que minha voz alcançasse outras pessoas e soubesse de outros casos", contou a médica.
Concurso
O concurso nº 1/2023 teve 30 vagas para docente em diferentes unidades da instituição. O processo seletivo previa que seis vagas seriam reservadas a candidatos negros e duas a pessoas com deficiência, de acordo com o percentual mínimo determinado pela Lei de Cotas, de 20% e 5%, respectivamente. Desde 2018, as cotas são aplicadas à totalidade das vagas disponibilizadas nos editais para professores da Ufba.
Na prova escrita, que aconteceu no dia 20 de dezembro do ano passado e foi a única etapa totalmente às cegas, Lorena teve a nota mais alta. Era uma avaliação em que todos os participantes deveriam falar em um tema definido por sorteio, na hora da prova - no caso, paralisia facial periférica. Em seguida, vieram as outras etapas. Essas, por sua vez, são mais subjetivas. Na apresentação do memorial, por exemplo, para dois professores, teve nota por volta de 8,5 enquanto o terceiro membro da banca deu 7,0.
O resultado preliminar, no dia 22 de dezembro, veio, deixando Lorena em quarto lugar. "Esse resultado foi remoído por mim por um mês, muito chateada, porque eu entendia que aquilo não me representava. Mas eu aceitei, porque as notas estavam colocadas, os critérios estavam colocados e eu aceitei participar desse concurso dessa forma", conta.
Faltava, contudo, a banca de heteroidentificação. Essa última fase demorou para acontecer devido à greve de professores da Ufba, que durou cerca de dois meses, entre abril e junho deste ano. Naquela época, Lorena não sabia, mas a candidata que havia ficado em primeiro lugar na ampla concorrência já questionava a Ufba quanto à sua nomeação. A universidade, porém, dizia que tinha que aguardar a candidata autodeclarada negra fazer a heteroidentificação.
Em 8 de maio, Carolina Cincurá Barreto impetrou o mandado de segurança com tutela de urgência requerendo três coisas: sua convocação e nomeação, a nulidade do edital para impedir qualquer reclassificação e uma indenização, em caso de nomeação tardia. Aconteceu, portanto, três meses antes do resultado final do concurso. Carolina, que também é doutora em Ciências da Saúde pela Ufba, foi orientada no doutorado entre 2013 e 2017 pelo mesmo professor que orientou Lorena na titulação entre 2021 e 2023 - o otorrinolaringologista Marcus Miranda Lessa.
No dia 13 de junho, a juíza federal Araceli Maciel Duarte, da 1ª Vara, concedeu a liminar e determinou não apenas a nomeação de Carolina para a vaga como que a Ufba não convocasse, nem nomeasse candidatos cotistas para a posição.
"Isso foi um golpe muito grande. Não foi só na minha história, mas na história de todo o povo que lutou muito para que essa lei fosse promulgada e aplicada. E eu vejo hoje que ela foi muito desrespeitada no meu caso", pontuou. "Eu seria a primeira cotista negra a assumir a vaga de docente na Faculdade de Medicina da Bahia (FMB)", acrescentou Lorena.
A FMB, que completou 216 anos e foi a primeira do país, elegeu seu primeiro diretor negro somente no ano passado. O diretor da Faculdade de Medicina da Ufba, Antônio Alberto Lopes, foi procurado para uma entrevista sobre a situação, mas sua resposta foi de que a reportagem buscasse a assessoria da Ufba.
Preparo
Formada em Medicina pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Lorena fez residência em otorrinolaringologia na Santa Casa da Bahia. Lá, aprendeu a conduzir casos clínicos, fazer operações acadêmicas e a operar. Em seguida, veio a especialização em doenças de boca na Universidade de São Paulo (USP).
“Mas não estava suficiente. Eu queria mais. Queria desenvolver minhas habilidades de pesquisa e fui fazer o mestrado aqui na Ufba. Isso me abriu o mundo”, lembra. No doutorado, estudou a perda de olfato pós-covid. Ela ofereceu um tratamento a 128 pessoas no ambulatório do Hospital Universitário Professor Edgard Santos (Hupes).
Segundo Lorena, o desejo de ser professora foi para retribuir à universidade o que foi investido nela. “Como docente, eu vou poder fazer uma assistência médica a pacientes do SUS, vou poder fazer ensino, pesquisa e extensão em otorrinolaringologia. Esse é o meu propósito”.
Durante a faculdade e nas etapas seguintes, Lorena não teve nenhum professor negro. Ela reforça que a Lei de Cotas existe também para garantir justiça social. "Lutar contra a estrutura é muito difícil. Quando a gente decide fazer o concurso na Ufba, a gente espera apoio ou espera algum convite, mas eu não me senti despreparada porque o concurso é público e eu atendia todas as exigências do edital. Não é uma seleção privada que você escolhe (quem vai participar)", enfatizou.
Questionamentos
Não é incomum que candidatos tenham dúvidas em meio a um concurso. A maioria dos questionamentos ocorre no processo pré-admissional, de acordo com o pró-reitor de Desenvolvimento de Pessoas, Jeilson Andrade. Por isso, a Ufba não esperava que o edital fosse questionado no momento de divulgação de resultados.
"A regra está bem posta no edital. Quando o candidato participa, é como se tivesse um aceite de todas as regras previstas ali. Para a gente, é uma surpresa haver esse tipo de questionamento somente depois do resultado", pondera.
A universidade recorreu da decisão judicial. Ainda de acordo com o pró-reitor, desde 2018, já foram feitos oito editais para contratação de professores - cada um com um quantitativo de vagas.
Hoje, Lorena sabe que representa um grupo maior. Se tornou uma voz para outros casos, inclusive de docentes que têm passado pelo mesmo processo e ainda temem represálias maiores.
"Esse desrespeito à lei não pode acontecer. É preciso garantir o direito que foi construído com base na luta. Eu vou lutar até o fim. Essa vaga é minha porque eu tenho direito a ela, percorri um caminho para chegar a ela e não vai ser essa liminar que vai me derrubar. Tenho certeza de que vai ser reformado em instâncias superiores, porque eu vou lutar até o fim, até onde precisar".
Carolina Cincurá foi procurada pela reportagem por e-mail e através do telefone de seu advogado. Não houve retorno até a publicação desta reportagem.