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Baianos já tiveram ao menos dois governadores gays; conheça


 

Revelação de governante gaúcho nos leva a criador do Forte São Marcelo, que tem importante relação com a história do Rio Grande do Sul

  • Da Redação

Publicado em 11/07/2021 às 06:30:00
Atualizado em 22/04/2023 às 10:45:08
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Palácio Rio Branco, no Centro de Salvador, antiga sede do Governo da Bahia e Brasil (Arte em foto de Arisson Marinho/Arquivo CORREIO) Quando Caetano Veloso enxertou na canção ‘Rock n Raul’ a exótica constatação de que “a verdadeira Bahia é o Rio Grande do Sul”, fazia, a um só tempo, uma homenagem ao conterrâneo Raul Seixas – autor da LGBTfóbica ‘Rock das Aranha’ – e uma curiosa conexão histórica entre dois dos estados mais bairristas que existem, assumamos.

Essa amarração, que termina com o governador Eduardo Leite assumindo-se um homem gay, na semana passada, começa lá no tempo em que o maior herói dos gaúchos, Bento Gonçalves, esteve preso em Salvador. Era o final do ano da graça de 1837, quando o líder revolucionário escapou do Forte do Mar (atual Forte São Marcelo, antigo improviso de Alcatraz), pegou uma lanchinha até Itaparica, para de lá marchar à sua insubordinada República Rio-Grandense, que veio a presidir. Governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, que revelou ser homossexual (Foto: Gustavo Vara/Divulgação) Semanas depois de Bento partir avoado, o médico Francisco Sabino Álvares, que curtia e compartilhava da maioria das ideias revolucionárias do colega gaúcho, assumiu a Província da Bahia. Imitão, proclamou a República Bahiense, na passagem histórica que veio a ser denominada, por causa dele, Sabinada. 

Inocente achando que perduraria no topo até Pedro II ficar grande, ficou o pequeno período de quatro meses na direção, depois que a Regência reagiu. Em março de 1838, Sabino Álvares teve que sair de bolo, mas acabou achado “dentro de um armário, coberto de roupas sujas, vestido apenas com uma camisa, e descalço”. (Condenado à morte, viria a ser perdoado pelo imperador).

Mas não foi apenas a Regência que o tirou do armário, como lembra o professor aposentado da UFBA e pesquisador Luiz Mott, fundador do Grupo Gay da Bahia (GGB). “Sobre o terceiro governador [gay da Bahia], o médico Sabino Álvares, tem uma ‘denúncia’ da mulher, que teria pego ele na rede com um mulato transando”, relembra, explicando que essa história ficou muito conhecida após a dita companheira revelar o flagra a uma escravizada fofoqueira, encarregada de espalhar o boato nos grupos da província.

Visitação Mas repare que Mott fala em “terceiro governador”. Isso porque, séculos antes, a Bahia teve em seu posto político mais alto outros dois nomes/homens que figuram em seu livro ‘Homossexuais da Bahia - Dicionário Biográfico (Séculos XVI-XIX)’, lançado em 1999. 

São eles Diogo Botelho e Câmara Coutinho, os quais, assim como Sabino, tiveram suas intimidades expostas por outras pessoas – não há, portanto, registro de governantes que assumiram tal orientação sexual espontaneamente.

E a conexão feita por Caetano fica agora ainda mais ‘evidente’ quando você descobre que foi Botelho quem mandou construir o Forte São Marcelo, do qual Bento Gonçalves escapou fedendo. Entre os muros do Forte São Marcelo, umbigo da Bahia (Foto: Arquivo CORREIO) Botelho Oitavo governador-geral do Brasil e capitão-mor da Bahia, o português Diogo Botelho chegou a Salvador em 1602, e ficou no comando das ações até 1607. Suas aventuras homoeróticas já eram conhecidas nos corredores palacianos, mas tomaram ares de oficialidade após a Segunda Visitação do Santo Ofício – ocasião em que prepostos da Igreja Católica vieram, mais uma vez, curiar a vida do zoto com o pretexto de caçar pecadores.

Anos depois de sua saída, em 1618, corria tranquila uma dessas audiências, comandada por um visitador (o famoso fiscal de fiofó), “quando compareceu sem ser chamado Fernão Rois de Souza”, então com 25 anos, já casado e morador do entorno de Salvador. Revelou que, cerca de 10 anos antes, quando era pagem de Botelho, este “o fez deitar consigo na cama e veio a dormir com ele carnalmente”. 

Perguntado se havia testemunhas do que dizia, respondeu que “os criados de casa davam a entender que suspeitavam e havia entre eles escândalo disso e que pelos muitos mimos e favores que Diogo Botelho fazia a ele, confitente, não faltaria gente de fora que o suspeitasse, tendo o dito Governador fama disso”. 

Fernão Rois fizera essa confissão estando presentes na Mesa do Santo Ofício “pessoas honestas e religiosos, padres jesuítas do Colégio da Bahia, que consultados após a retirada do confessante, disseram que ‘parecia dizer a verdade e que se lhe havia de dar crédito’”, menciona o livro.

Perguntei a Mott se esse depoimento complicou a vida de Botelho. “O Santo Ofício não se interessou em nenhuma das denúncias dos governadores acusados de sodomia da Bahia. No caso de Diogo Botelho porque, embora houvesse muitos detalhes, houve apenas um acusador, que no caso foi o seu amante. E, dificilmente, a Inquisição levava adiante investigações quando era apenas um denunciante, mesmo com riqueza de detalhes”, explicou o professor.“Não sei se a condição de destaque de Diogo Botelho, um oficialmente heterossexual, conquistou os índios lá do Ceará, construiu o Forte São Marcelo, era nobre na Corte da Espanha e tudo [era o período da União Ibérica], não sei se isso influenciou para a Inquisição fazer ouvido mouco”, complementou.

Coutinho O caso de Câmara Coutinho é mais curioso, porque, em verdade, não há evidências – nem mesmo relatos à Inquisição –, a não ser comentários escrotos do poeta Gregório de Mattos, que apesar da genialidade, era um homem com características próprias da maioria em seu tempo: machista e homofóbico.

“As únicas denúncias são através dos poemas do Gregório. Há uma pesquisa que supõe que talvez seja calúnia, vingança do Gregório contra o governador, que não concedeu um emprego para o irmão do Gregório, e depois ele foi degredado para Angola. Então foi uma forma de vingança inventar essa relação do Câmara Coutinho, que foi muito bom governador, elogiado tanto em Pernambuco quanto na Bahia”, conjectura Mott. 

Ainda no Dicionário Biográfico dos Homossexuais da Bahia, ele lembra de uma das passagens em que Coutinho era atacado por Gregório de Mattos: “o rabo erguido em cortesias mudas, como quem pelo cu tomava ajudas…”.

Bem-vindo ao Vale? De volta para o futuro, perguntei a Luiz Mott, decano do movimento homossexual brasileiro, e ao meu colega Jorge Gauthier, jornalista e editor do Me Salte, o que acharam da entrada de Eduardo Leite no “Vale dos Homossexuais”. 

De maneira geral, ambos consideraram o governador gaúcho muito bem-vindo e, claro, enalteceram sua coragem ao assumir a orientação em rede nacional, num país absurdamente LGBTfóbico. Luiz Mott, professor, pesquisador, escritor e decano do movimento gay no Brasil (Foto: Evandro Veiga/Arquivo CORREIO) “Estratégica ou não, a decisão é importantíssima para o movimento, porque é o primeiro caso de um governador, num cargo tão importante, a ter tido essa coragem. E eu considero que ele já saltou fora do barco do Bolsonaro, e espero que se torne uma oposição mais enfática”, disse Mott, ao citar uma crítica recorrente após o anúncio: o fato de Leite ter apoiado Jair Bolsonaro, político com histórico de preconceito contra homossexuais, no 2º turno da eleição passada.

Também para Gauthier, esse viés não diminui a importância do ato.“O fato de ele ser uma pessoa gay, que apoiou Bolsonaro, não deslegitima o fato de ele ser gay. É um ponto que a gente precisa observar porque muita gente acha, ou tem a ilusão, que todos os LGBTQIA+ são pessoas a favor da diversidade. Infelizmente, ainda há, dentro da nossa comunidade, muitas pessoas que corroboram ou que também são LGBTfóbicas”, assinala o jornalista. Jorge Gauthier, jornalista do CORREIO e editor do Me Salte, um dos principais canais de notícias do universo LGBTQIA+ (Foto: Sora Maia/Arquivo CORREIO) Inocente, perguntei a Gauthier se é impressão minha, ou a sociedade avançou, de um modo geral, nessa pauta da diversidade, ao ponto de a revelação parecer que irá beneficiar Leite, politicamente, no futuro.

“Acho que ele tem muito mais a perder no sentido de visibilidade política. A gente está num país que é extremamente machista, homofóbico, e eu não tenho essa ilusão de que o Brasil, neste momento, tem maturidade política para eleger um homossexual assumido, por exemplo, para ser presidente. Nossa sociedade ainda precisa evoluir muito pra chegar num ponto de a orientação sexual de um político ser irrelevante, que é o ideal”, conclui.